UM DIA UM ENIGMA

Terezinha Pereira

Uma escultura do século XVII de Frei Agostinho da Piedade o deixou intrigado. São Pedro Arrependido. Expressão facial, constituição física, vestes. Tudo lhe parecia familiar. Se já havia visto antes essa imagem, não sabia onde nem quando.

Quando soube que o Museu de São Bento da cidade de Salvador havia sido reaberto a visitantes, teve ele pressa em voltar à cidade que já havia visitado duas ou três vezes. Nunca tivera a oportunidade de entrar naquele museu e era como se lá houvesse algo de importância à sua espera. Nem fazia idéia do que de mais diferente seria guardado no Museu de São Bento. Indo desacompanhado, escolhera viajar de ônibus. Já havia esquadrinhado outros museus e muitas igrejas da cidade. Com guia, sem guia. Com sol, com chuva. Com um pouco de frio, com muito calor. Desde jovem tivera hábito de procurar conhecer e apreciar obras de cunho histórico e artístico durante os poucos períodos de ociosidade que o trabalho lhe permitia. Visitar e revisitar cidades históricas, caminhar em suas ruas e ladeiras descobrindo segredos, seu grande prazer. Sentiu-se invadido por incomum ansiedade na véspera da viagem que deveria durar quase dois dias.

O mosteiro beneditino de Salvador, que guarda uma história de mais de 400 anos, é uma construção das mais antigas que podem ser vistas no país. Sabe-se que lá está guardado o de mais raro que existe nesta América Latina tão pobre na conservação de sua história. Guerras, incêndios, torturas, prisões, corpos sepultos em surdina... Sobrevive o mosteiro como tantos outros conventos e igrejas, e como tantos outros, evidencia o forte poder exercido pela Igreja Católica no Brasil, que dura desde a sua instalação feita pelos discípulos de Santo Inácio de Loyola. Lá chegando, nosso visitante se deteve em ler informações a respeito do mosteiro e do museu. Sentia-se ansioso enquanto olhava quadros, porcelanas, cristais, ourivesaria, paramentos, mobiliários. A última peça que viu foi aquela estátua de São Pedro Arrependido. Diacho. Já havia visto diferentes formas da representação de São Pedro, uma diversidade de pinturas, gravuras, esculturas em diferentes materiais. Face escondida pela barba branca, de pé, ajoelhado, em penitência, sentado. Mas, aquele São Pedro Arrependido pensante lhe afigurava como novidade. Quase calvo, cabelos curtos na parte de trás da cabeça, uma mão enorme sustentando o rosto pendido. Lábios pequenos e carnudos. Barba bem aparada. Olhos semicerrados. Um São Pedro mais jovem do que aquele de barbas brancas que era muitas vezes retratado segurando as enormes chaves da Igreja de Cristo. Este tinha uma expressão tão doce que nunca evocaria a lembrança de um discípulo capaz de três vezes trair o mestre antes do canto do galo. Senhor, eu estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão, como para morrer. Mas Jesus lhe disse: Declaro-te Pedro, que não cantará hoje o galo, sem que tu por três vezes não hajas negado que me conheces. Contou Lucas... E antes do canto do galo o dito estava feito e o santo arrependido. ...chorou Pedro amargamente. O visitante seguiu examinando com interesse a imagem. Um corpo configurado por musculatura forte e veias salientes dos homens que trabalham aos trancos. Seria de puxar redes e mais redes cheias de peixes. Quem sabe, para descansar, ou para pesar melhor as faltas, o santo ajoelhado só de perna esquerda. Apoiando o cotovelo no joelho direito, a enorme mão segurava o rosto pendido, perdido em pensamento. A outra mão, enorme, descansava fechada sobre o joelho apoiado no chão, como se apertasse entre os dedos algum segredo. As chaves? Também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não

Prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus... Mateus, 16, 18-19.

O rosto. Aquele rosto o remetia a uma época anterior. Havia demorado tempo demais na ourivesaria, em outras salas, olhando objetos realmente muito belos, os quais, de poucas vezes, haviam sido alvo de sua atenção: cálices e mais cálices de ouro, prata, pedras preciosas, relicários, patenas, turíbulos, ostensórios, crucifixos. Certo estava agora de que havia visto a imagem quando entrara naquela sala do museu. Dela havia estado bem próximo. O fato de estar ali olhando-a, obstinado, lhe produzia certo incômodo. Começou a transpirar, como se estivesse fazendo muito esforço para recordar algum fato ocorrido tempos atrás. Badaladas de sino de muitas igrejas que marcavam o meio dia foram a salvação. Agradeceu aos céus, quando um padre vestido de escuro o interpelou.

- Os sinos já avisaram do meio do dia. Passa da hora de fechar. Volte amanhã, pela manhã - foi o que disse o padre passando-lhe o braço ao redor dos ombros- Aceita um copo d’água?. Parece que está passando mal.

- Não, estou bem. Deve ser o calor.

- Volte amanhã, filho. Abrimos às nove.

Nosso visitante não sabe como chegou à porta de acesso ao museu nem à

portaria do mosteiro. Sentia uma canseira danada, como se tivesse subido de um fôlego só todos os morros da cidade velha. Vista turva, conseguiu ainda enxergar o ponto de ônibus. Bom seria voltar ao hotel e se deitar um pouco. Acordou na manhã seguinte com o sol lhe aquecendo o rosto. Deu-se conta de que havia dormido durante mais de quinze horas seguidas. Viva. Havia acordado sem a maldita dor de cabeça. Mais de vinte anos de dor de cabeça. Uma dor que o perturbava todas manhãs de, pelos cálculos, uns trezentos e trinta dias de cada ano.

Olhou através do vidro da janela do restaurante do hotel. Um muito azul batia com brandura nas pedras. A figura um homem de pouca estatura, braços e pernas de músculos bem torneados, veias à flor da pele, arrastando uma rede abarrotada de peixes lhe chamou a atenção. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Tinha a impressão de que aquele homem sempre existira. Em um dia remoto havia visto esse mesmo homem saindo de uma difusa nebulosa rosada no meio do mar. Sabia ele que nebulosas se formavam no espaço celeste. Mas aquele homem havia surgido de uma nuvem de fumaça rosada. Lembrava-se com clareza. Aquele espectro que um dia ele havia visto se transformar em figura de pescador era o mesmo homem da estátua de São Pedro Arrependido e o mesmo homem que então avistava chegar de barco.

Havia sido durante uma temporada na praia. Estava trocando de voz, uma abundância de espinhas brotando no rosto. Todos os dias saía com o tio para a pesca. Não queria ser visto pela menina trigueira da casa vizinha, que caminhava pela praia balançando com graça o corpo dentro de um maiô cor-de-rosa, lhe causando um frio na barriga. Achava-se um horror com aquela pele de sapo, os fios espaçados de barba ruiva espalhados pelo rosto. Evitava espelho como o diabo a cruz. Achou mais prudente fugir da garota do maiô rosa que lhe roubava cada minuto do pensamento. E num dia desses, nos últimos dias daquela estada na praia, preferira ficar no cais enquanto o tio pescava. Quando surgiam os primeiros clarões do dia, um a um iam chegando os pescadores. Uma fileira de barcos formada ao longo da praia começava a se movimentar. O zunzum alegre dos homens do mar misturava com o vaivém das ondas, com o revoar dos mais madrugadores dos pássaros. Era como se o nascer do dia fosse saudado com uma festa. Ao tio, dissera que passava mal do estômago, a comida do dia anterior não havia descido bem. O tio concordou que ficasse à sua espera, mas, que ficasse por ali, não entrasse sem companhia no mar, que tomar banho no mar não era de seu costume, que voltaria em pouco tempo porque aquele era dia de lua boa para peixe. Havia ficado a olhar os pontos coloridos das embarcações que foram sumindo lá adiante, como que tragadas pela linha do horizonte. Enquanto pensava na menina do maiô rosa que balançava o corpo com muita graça, avistou uma imensa mancha rosada de fumaça se aproximar da praia. A mancha foi decrescendo, se mostrando como uma figura mais nítida e não sabe ele de que maneira, se transformou num barco estranho, conduzido por um barqueiro estranho, mais estranhas suas roupas. Podia estar certo de que, barco com aquela forma havia visto somente nas figuras dos livros de História ou de Geografia. Podia Ter sido que também no cinema. Mas, naquela praia, onde passava temporadas de férias desde que entendia por gente, nada havia visto de semelhante. O barqueiro usava uma túnica cor de barro, na cintura, um cinto da mesma cor, abotoado com uma fivela de osso. Além do desconhecido, era ele a única vivalma à beira da praia, foi o que concluiu olhando ao redor. Viu o estranho puxar o barco para a areia até onde não ia a onda, usando da mesma habilidade dos outros barqueiros daquele lugar. As únicas palavras que ouviu da boca daquele homem foram que não se preocupasse, que as tristezas da vida, tanto como as coisas boas, eram como aquelas ondas. Que olhar o mar fazia bem ao viver. Não disse nome, não lhe perguntou nada e saiu sem levar ou deixar nada. Não se recorda de como o homem de feição sossegada tomou o caminho do mar. Avistou então pontinhos, pequenas manchas, que começaram a surgir na mesma linha que havia engolido o barco e o homem. As manchazinhas foram crescendo, crescendo, até se transformarem nas centenas de barcos de todas as cores que, dia a dia, partiam e voltavam trazendo o alimento das pessoas daquele lugar. Extasiava-se com aquele regresso. Gostava de olhar as pessoas descalças que vinham de suas casas para se encontrarem com os homens vindos do mar. Todos ajudavam no recolher das redes, no selecionar dos peixes. O burburinho das vozes, os barcos arrastados para a areia, tudo aquilo lhe parecia uma bênção, que, se milhares de vezes tivesse de ver repetir, com certeza, nunca o deixaria entediado. Olhar o mar faz bem ao viver. Logo que encontrou o tio falou com ele a respeito de uma embarcação diferente que havia visto enquanto ele estava no mar em busca de peixes, descrevendo-a com cuidado. Falou do barqueiro de túnica cor de barro e cinto de fivela de osso na cintura. Um riso enigmático foi a reação do tio que, sem comentar o que ouvia, logo foi dizendo que o sobrinho estava indisposto desde quando havia se levantado e, ainda por cima, havia ficado muito tempo estendido ao sol. Que precisava tomar água, pois poderia estar desidratado. O remédio foi ajudar o tio na separação dos peixes. Lembra-se de que, na manhã seguinte, acordou suando frio, estômago embrulhando, vista turva e uma dor de cabeça de estourar, que nunca havia sentido antes. Nesse dia preferiu também não acompanhar o tio. Ficou por entender a reação do tio quando esse lhe contou a respeito do que havia visto, como também ficou por entender o fato de haver ele se esquivado nas duas vezes em que tentou tocar no assunto no dia seguinte. A dor de cabeça, essa passou a fazer parte de sua vida.

Agora, enquanto olhava o mar, via aquele mesmo homem misterioso de sua adolescência. As feições, as roupas eram as mesmas daquele São Pedro Arrependido que vira no dia anterior no Museu de São Bento. Um estranho homem usando estranha roupa, chegando num estranho barco. Levanta-se de rompante, passa correndo pela portaria do hotel, atravessa a avenida de frente à praia sem olhar para lado nenhum. Capta o som de buzinas, chiado de pneus, palavrões. Quando chega, ofegante, à beira da praia, encontra algumas pessoas esticadas na areia curtindo os primeiros raios de sol daquele dia, outras caminhando ou jogando bola antes de pegar no batente. Não. Ninguém havia visto nenhum barco por ali. Bem vestido, sapatos engraxados, um estranho no ninho, era ele. Nem sinal de barco, nem sinal de cais. O que via era uma magnífica baía guarnecida de enormes pedras eternamente à espera do carinho das ondas do mar. Voltou ao calçadão e foi caminhando devagar avenida afora. Podia jurar que havia visto um barco. Recorda que, ao acorda,r havia decidido voltar ao mosteiro. O tanto pensar naquela imagem de santo havia lhe provocado aquela visão, outra justificativa não haveria. A maldita dor de cabeça dava sinais. Santa Aspirina. Não é à toa que a consideram como uma das maiores descobertas do mundo moderno. Comprou um coco gelado e com a água tomou dois comprimidos, na esperança de dar uma cacetada na dor. Depois de tantos anos de tortura, pegar um copo d’água, suco ou que o tivesse em mãos para empurrar as Aspirinas, havia se transformado para ele em gesto automático.

Olhando os prédios da cidade, a avenida movimentada com o começo de mais um dia de semana, sentiu como se houvesse acabado de chegar de além mar e aportado naquele lugar. Era ele o homem que vinha dentro do barco e, da praia, encarava um homem bem vestido que tomava o café da manhã no restaurante do hotel de frente. Sentiu um calafrio, daqueles que só havia sentido quando criança, nas vezes que, sentando no chão ao lado dos primos, ouvia do avô paterno casos de assombração e de almas do outro mundo. Viu-se no mosteiro, sem ser capaz de explicar como havia chegado ao mosteiro, nem de que maneira subira os degraus que levam à sala do santo. Estava de novo a olhá-lo. Se fosse homem de fé, iria lhe rogar que o livrasse daquela dor de cabeça que o afligia desde aquele dia da visagem, quando começava a engrossar a voz e morria de vergonha do rosto cheio de espinhas. Já havia corrido consultórios de médicos de todas as especialidades, já havia se submetido a toda espécie de tratamento e ainda não obtivera nenhum resultado. “Meu São Pedro Arrependido, leve para o fundo do mar essa maldita dor.” Acontece que o concreto é que o impressiona. Mesmo sabendo de cor diversas passagens de Bíblia, a fé lhe parece, por demais, abstrata. Enquanto imaginava como poderia dirigir uma prece aos céus, teve a nítida sensação de que havia sido ele próprio que havia vindo do mar, saído de uma nebulosa rosada, naquele dia em que não quis acompanhar o tio na pesca. Enquanto se aproximava da praia, ele havia visto um solitário adolescente com aparência de desanimado. Chegou até o adolescente e, entre outras palavras, lhe segredou que olhar o mar fazia bem ao viver.

O que haveria de concreto em tudo isso era o que indagava a si mesmo. A ânsia de conhecer o Museu de São Bento. De onde havia surgido? O espanto diante da imagem de São Pedro Arrependido. A recordação da primeira visão que tivera daquele homem. A visão que havia tido, que lhe parecia haver sido do mesmo homem na praia, pouco antes de voltar ao museu. A sensação de que era ele mesmo aquele homem. Concretas abstrações. Quando jovem, como naquela ocasião em que visitava o tio na praia, ainda era capaz de ter fé. Abstrata não seria a infernal dor de cabeça que passara a fazer parte de sua vida. Ou seria. Faltava-lhe orações, era o que muitos lhe diziam. Olhar o mar faz bem ao viver.

Quando chegou em casa, a mulher o esperava vestida de rosa, sua cor preferida desde jovem, da época em que caminhava pela praia, gingando com graça o corpo, com o objetivo único de despertar a atenção de um jovem arredio, que fingia, tinha ela a certeza, que não a avistava. Recebeu-o com um beijo que foi retribuído com carinho. Em cima da mesa viu um envelope pardo grande, destinatário preenchido à máquina, sem nome de remetente. “Acabou de chegar, meu bem.” Dentro do envelope uma foto tamanho 25x20. Era uma foto dele, de costas, contemplando a imagem de São Pedro Arrependido, no Museu de São Bento. No verso da fotografia, os dizeres: Um dia um enigma.

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 03/06/2005
Código do texto: T21794