Canção nômade

I - O acervo

Entrei pela porta da frente, aliás, pelo portão frontal que separava o adro do lado de fora. Um vigia, homem alto, de óculos escuros; em sua posição inflexível de sentinela, mostrou-me o local da recepção. Precisei assinar o livro de visitantes. Autorizada a minha entrada, dirigi-me ao interior do salão, onde vi as galerias. Estavam montadas como se fossem cenários de peças teatrais suburbanas, com madeiras e armações – eram murais de dois metros de altura, nos quais foram fixados os quadros.

Mas, não tornemos esta visita motivo de mistério ou coisa parecida. Eis, portanto, os fatores que me atraíram a essa exposição, cujo anúncio me chamou a atenção quando ia passando pela rua. Estava, na verdade, à procura de um isqueiro, desses bem baratos, coisa que qualquer fumante de classe não admitiria em tal situação. Foi então que avistei, indiferente e sem pretensão, o outdoor cruzando a avenida entre duas árvores, cuja inscrição dizia: “I Exposição de pintura surrealista para artistas amadores.” Abaixo, em letras menores, o nome de cada expositor. Quatro pintores. O que vinha em primeiro lugar foi o qual me causou o pasmo repentino. Seu nome: Constantino Alves Johansen.

Não conhecia até então sua obra, mas posso afirmar que conheço bem a biografia, pois sua pessoa não me era estranha desde o início do ano 1999. Adiante veremos mais de perto essa proximidade; por enquanto, vamos aos quadros.

Fui ao setor onde estavam as sete telas de Constantino. Ele assinou a cada uma, não com o nome, mas com um símbolo. Talvez fossem iniciais, ou algum significado particular. As figuras, pintadas a óleo, encerravam com um sabor de fantasia e realidade, a obra de um artista que se faz presente em cada traço, cada curva, cada cor. Um retrato da natureza humana em suas mais baixas regiões anímicas. Na condição de leigo, posso descrevê-los. Em especial aqueles que estavam inevitavelmente em destaque. Um deles, o primeiro da seqüência, representa um império, uma civilização. As torres parecem sepulcros. Pessoas andam entre eles e depois são devoradas por uma grande engrenagem viva. Vi outro que é uma gravura de cores opacas. Este, ora parece ter a intenção de transmitir luz, mas ao contrário o cinza e o preto tiram-lhe todo o brilho. Libélulas ou mariposas voam ao redor de um lustre de cristal. O mais interessante é o auto-retrato, situado ao lado de um belíssimo Serafim alado, que dá a impressão de estabelecer contato com seu autor, agora vizinho de parede. Nesse ele aparece de barbas longas, cabelos longos, olhar cansado, mas alegre.

Disseram que o auto-retrato foi seu último trabalho antes de desaparecer. Os outros foram encontrados na sessão de achados e perdidos de uma estação de trem. Encontraram também uma etiqueta com seu nome, o que não lhe permitiu continuar anônimo, e, mais tarde fosse parar nessa exposição sem fins lucrativos.

Aquele rosto retratado em tela se tornou um só com a jornada realizada. Posso ver e sentir a expressão desse Van Gogh mendicante, declinado em uma sarjeta e sorrindo.

II - Cidade fantasma

Nunca soube o motivo pelo qual Constantino veio parar na grande metrópole paulistana, afinal ele era do sul, e daquelas bandas é que saiu num dia ensolarado de janeiro. Subiu em um ônibus da linha Curitiba - São Paulo e viajou para um mundo perigoso e desconhecido.

A primeira visita à terra da garoa provocou espanto aos olhos de um homem acostumado ao frio e aos campos. Chegou num belo dia, como qualquer outro: o sol brilhando forte sobre a cabeça e a máquina trabalhando do lado de fora sem cessar.

O que ele queria, na realidade, não era viver o resto de seus dias embriagado e cantarolando resmungos de derrota ou indignação. Mas em parte foi o que aconteceu.

Aos quarenta anos deixou tudo para trás. Bem, na verdade não abdicou de quase nada, pois o único valor pertencente a ele eram as tralhas de pintura. Não tinha casa própria, nem carro, tampouco mobília. Era órfão e trabalhava em um sítio como caseiro. O local foi transformado depois em área industrial, obrigando Constantino a desmontar o ateliê.

Somente com a bagagem ele seguiu para lugar nenhum, ou qualquer lugar onde houvesse acumulação de gente tentando viver. E foi justamente o que viu quando desceu na Barra Funda: um turbilhão de civis correndo pra todo lado como formigas.

Constantino carregava consigo uma maleta, onde guardava as tintas e os pincéis. Esperava nos primeiros dias, ganhar uns trocados desenhando retratos na rua. Nos ombros uma sacola grande com roupas e documentos. Todo esse peso desaparecia diante do fardo que atormentava sua cabeça. Andando devagar ignorava tudo á sua volta. Assentado no banco de espera tornou-se presa fácil para uma regressão momentânea. Lembrou do velho ateliê no sítio e seus trabalhos, percebendo que era um artista sem reconhecimento, porque não reconheceu nem a si mesmo quando olhou para o espelho na parede da oficina, cuja fenda no canto esquerdo lhe deformava o rosto.

Como não tivesse dinheiro nem pousada, passou a noite na estação do metrô. Ali mesmo deitou e apagou.

Despertou às seis horas, sentindo dores agudas pelo corpo, já que dormiu sobre puro concreto. Isso não o deixou mais indignado do que a surpresa que teve: haviam levado a bolsa e os documentos. Ficou a maleta de tintas, e elas estavam todas espalhadas ao seu redor. O ladrão, certamente, não viu nenhum valor naquele material.

Sozinho, com a roupa do corpo e os objetos de sua paixão ele levantou lentamente e saiu caminhando, enquanto exclamava em seu interior: ”Quão custoso é para o andarilho viver nesta selva!”

Um enorme vazio o dominava por dentro e por fora. Tinha fome, estava sujo, cansado e perdido. A luz matinal o envolveu ao descer a rua. Atravessou antes, a área dos camelôs. Eles o observavam com atenção, não como novidade, mas como quem observa um recém-nascido, envolto em miséria e pobreza. Os ossos e a cabeça o maltratavam, o coração recordava antigas mágoas. No bolso do casaco um isqueiro e um canivete, o qual ia apalpando com os dedos durante o confronto com aquela violenta realidade.

Essa violência o agrediu com força maior, quando chegou ao viaduto e viu as barracas de papelão. Entre panelas penduradas e varais improvisados, defrontou com uma mulher amamentando e umas crianças raquíticas de olhos grandes.

III – Verídicos e singulares

O dia demorou a passar, uma eternidade. Alma chagada, mente cansada, restos de marmita no estômago; nenhuma esperança. Iniciava-se o espetáculo vesperal na cidade: o céu escurecia e as luzes iam acendendo uma a uma.

Constantino olhou para um lado e viu um beco, olhou para outro lado e havia um bar. Pessoas fumando, bebendo e jogando bilhar. Levantou-se e cruzou a porta devagar.

—Uma dose... Pediu com a voz trêmula e fraca, encostando os cotovelos no balcão. O garçom mediu-o da cabeça aos pés, mas relutante tomou nas mãos a garrafa de cachaça e serviu, com feição desconfiada. Moedas sobre o balcão, um gole rápido e preciso, e ele virou as costas e saiu.

Ao colocar os pés na calçada Constantino despertou para uma nova realidade quando notou que não eram poucos os seres noturnos passeando ao seu redor. Alguns dormiam nos becos, outros embriagados, gritavam suas angústias. Gritavam também seus pensamentos, como um velho senhor que discursava a um pequeno grupo, de cima do chafariz da praça:

—Somente vós, meus filhos, compreenderão minha verdade; que é a mesma verdade de todos vocês!

Foi nessa ocasião que conheci Constantino, pois também parei para ouvir o velho. Ele se aproximou e ficou encostado no poste de luz. E o excêntrico profeta continuava a pregoar:

—Ouçam bem! Aquele que se faz louco numa sociedade louca é são; e aquele que se faz são numa sociedade insana, é louco!

O artista de tela e pincel sentiu-se verdadeiramente incluso em um novo grupo, com uma nova forma de viver, e de sobreviver.

Em frente à mesma praça reuniram-se debaixo de um toldo, enquanto fiquei a observá-los disfarçadamente.

Um rapaz de bituca à mão gritou a Constantino: Deita aí! Ele deitou entre eles e sentiu - se melhor que na noite passada.

Um kit de pintura, roupas sujas no corpo e o coração. O que mais sobrou para aliviar - lhe o peso? Justamente os companheiros, divertidos e sociáveis. Costumavam despertar sempre bem cedo. Todos trecheiros, como eram chamados. Caminheiros vindos dos quatro cantos do país.

Para ele, um grande artista que descera do seu patamar, tudo se fazia novo. No meio de tanto João e José, havia também um Pedro, um Cícero e um Elias. Com esses três indivíduos, e segundo a política do local, ficou formada uma divisão para ajuda mútua; equipe na qual Constantino fora adicionado.

O Pedro era o velho que apregoava na noite que os precedeu. Tinha uns sessenta anos e já foi fuzileiro naval, ou algo desse gênero.

O que se sabe de Cícero é que veio da Paraíba há cinco anos, mas não conseguiu trabalho, a não ser a atividade das latinhas e papelões. O carrinho é a única forma de sustento para o desabrigado.

Sobre Elias, foi o que conheci melhor, pois me serviu de narrador para tais fatos. Ele era um mercador paraguaio, filho de mãe brasileira. Sempre ganhou a vida enfrentando a lei, já que nunca foi autorizado a exercer o comércio. Passou também pela Vinte e cinco de março como camelô, onde certa vez comprei dele um rádio de pilha.

Finalmente, essas e outras histórias foram ouvidas e contadas por Constantino entre os andarilhos. Assim ele aprendeu a viver na selva, dentro da nova sociedade, diferente da que conheceu antes.

IV – Entre o vinho e a sede

O vinho, bebida de fino aspecto, colhido da vindima e do trabalho, pode ser encontrado nos grandes banquetes da alta roda; ou até mesmo no Olimpo – como o néctar dos deuses. No entanto, pode ser comprado a preço baixo em qualquer mercado, desde que a marca seja a pior possível. Mesmo assim não pode ser comparado ao doce sabor da aguardente de cana, que tem o poder de destruir e construir, matar ou manter vivo. Não pode ser bom, mas em alguns casos também não é mau. E torna-se espontaneamente o companheiro de viagem: aquele que está sentado na poltrona ao lado. Talvez seja isso que diferencia o Olimpo do alambique.

Então o sujeito bebe o dia inteiro, com classe; classe de trecheiro moderno. Acaba caído no canteiro da avenida e ali fica horas e horas, até acordar sem saber onde está. A cabeça dói, o corpo queimado pelo sol, permanece anestesiado.

Em um momento, sobretudo, é preciso parar. Frear os ânimos e enviar carta de afastamento ao deus Baco. Talvez o deus de papel, ou ainda o de gravata, que o bebe apenas socialmente.

A garrafa é um recipiente comum de água mineral. Ela vai entre o braço e a costela, e nunca está vazia. Indispensável principalmente nas noites de frio. Essa poção mágica pode alegrar o que está triste, faz falar o tímido, incita bazófia ao covarde, põe palavras na boca do omissor e opera outras maravilhas – menos para o fígado – pobre fígado!

Não há como esquecer, todavia, o complemento para os intensos bebericos. O que para outros funciona como pós-orgia, aos trecheiros é o amargo na boca e algum efeito na mente. Cigarros de cinqüenta centavos. O baixo custo está associado ao veneno que produz.

A fumaça compete com os poluentes, levando-os a relaxar e esquecer. Dessa forma queimam os ardentes palheiros, que por acaso são assim chamados na terra dos pais de Constantino e outros sulistas interioranos.

Voltando ao vinho, ele continua dentro da taça: tinto, doce e de aroma tentador.

V – Concerto à luz de velas

Porventura aqueles quatro proventos do sistema, em plena véspera do novo século, andaram juntos por meses. Tornaram-se peças paralelas de um quebra-cabeça metropolitano.

Ocorreu, certa feita, um episódio marcante. Especialmente ao pintor, que tudo transforma e tudo cria, em seu universo.

Era tarde e caía sobre a cidade uma chuva fina e insistente. Cícero e Elias saíram em busca de donativos, enquanto os outros permaneceram numa tapera oculta de lote abandonado. Sem perceber o frio e a chuva eles percorriam as ruas sob holofotes. As luzes da cidade, mais que os próprios cidadãos, se faziam presentes no pavoroso intelecto desses marginais.

Estavam sérios, os dois. O impassível e não menos leviano Elias, e o inocente Cícero, que não era o Romão, mas também possuía qualidades de beato. Este mesclava serenidade e distração.

Repentinamente uma rápida constatação passageira, ou mero lapso de poeta errante, fê-lo brecar o velho coturno no granito escorregadio da calçada. A mão direita subiu ao ombro de Elias e na esquerda um sinal pedindo atenção:

—Violoncelo!

Recebeu logo um rosto inclinado á esquerda mostrando expressão de quem não captou a mensagem. E ele insistiu:

—Violoncelo! O som está vindo dali!

Elias não permitiu que a razão o questionasse e seguiu o comparte, quando correu em direção ao Le pian, a casa noturna onde se realizava o concerto.

É evidente que não puderam ultrapassar a porta de entrada. Ficaram, então, a observar pela vidraça que dava o acesso visual; do lado oposto aos elegantes instrumentistas.

De imediato, quando cessou a fina chuva e iniciou-se a nova melodia, foram ambos surpreendidos por um encanto inesperado. Mudaram-se os dois, de homens a mariposas, que passando por uma fresta na porta; sentiram-se instintivamente atraídos pelo belíssimo lustre de cristal localizado no centro do recinto. Todo o brilho e a pompa dos anéis e das roupas dos convidados deram-se por apagados na presença das duas borboletas noturnas.

Voavam em volta do lustre, ao passo que corria o concerto; e o pó mágico das asas do delírio cobria o local. Para eles, o momento passou semelhante a um jantar à luz de velas, substituindo somente o candelabro pelo lustre. O prato do dia foi, indiscutivelmente, uma cozinha sinfônica de primeira linha.

Terminado aquele clássico evento, viram-se eles novamente do lado de fora. As luzes foram apagadas e as portas trancadas.

Praticamente dominados pela tontura e pela sonolência, retornaram ao barraco, mas de mãos vazias. Quanto à justificativa dos fatos, receberam de Pedro um olhar insatisfeito; olhar de sargento descontente com seus recrutas. De Constantino, porém, receberam um largo sorriso, de quem obteve benefícios com a insólita aventura.

VI - Anjo

Em meados de junho daquele ano, o inverno caiu rigoroso na cidade. Nessa época o abrigo do quarteto era um beco, situado numa rua quase deserta. Vale ressaltar a vida cigana que levavam, mudando-se semanalmente.

Também se faz necessário dizer que o traje do pedinte – da coleção outono/inverno – segundo consta, estava realmente extravagante na periférica e harmoniosa passarela dos olhares citadinos. O casaco, em tecido grosseiro e pesado, faz jus ao sapato, que já está fora da linha de fabricação há anos.

Mas, perguntemo-nos agora: Que tem tudo isso a ver com o acontecido que será narrado neste capítulo da tragicômica história? Bem, quase nada. Não levando em conta, é claro, as condições em que andavam, e sublinhando o fato de que foi o primeiro inverno de Constantino naquele lugar, ; enquanto para os outros não era nenhuma novidade. Excedendo, pois, o que lhes aconteceu ao anoitecer.

No beco, umas quatro ou cinco fogueiras ardiam entremeio as camas, todas espalhadas pelo chão. O local era espaçoso, abrigou naquele dia um número próximo de doze pessoas.

As fogueiras foram se esvaindo, entre dez e onze horas, até que a última exalou seu suspiro final. O súbito silêncio revelou que todos repousavam nos braços de Morpheu, nos poucos minutos em que procuravam acomodar-se.

Fazia uns cinco graus positivos. A madrugada os presenteou com a neblina e a fumaça. Mesmo diante do show, todos dormiam profundamente, menos Constantino, que abriu os olhos um instante e não os fechou mais. Foi quando ele teve aquela visão alucinógena, porém, divina: viu caminhar em sua direção, com passos a um palmo acima do chão, um anjo de seis asas. A mão estendia-se na reta do beco, movimentando-se lentamente. Constantino, estupefato, ficou desprovido de qualquer ação. Tentava exclusivamente, decifrar uma complexa frase, proferida pelos lábios do reluzente mensageiro. A mensagem beirava o grego e o latim. Nada estava claro o bastante, até que veio a recordação de um dia atrás, quando Pedro, o profeta, dizia uma suposta antevisão:

« -- O mensageiro virá e se manifestará perante um dos nossos! » Essas palavras ecoaram aos ouvidos de Constantino. « Um prelúdio da nossa libertação? » Refletiu ele.

Se bem que o alvorecer não ia demorar a chegar, o sono ainda o perseguia. Ele viu, enquanto fechava devagar os olhos, o anjo desaparecendo em meio a fumaça. Também percebeu que talvez não fora o único a presenciar tal passagem. E a calada da noite voltou a reinar, restando apenas ruídos distantes de carros passando na avenida.

VII – Lady púrpura

Dizem alguns sábios do mundo suburbano, que existem dois tipos de mendigos: aqueles que não sabem o que são, nem quem são realmente, e acabam por não aceitar sua verdadeira condição. Por isso eles não sabem pedir. Não aprenderam a ser dependentes e ao mesmo tempo ter liberdade. Em contrapartida, há os que sabem quem são e aonde estão. Esses sabem esmolar e viver, numa sociedade na qual não existe lei. Aceitam com naturalidade o seu destino, mas estão sempre à procura de algo maior. Essa teoria pode ser estendida a todos os pobres e miseráveis deste mundo civilizado. Contudo, centralizemos nosso ponteiro direcional aos seres das ruas. Os que correm perigo ou fazem do seu habitat um lugar mais perigoso.

Os andarilhos, que são bêbados, pertencem a um grupo pacífico. Não se envolvem com o crime, a menos que não tenham escolha.

São também personagens da jornada noturna os meninos menores. Eles são quase sempre viciados, e acabam se tornando marionetes nas mãos de exploradores.

Uma classe impossível de não ser confrontada é a das meretrizes. No quesito destaque, podem ser consideradas as donas do local. Vivem como se fossem felizes, mas na verdade estão abandonadas à mercê e à prova.

Foi em uma noite quente de luar que três elementos da classe viandante resolveram sair para ver mais de perto o movimento e os perigos da Augusta e outras ruas. O senhor Pedro não andava bem de saúde, por isso ficou deitado em alguma calçada, e em abstinência total. Cícero, Elias e Constantino foram dar um passeio.

Para cada um deles, aquelas mulheres, apesar do profissionalismo, exprimiam algum tipo de encanto. Cada um guardava dentro de si um passado, e, dentro dele, uma mulher. O Cícero, por exemplo, já nem sabia mais quando foi a última vez que viu a esposa, a qual deixou há cinco anos atrás. Já para Constantino toda mulher é uma obra de arte. Esse valor era refletido em seu trabalho. Os objetos de pintura eram inseparáveis, tal qual a mulher amada. Assim como o pássaro a construir o ninho, ele também sempre carregou o material de seu ofício.

Constantino caminhava, com tela e pincéis debaixo do braço, quando subitamente teve a atenção desviada, coisa difícil de acontecer. Era uma moça muito bonita que aguardava programa na esquina e foi, num instante, tocada pela figura do artista caminheiro; no que ele cruzou seu ponto sem prestar a mínima atenção nela.

— Senhor! Ei, um momento...!

— Não tenho dinheiro. Respondeu ele.

— Quem falou em dinheiro? Acaso uma mulher como eu não pode ter outra intenção senão a que está pensando?

— Está a trabalho, não?

— Eu sei, mas o movimento está fraco. O senhor é pintor não é?

— Gosta de arte?

— Sei reconhecer um artista quando vejo um...

E ela continuou a falar, seguidamente, sobre uma série de assuntos. Constantino pôs em ação seu olho de analista. Examinou os longos cabelos, depois cada traço do rosto, e por fim o belo corpo. Vestia vermelho a irresistível meretriz, e usava uma porção de acessórios entre brincos, pulseiras e anéis.

O encontro rendeu-lhes uma longa conversa. Talvez até mesmo o início de uma nova amizade.

— Foi um prazer. Eu me chamo Lídia.

— Constantino Alves. Espero vê-la novamente.

A despedida fez sorrir e respirar profundamente o pintor pedinte. Ele chegou a sentir a beira, ou uma ponta de envolvimento. O rosto sorridente e bonito da mulher ficou gravado em sua memória. Atravessou então duas esquinas, sentou - se num degrau de edifício e fez o retrato da moça.

VIII – O funeral

Uma catastrófica notícia esvoaçava entre os pilares verticais do submundo. Ao anoitecer a informação já havia chegado aos ouvidos de todos. E eles ouviram que tinha falecido o senhor Pedro, profeta dos indigentes. O corpo ficou intacto, na mesma posição que estava quando se deitou. Passou o dia inteiro ardendo em febre e expirou pelas dezenove horas, na chegada do ocaso.

Fizeram o funeral. Decidiram velar o velho companheiro, já que as autoridades viriam buscar o cadáver assim que soubessem.

OBITUÁRIO: Segundo o tabelião honorário da cidade dos vivos

Nome do falecido: Pedro Olegário da Silva

Causa mortis: desconhecida, ou talvez ignorada.

Foram postas quatro tochas, uma em cada ponta do esquife imaginário. Na cabeceira uma cruz em madeira, e, sobre o defunto cobertor e jornais.

Era notável a presença dos três amigos mais próximos, além de muitos outros que deixavam seu último adeus.

Cícero encostou-se num canto e ali ficou desviando a atenção ao clarão do fogo. Não dizia nada, enquanto Elias andava inquieto de um lado para o outro. O homem que estava em pé ao lado do corpo era Constantino. Com dois dedos fechou os olhos do falecido e depois não tirou mais o olhar de cima dele.

Logo estava lá, o velho Pedro, a bater às portas do indesejado inferno. Antes de chegar, fez uma alucinante viagem através de túneis coloridos; então se viu debruçado ante uma grande porta, a qual demorou a abrir.

Na chegada, viu na sala de recepção, uma mulher de boa aparência. Ela digitava rapidamente e organizava uma montanha de papéis.

— Por favor, eu sou Pedro Silva, falecido hoje.

— Vai ter que esperar.

Ele ficou na espera por dez, vinte, trinta minutos. Impaciente voltou à recepcionista.

— Vejo que o senhor não está cadastrado. Vá até a sala ao lado e pegue um formulário. Preencha-o e traga para mim.

Ao solicitar o formulário recebeu de novo uma indiferente resposta:

—Não posso liberar o formulário enquanto não pagar a taxa de entrada.

Pedro revoltou-se gesticulando e resmungando a quem quisesse ouvi-lo. De repente encontrou-se o velho, diante de um homem elegante e bem afeiçoado. Atrás dele uma seqüência infinita de filas e guichês.

—Posso ajudar? Perguntou-lhe o simpático cavalheiro. Pedro foi logo ao assunto e explicou tudo desde o início.

—Você deve ser o chefe deste lugar...

—Não senhor. Apenas gerente deste departamento.

O rapaz engravatado insistiu com gentileza que Pedro fizesse tudo que lhe fora requisitado. E ainda prosseguiu:

—Sobre o valor da taxa, sugiro que visite nossa agência bancária.

O velho profeta não viu alternativa. Seguiu as orientações e fez tudo conforme lhe pediram: pagou a taxa, retirou o formulário, fez o cadastramento e por fim adquiriu o cartão que lhe permitia a entrada.

Passando por todas as portas, que eram muitas, chegou finalmente à última. Quando tentou abri-la foi barrado pelo funcionário de terno e gravata, o mesmo que o encaminhou minutos antes.

—Antes que questione minha atitude, eu explico: Estivemos levantando sua ficha e chegamos a conclusão que esta lugar não é para você, em razão de seus feitos e sua vida na terra.

O olhar do velho homem declarou espanto. Segurava no peito um grito de indignação. Dentro do globo ocular apareceu o mesmo túnel que o levara até lá, sendo que após uma longa viagem fez parada no olhar fixo de Constantino a observar o corpo no velório.

IX - Da primeira pessoa

Uma das fontes de subsistência mais comuns a qualquer morador das ruas, ou de famílias da periferia, é sem dúvida o depósito de lixo. Nesse vasto campo onde a humanidade expele seus restos, podem ser encontradas muitas coisas de valor. Ouvi histórias sobre isso, como o menino que achou certa vez uma peça de bicicleta e após um mês já tinha montado seu meio de transporte. Soube também da intrigante revelação que foi dada a Constantino quando esteve no lixão, juntamente com Cícero. Veja como foi.

Nesse reino de impregnante odor, reino que não é o vegetal, nem o animal, e que está mais perto de uma mistura orgânica de vários ingredientes; se cresce abundante quantidade de ervas. Essas plantas são provenientes do solo fértil, que adquire sua força das putrefações realizadas no lugar. Esse motivo é que leva o local a ser chamado de “Paraíso dos abutres”.

O título tem certa razão, mas não pode ser considerado perfeito, já que não fazemos referência aos abutres amazônicos, que são carniceiros da selva. Tampouco se trata de corvos de milharal, tipo gralhas. Falamos, na verdade, de urubus urbanos; os que rondam as cidades e farejam as carcaças nas estradas. Esses, notavelmente, quando estão em casa, emitem enorme personalidade; principalmente na presença de humanos.

Imaginemos agora os dois: Constantino vai a frente revirando tudo que encontra com seu cajado, e Cícero repete a operação a uns metros atrás. Por estar atrasado, somente ele percebe a chegada de Elias, que simplesmente lhe bate no ombro com sinal de saudação e vai em frente. Nessa hora, Elias, que ao contrário dos outros, não anda de cabeça baixa, encara a seguinte cena mística: Constantino em pé, apoiado ao cajado, conversava atentamente com um abutre. Este era maior do que os outros, como se fosse o rei daquele local. Elias ficou imóvel a escutá-los.

— Constantino, Constantino... seu nome de imperador não lhe deu poder algum nesta terra! Afirmou com sarcasmo a ave.

—Que devo fazer então? Retornar?

Sem dar a resposta o grande urubu de rapina bateu asas e foi sumindo no escuro horizonte do depósito.

O vigésimo primeiro século caminhava veloz em direção à humanidade. Muitos previam o fim, outros se preparavam para o começo, enquanto a maioria preferiu ignorar a brusca passagem de 1999 d.C. permanecendo em seus lares e contemplando seu cotidiano.

A televisão e os jornais são os anunciadores deste mundo: escravizador, libertador, lento, veloz, depressivo, otimista, mecânico, enfim; jamais haveremos de encontrar em alguma outra época, maior confusão de identidade pessoal.

X – Portfolio

Até agora, caro amigo, não me identifiquei por completo. Omiti-me por conta da mínima importância de minha pessoa nesta história, apesar de possuir atualmente todos os seus dados fundamentais. Limito-me então a resumir o que se passou comigo quando peguei o ônibus para ir ao trabalho. Tomei, na verdade, dois ônibus, até a estação metroviária. Chegando à Sé, corri para não perder tempo, estava atrasado. Foi quando tropecei e caí de joelhos, onde todos os papéis da minha valise espalharam-se, me obrigando a recolhê-los um a um. Aí é que encontrei no chão, uma pasta preta com uma etiqueta totalmente ilegível. A curiosidade não me deixou em paz até ter conhecimento do seu conteúdo. Fiquei espantado: eram ilustrações belíssimas, que me hipnotizaram a primeira vista.

Situações como essa geralmente despertam dúvidas, e em qualquer das hipóteses almejava fazer o que é certo. Visto que a primeira hora de trabalho já estava perdida, preocupei-me em deixar a pasta na sessão

de achados e perdidos, quem sabe o dono aparecesse. Fui andando rápido para não perder mais hora e parei somente ao esbarrar num velho conhecido:

— Se não é o mercador da Vinte e cinco? Saudei-o admirado, pois não nos víamos há uns meses.

— Há quanto tempo, meu amigo? E vejo que continua bem, terno alinhado, valise à mão...

— Ora, você também não está mau, Elias. O que anda fazendo?

Contou então, que havia voltado ao comércio, aproveitando para falar também de outros fatos que se passaram nos últimos tempos.

No final desse dia me deparei com o anúncio da exposição, a que trouxe muitos esclarecimentos; como a pasta que achei. Era uma coletânea de esboços, e um complemento para a maleta encontrada no mesmo lugar dias antes; a qual continha as sete telas de Constantino. Contaram-me que o Cícero voltou à sua terra, enquanto nosso pintor surreal modernista desapareceu. Talvez agora ele tenha encontrado o que queria. Por isso partiu naquele dia, não para ser um homem tentando alcançar estrelas, mas para se tornar uma estrela tentando entender os homens.

Luciano Osawa
Enviado por Luciano Osawa em 16/07/2006
Código do texto: T195018