Cinza da folha

De fato, na verdade mesmo, saber não sabia. Talvez não saberia nunca. Afastamentos, deslocamentos demais. Rotular, eles – outros – rotularam. Diagnosticar que é bom nada. Dislexia, apatia, covardia, culpa da mãe, culpa da tia: mau caratismo. Vai saber, vai saber... Daí inventaram uma nova: déficit de atenção concentrada. Como se houvesse uma atenção desconcentrada, como suco de caju de garrafa, por exemplo. O fato é que o menino deu pra ser errado, um ovo gorado. E na família de Seu Julio, o conservador, teria de ser é engenheiro, dentista, doutor. “Ter uma profissão”. A maior aflição.

Uma necessidade intra-uterina de ter que ser. O destino todo já traçado. No caso dele, a lápis 6b e esfuminho, enevoado, espraiado. Nos almoços de domingo, nas festinhas regadas a brigadeiros, os priminhos sem entender:

- Vamos brincar, primo.

Os apelos. Sem resposta. Sempre.

Não que fosse de todo mal, teriam de carregar um a menos. Na família de muitos homens e uma única menina, sobrava ele de companhia a prima. Emudeciam-se em condescendência mútua. Um pacto de sangue infantil, velado, ao natural na pureza virginal de ambos. Só mais tarde as brincadeiras de médico. Muito mais tarde.

Armavam-se então de lápis de cor, caixinha com trinta e seis, daquelas de bolso. A tal da deficiência vinha em forma de nuvens, dias nublados. Talvez a única criança a aprender a fazer primeiro nuvens em vez de sol. Uma tendência a ser lúgubre.

Cresceu. E dizem que, quando encontraram o corpo, dos pulsos cortados vertia um sangue diferente. Morreu em uma explosão de cores, linda, rabiscando arco-íris em sua passagem. Finalmente outro tom. Só ela chorou.

Douglas Evangelista
Enviado por Douglas Evangelista em 28/08/2006
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