Últimos momentos

Os olhos entreabertos vislumbravam rajadas de balas manchadas no céu entre as nuvens. As pessoas que corriam ao seu lado nas mais variadas direções nem percebiam que ele estava ali, parado e imóvel e eram também vistas apenas como vultos. Os gritos, as pancadas tão próximas mal eram ouvidas. Todos os seus sentidos estavam sumindo pouco a pouco. As batidas do coração também diminuíam e a respiração ia ficando mais lenta.

Deitado lembrava da infância difícil no Aracati. Lembrou-se da época em que seu pai vendeu o sítio e foi morar no litoral como pescador. Sua mãe tinha que bordar e fazer artesanato para poder sustentar a casa junto do marido, mas nem isso ajudou, desistiram da pescaria e do artesanato e foram embora a pé para a capital do Estado, Fortaleza.

A vida sempre foi difícil para ele na Capital nunca conseguiu terminar o primeiro grau, trabalhou entregando jornal na rua, como lixeiro e motorista de ônibus. Depois ficou desempregado, aliás foi por motivo de emprego que aceitou ir para onde estava.

Um colega finalmente o notou ali deitado no chão imóvel e por um breve momento ele escutou:

--- Eduardo? Eduardo fala comigo.

Tentava desesperadamente emitir algum som. A imagem do amigo que estava a sua frente e segurando seus braços ia ficando cada vez mais embaçada. Por um breve momento lembrou-se da grande seca de 51, em que para onde olhava tudo era cinza, nada no sertão nascia, via as vacas tentando ficar de pé, mas caíam e não conseguiam se levantar mais, os urubus faziam círculos no céu e o xiquexique tomava de conta da paisagem morta.

O amigo repetia a frase na esperança de que ele ainda estava acordado para dizer alguma coisa.

Na cidade lembrou-se das condições precárias em que vivia. As palafitas, as casas de papelão quando não morava realmente debaixo de uma ponte. Muitas vezes sem ter o que comer, tinha que ficar mendigando pedindo algo para beber e comer.

Novamente a pergunta do amigo. O vulto a sua frente estava aflito, os olhos de quem o olhava estavam já cheios de lágrimas, mas isso ele não via, mal conseguia vislumbrar a imagem da única pessoa que se preocupava com ele.

As rajadas de balas ainda eram vistas pelo homem estendido no chão e aquele brilho o fez lembrar dos fogos de artifício no primeiro ano que chegou a Fortaleza, aquela cena ele jamais esqueceria. O som, o brilho, as cores, as formas, tudo era lindo naquele ano novo.

E essa breve lembrança de ano novo o fez lembrar de outros momentos felizes, lembrou-se quando conseguiu passar em um concurso para lixeiro, ora pelo menos tinha um emprego (pensava) foram tempos de sofrimento mas não tanto quanto o resto de sua vida, foi logo depois que passou no concurso que casou com Gisele, que para a sua tristeza morreu um mês depois do casamento: assassinada em frente a sua casa de papelão.

A fome o consumia depois de ter perdido o emprego de lixeiro, ele ficou muitas vezes doente nessa época, e quando estava mais do que desesperado apareceu àquela oportunidade: Soldado voluntário nos conflitos de São Paulo em 1954.

E ali estava retratado a dura vida de um retirante que sempre viveu na miséria o sangue esparramado no chão, a visão ficando cada vez mais embaçada, sua respiração fraquejando, seu coração parando e num último esforço falou balbuciadamente para aquele que o olhava desesperadamente nos últimos momento de vida e a quem por diversas vezes tinha tentado obter resposta sua.

--- Melhor morrer com bala... --- puxou mais ar para poder continuar a falar --- do que... morrer de fome.

Bruno Edson
Enviado por Bruno Edson em 01/01/2010
Código do texto: T2005804
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