O Homem Palito

Imagine um vazio. Um vazio que chama sua atenção. Como em História Sem Fim. Uma cor indefinida, próximo do preto, porém não é preto, pois não é nem ausência nem presença de cor. Aperte seus olhos. Olhe profundamente para esse vazio. Opa! Parece que há algo nele. Você pisca seus olhos para ver se não é engano. Não, realmente há algo no meio do vazio. Você aumenta a imagem de tamanho na sua imaginação. Os traços, um a um, vão sendo traçados. Primeiro um quadrado, que se transforma num cubo que se transforma num pequeno quarto. No centro do quarto, contra a única janela, há uma cama. Nada é colorido. Traços simples e limpos. Você observa com mais atenção e percebe que há um homem deitado na cama. Não um homem comum, mas um protótipo. É um homem palito, cujo único atributo pessoal é uma ruga na parte direita do círculo que representa sua cabeça.

De repente, da ausência de som, surge um barulho tosco e irritante. Há dúvidas que é o despertador? Você nem acabou de examinar o quarto com cuidado e mal reparou na mala pronta para viagem perto da porta quando o homem que estava dormindo acorda, desliga o despertador, esfrega os olhos, boceja, fecha os olhos, volta a abri-los, levanta-se de uma vez da cama – com o pé esquerdo, já que era canhoto (será que para canhotos a superstição é do contrário?) – e segue para a porta que leva a um banheiro.

Lá, em um pequeno cômodo com seus traços simples e sem cores – como um desenho rabiscado, ou no máximo um mangá branco e preto –, toma um banho rápido e escova os dentes.

Rapidamente, então, pega a mala, sai do quarto, desce por escadas num ambiente escuro e inóspito, talvez dois ou três lances, e entra para a rua.

Pára por um momento e olha em volta, como que para guardar na memória. O céu é cinza-nublado. As ruas são pequenas, as construções são clássicas e antigas, prédios de no máximo cinco ou seis andares, os transeuntes apressados, cada um absorto em seus próprios problemas para reparar em outro homem palito – como eles –, com uma ruga na face direita, parado a entrada de uma pensão.

Os traços, escuros, diferenciam os automóveis que andam pelas ruas. Há um ônibus de dois andares e estranhamente os motoristas dirigem do lado esquerdo, e as ruas são do contrário, e os homens palitos, se pudéssemos perceber, também estavam invertidos, como se fossem uma imagem no espelho. O mundo dos canhotos?

Pensando em alguma coisa que você, com seu olhar perscrutador, não conseguiu definir, nosso estranho herói segue por um caminho longo e direto, com apenas uma parada numa padaria para comer um café da manhã – ovos fritos com bacon – e uma rápida olhadela a um grande relógio pontual numa grande torre com milhares de entalhes (nunca se esquecendo que todas essas imagens são em branco e preto, como história em quadrinho).

O tempo passa lentamente, e se olhasse para trás, o homem poderia ver o ponteiro do relógio correndo como se anunciasse que o tempo passa a todo instante, mas ele tinha pressa, apesar de nunca chegar ao local de sua pressa. Sem muito saco de esperar, você parou de prestar atenção no homem e seus pensamentos rumaram para lembranças ou qualquer coisa mais interessante. Os ponteiros giram sem ninguém se dar conta e o homem continuava andando. Para onde ia com tanta pressa e uma mala? Por que todos na cidade são palitos, protótipos de si mesmo? Devaneando sobre essas perguntas, nosso leitor continua a ver o tempo passar lentamente.

Porém, algo chama sua atenção: ele agora está no aeroporto. Sem delongas, nosso estranho herói (gosto de chamá-lo assim) embarca em um grande avião comercial rumo, você não conseguiu descobrir, a algum lugar do outro lado do mar.

Assim que o avião ultrapassou as cinzas nuvens que cobriam a organizada cidade o sol, o grande rei amarelo, incendiou de luz e cores o céu ao redor do avião, que, como seus passageiros, continuava sendo riscos pretos, como desenho, sem nenhuma caracterização própria.

Nosso estranho herói espantou-se ao ver tais cores, como se fizesse muito tempo que ele não as via. “Que bela cor essa, a do céu, acho que a chamava de azul. E essas nuvens, brancas, lembram-me algodão doce. Realmente, estava correto quem disse que há mais coisas entre o céu e a terra do que podemos imaginar!”. Não que esse homem tenha perdido mais do que trinta minutos pensando nas cores, mas foi algo que ele tentou alongar o máximo possível, para não cair no tédio da longa viagem.

No entanto, tal esforço não adiantou muito, e logo ele caiu em um sono leve, em que qualquer chacoalhada do avião o acordava. É aquele sono chato, que você se esforça para parar de pensar e começar a dormir de verdade, porém isto não acontece, o tempo demora a passar e a sua irritação aumenta à medida que os segundos passam. Enquanto isso, o leitor atento percebera que a cidade da onde o avião saiu ficava numa ilha ao norte do globo terrestre. O protótipo de avião, por sua vez, voava rumo a um grande continente ao sul da linha do equador, do outro lado de um grande oceano.

Enquanto isto, nosso querido herói acabou tendo um sonho. Um sonho com cores de verdade. A sua visão, leitor, foi sendo esfumaçada, como se as nuvens que embaixo do avião desenhado tivessem deixado seu sono perpétuo e adentrado em todas as fendas possíveis da sua imaginação. Essa branquidão, porém, logo tornou forma. Era no alto de um grande vale, com campos verdes a toda volta, uma pequena floresta de pinheiros ao norte. Havia uma cidadezinha a vista, que a noite brilhava suas inúmeras luzinhas como se toda noite houvesse algo especial. Havia barulhos de galinhas, periquitos, maritacas e do vento uivando sobre as verdes folhas das árvores. Escondida neste ambiente, no desfiladeiro para o vale, havia uma casa tosca, de pau-a-pique, não muito grande e mal acabada. Nesta casa havia uma pequena família, mãe e seus dois pequenos filhos. A mãe não parava de trabalhar, as crianças brincavam num canto. Não pareciam carenciar de comida e nem se aparentavam doentes. Apesar da relativa pobreza, pareciam felizes e cheios de saúde.

A mãe, assim como uma das crianças, tinha uma ruga na face direita. As crianças lembravam muito a mãe: cabelos escuros e cacheados, lábio fino, orelhas pontudas, nariz não tão pequeno quanto de um japonês nem grande de mais como de judeus. A grande diferença era perceptível nos seus olhares; enquanto a mãe tinha uma expressão sofrida e triste, o filho com a ruga sustentava um olhar orgulhoso, com um quê de algo que, naturalmente, surgia aos poucos em seu peito e que ainda nem ele sabia direito o que era. Talvez certa queda pelo poder, poder de comprar, de aparecer para os outros como alguém que eles respeitassem e, quem sabe, temessem. Já o outro garoto tinha um olhar mais romântico, sonhador, um olhar perdido e cheio de significado.

De repente, o garoto de olhar orgulhoso levantou-se, andou vagarosamente, porém decididamente, até a pequena varanda com vista para o vale e ficou a olhar fixo o horizonte de grandes e pequenas montanhas arredondadas a sua frente. Como se toda essa imensidão que ele estava acostumado a ver lhe desse poder de sonhar e almejar, como se ele sentisse que podia se expandir mais, conhecer o mundo, ver o que há atrás das montanhas e além delas.

Começou a ventar e o garoto dirigiu-se mais uma vez para o interior da casa. Foi exatamente no momento que ele estava passando pela porta que o vento a fechou com violência. O garoto, que quase nada se machucara, mas sentira um grande susto, pôs-se a chorar loucamente. A mãe logo acorreu e colocou-o no colo, na proteção materna. “Não chore, Vinícius, não foi nada...”. O sorriso no rosto do menino deixava escapar o prazer que sentia...

As nuvens voltaram a invadir a vista, logo tudo ficou cinza, branco, e azul novamente. O avião voltava a cena e o nosso herói acabara de acordar de seu sonho. Uma breve observada em volta, e agora não era apenas o céu que tinha cores; o mar, logo abaixo, agora tinha uma cor verde oliva, azul escuro, dessas cores que nos deixam curiosos sem a gente saber por quê. Esfregou os olhos e lembrou-se do seu sonho. Como ele queria rever sua mãe!

O homem palito, Vinícius na época que era um garoto comum, de pele e osso, começou, então, a vagar pelo seu passado. Sem perceber, a sua volta as coisas iam criando cores, como se a realidade fosse um papel branco e preto e o desenhista estivesse agora pintando belamente e, uma a uma, as coisas iam criando vida e existindo de verdade. Como se antes a vida do homem não tivesse passado de uma ilusão, um sonho, e agora a cor fazia-o voltar ao mundo e encará-lo de frente e captasse-o.

Vinicius sentia que conforme chegava mais perto de seu destino, a vida aflorava em suas veias, como se quisesse voltar a viver intensamente. As lembranças do passado e os desejos de rever os lugares em que havia passado sua infância e inocência inflavam-lhe o cérebro.

O tempo, porém, não pode ser adiantado ou atrasado. E ele, assim como nós – e eu me incluo –, teve que esperar até que o avião chegasse ao seu destino. As mudanças aconteciam lenta e suavemente, como o cuidadoso e doce pintar de um quadro. As cores tornavam-se vivas, especiais, novas, pareciam nunca ter sido apreciadas pelo nosso herói.

O avião, apesar de toda a demora, chegou ao seu destino. Era uma cidade maior do que a que o homem se encontrava ao acordar, porém parecia mais acolhedora. Era feia vista de cima, milhares de casas inacabadas, rios sujos, poluição no ar. Além de tudo isso, era cheia de prédios, coisa que nosso herói detestava. Mas, como já foi dito, alguma coisa no ar, algo que invadiu seu coração, fazia dessa cidade mais querida do que a cidade de que partira. Reparou também que a cidade era real, e não apenas um protótipo, apesar de se parecer muito, já que suas cores eram cinza e preto, praticamente.

No momento em que as rodas do avião tocaram o solo, o homem palito viu que tal objeto tornara-se real. Era um avião de verdade, grande e não apenas um desenho em branco e preto.

Desembarcou e tomou um táxi. O táxi, real, como tudo a sua volta agora, o levava por ruas congestionadas e sujas para fora da cidade. “Agora só falta eu me tornar real.” Pensou nosso herói.

Seu coração batia dentro de seu peito, e a cada batida sentia a vida encher-lhe o corpo. Afinal, voltara a sua terra natal após anos. Veria, novamente, sua mãe. Sua querida mãe. Veria de novo o vale, veria de novo as verdes montanhas arredondadas. Veria seu passado e voltaria a ser real. Voltaria a ter sentimentos. Voltaria a ser a pessoa que sempre fora, mas que a abandonara em busca de um sonho em vão. Suas cores, sua existência voltava a cada tum-tum. Deixava de ser um homem palito. Deixava de ser um protótipo de homem.

Agora, sentia ser real, sentia ser verdadeiro. Não havia, todos esses anos, sido ele mesmo e só agora sabia disto. Só agora percebia que pertencia a apenas um lugar, a cidade da onde nunca deveria ter saído. E agora, faltava muito pouco para vê-la novamente.

A paisagem a sua volta, cinza, escura, preta, triste, aos poucos ia passando. Era o táxi que andava ou era o mundo que girava? Não sabia.

Pinheiros surgiam aqui e ali em volta da cidade. Aos poucos, campos sobre montanhas arredondadas eram vistos à beira da estrada. Os postes passavam rapidamente, Vinícius nem percebia. Sentia que ia chorar, mas se segurou.

Sem perceber, afinal nesta parte da viagem estava muito preocupado pensando, o tempo passou, como algo que o comandasse, e já estava passando em baixo do cafona portal de sua cidade natal. “Não havia isso quando parti.” Pensou.

A cidade não crescera muito e era basicamente parecida com a da sua lembrança. O lago no centro, os patos e gansos. As crianças, os hotéis. Havia os milhos cozidos, havia os idosos. Tudo na mais perfeita calmaria. Tudo normalmente normal.

O táxi continuou seu trajeto até sua antiga casa que ficava um pouco afastada do centro.

Subiu ladeiras, cortou morros, virou a esquerda, depois a direita, sempre subindo, até o alto da mais alta montanha da região.

No caminho, flashes de lembranças atormentavam-o sem que ele pudesse fazer nada.

O táxi parou na frente da sua casa, isolada no meio do mato. O silêncio imperava, ou melhor, o som da natureza imperava. Já havia se esquecido do doce canto dos pássaros, do vento nas folhas no verão, no cheiro gostoso do calor.

Pagou o motorista e dirigiu-se para o interior da morada. No momento em que passou pela porta, sentiu que o tempo, que antes o acompanhava ritmado, como algo zombeteiro que lembrasse sua morte, havia sumido.

Dentro daquela casa não havia tempo para ele, não havia morte. Ele era aquela casa, sua alma pertencia a ela. Não havia ninguém nela nem nos arredores. Onde fora sua mãe? Por onde estaria seu irmão?

Olhou pela janela. O horizonte era o mesmo, os campos verdes e as montanhas redondas como ondas no mar eram os mesmos, o mundo era o mesmo, no entanto, a sensação que sentia não era a mesma de antes. Não sentia uma vontade convidativa para sair, crescer, conhecer o mundo, ser poderoso. Pelo contrário, o que sentia agora era algo opressor, como se aquela magnitude o espremesse, o fizesse ser apenas um ponto na imensidão daquele vale.

Por que essa mudança? Estava apreensivo nosso herói. Um calafrio atingiu sua espinha e ele entendeu. Algo de ruim ocorrera ali. Mas o quê?

Saiu para o jardim e caminhou entre as velhas árvores. Havia bananeiras, paineiras, mangueiras... De repente, viu algo que não era verde. Uma espécie de uma cruz.

Aproximou-se. Era, realmente, uma cruz, mas já estava velha; as plantas já a haviam esverdeado. Embaixo, uma placa. Lia-se:

“Que volte a terra de onde nasceu e da qual tanto amou”

De **** até **** Maria Eugênia da Cruz

O homem não se mexeu. Lágrimas escorreram-lhe pelos olhos. Ele não conseguia fazer barulho e nem estava pensando nisso. Sua mãe estava morta. Depois do momento calado, gritou, esperneou, correu de um lado para o outro. Chutou um galho seco, murrou a árvore mais próxima. Gritou mais uma vez, e dessa vez foi um grito agudo, mais agudo que o dos lobos. Um grito de dor, um grito de quem gastou o tempo de forma indevida.

O tempo. Tudo culpa dele. Envelhece pessoas queridas, envelhece o próprio tempo. As coisas, com o tempo, mudam. Não há remédio, a não ser adaptar-se as vontades desse grande senhor.

E nosso herói, leitores, não soube curvar-se a tais vontades. Talvez se achasse superior a elas, talvez não desse tanta importância. Não se sabe, nem ele vai nunca saber.

O que acontece é que aquele foi um grito de derrotado; o tempo havia vencido. Louco, fora de si, nem percebeu a outra cruz, metros adiante, em que uma placa ao seu lado dizia:

“Que encontre sua mãe no céu”

****-**** Antonio Marcos da Cruz

Ele realmente não viu tudo isso que você, leitor, viu. Mas ele viu um galho pontudo e ele não viu alternativa. Seu sangue era-lhe, não mais, caro. Seu coração, que só agora voltava a bater não lhe era mais importante.

A sua vida e a realidade nada eram sem sua mãe. Com o galho, perfurou seu peito, seu coração. O sangue molhou a terra e ele pode retribuir, com sua vida, a vida que a terra lhe deu e que o tempo mordeu.