"Apelido Infame" = Conto=

-Meu amor, diga a verdade: você já conheceu algum cara mais rabudo nesse mundo que esse seu marido aqui?

- Acho que não, meu bem. Sorte é uma coisa que você recebeu no atacado quando nasceu, querido queridíssimo.

- Olha só, meu anjo: menos de um ano de empresa e já sou o campeão nacional de vendas de seguros. Aliás, modéstia à parte, vendo mais que o resto da cambada toda reunida. Comigo é pa pum. É conversar e vender no ato, sem mais delongas, sem chance de perder vendas. Não é à toa que você está indo para o Mato Grosso comigo e totalmente às custas da empresa. Tudo pago, sem um centavo de despesa feita por mim, pra fechar o maior negócio que a empresa já fechou até hoje. E tem mais, minha gostosura: ficaremos no melhor hotel da região e estou autorizado a esticar por uma semana, ou até mais, se precisar ficar lá por mais alguns dias.

- O que é que o homem quer colocar no seguro?

- Uma porrada de coisas além da própria vida. Um monte de veículos, imóveis, lojas, sei lá mais o que...

- Grana alta, não é, amor?

- De comissão? Altíssima. Pelo que me disseram na empresa, é coisa pra colocar o burro na sombra por um bom tempo se eu quiser tirar umas férias compridas.

- Aquela ida à Europa, por exemplo?

- Por exemplo. Mas você não preferiria ir a Nova York fazer umas comprinhas?

- Pra quem nunca saiu do país, meu bem, qualquer viagem ao exterior será uma maravilha.

- Estamos quase chegando à terra do clientão. Vou acelerar esse carro pra gente chegar logo, resolver a parada, encher o rabo de dinheiro, e cair fora o quanto antes.

- Não exagere, Ed querido. Você sabe que tenho pavor de velocidade.

Edvaldo fez o resto da viagem calado. Calado e pensando no quanto faturaria com aquele monte de seguros a fazer. Não contara tudo à esposa por querer fazer-lhe uma boa surpresa, mas a verdade é que o total da negociação seria muito mais que vultuoso. Seria vultuosíssimo, e ele estava autorizado a negociar da melhor maneira possível sem que mexessem em sua comissão habitual.

- Senhor José Eduardo Cardoso, estou chegando, meu amigo!! Logo estaremos sentados a uma bela mesa e negociando pra valer. Prepare-se.

Ao chegar à cidade, Edvaldo logo constatou que era bem menor do que esperava. O que, aliás, não tinha a menor importância, visto que seu cliente tinha diversos negócios espalhados por boa parte do estado e até mesmo fora do estado.

- Amor, vamos parar no primeiro bar ou restaurante com aparência decente. Estou morto de sede.

Alguns minutos depois os dois saíam do carro e entravam em um pequeno bar e restaurante na que parecia ser a única avenida da cidade.

- Boa tarde, senhores. Meu amigo, por favor, dois guaranás estupidamente gelados.

Alguns dos presentes responderam simpaticamente ao cumprimento de Edvaldo e apenas um homem o olhou com ar de desprezo.

Edvaldo encarou o homem que parecia mal humorado e exclamou com exagero:

- Olha só quem eu vejo aqui!! Meu grande amigo Zé Galinha em pessoa!!

O homem magro e comprido continuou a encará-lo, mudo, mas notavelmente empalidecido. Quando resolveu falar, o fez em voz alta, mas sem exagero, suficiente apenas para ser ouvida por todos:

- O senhor cometeu um grande engano, senhor. O primeiro foi chamar-me por esse apelido infame. O segundo foi dizer que sou seu grande amigo. Não repita o apelido se quiser continuar vivo.

- Epa! O que é isso, Zé...Está me ameaçando?

- Entenda como quiser. Não repita o apelido se não quiser morrer agora mesmo e deixar essa gostosura ao seu lado viúva.

Edvaldo cresceu para cima do homem:

- Que folga é essa, seu filho da puta? Chamar minha mulher de gostosura na minha cara?

- Não é folga, Edvaldo. É franqueza. Uma delícia de mulher essa sua esposinha.

- Já entendi tudo, Zé Galinha. Você está querendo apanhar. Só pode ser...

Mal acabou de falar e Edvaldo ouviu os sons de várias armas sendo engatilhadas.

O homem a quem chamara Zé Galinha sorriu e disse com cara de satisfação:

- Edvaldo, filho de uma vaca e de um corno bêbado, grande filho da puta, aqui você está em meu território. Levante uma das patas pra mim e em alguns segundos estará morto. Ajoelhe-se e peça perdão por ter repetido o apelido.

Edvaldo pensou em desobedecer, mas as armas foram apontadas para ele e o bom senso prevaleceu.

- Agora que você pediu perdão, vamos lá. Diga-me o que o trouxe à minha cidade.

- Sua cidade? Você por acaso é dono da cidade toda?

- Praticamente. Agora responda à minha pergunta. O que o trouxe aqui?

- Vim fechar um negócio de seguros.

- Com quem?

- Está querendo saber demais. Tenho direito ao sigi...

Um tapa na cara, bem estalado, interrompeu-o.

- Com quem?

- Um tal de José Eduardo Cardoso.

O homem que ele chamara de Zé Galinha soltou uma sonora gargalhada.

- E você não sabe quem é José Eduardo Cardoso, ô marido da gostosura?

- Não tenho a mínima idéia. Sei apenas que tem um grande número de bens e quer colocá-los no seguro.

- José Eduardo Cardoso sou eu. Eu, a quem você, maldosamente, colocou o infame apelido de Zé Galinha depois de acusar-me, falsamente, de ter roubado as galinhas de dona Yolanda, a velhinha que era minha vizinha e por quem eu tinha especial consideração.

- Ora essa, José! Vai me dizer que até hoje leva a sério o que foi apenas uma brincadeira de criança. Não é possível uma coisa dessas. Éramos crianças e...

- Éramos crianças, mas por sua causa cresci com fama de ladrão de galinhas, a cidade inteira passou a chamar-me por esse apelido maldito, e minha infância foi uma desgraça. Tudo por causa de um filhinho de papai, de um ordinário de um filho de prefeito, que era você. Você, seu pai, sua mãe, sua irmã. Sua maldita família aderiu à sua maldade e todos juntos foderam com a minha infância. E com a minha juventude, sabia? Por causa da pecha injusta que vocês me impingiram, tive que sair da cidade, ir para bem longe, pra conseguir meu primeiro emprego. E eu não queria nem poderia ter saído da cidade por causa de meus pais que, como você bem sabia, eram doentes e precisavam de mim. Eles morreram sozinhos, sem amparo algum, porque eu estava longe, batalhando para enviar dinheiro a eles. Isso, para mim, é a mais imperdoável das conseqüências de sua maldade.

- Meu pai deu todo o apoio aos seus pais quando eles ficaram doentes, José. E o que é que minha brincadeira na infância teve a ver com sua adolescência?

- Apoio de político filho da puta. Enviou alguns mantimentos durante a campanha e parou logo que foi eleito novamente. Fez média usando meus pais, como todo político ordinário que se preza. Você se esqueceu que também espalhou o boato a respeito de minha homossexualidade? Outra mentira asquerosa pra acabar de ferrar minha vida. E ainda por cima, maldito, conseguiu até testemunhas, sem dificuldade alguma, que “me viram” dando no mato. Eu cresci planejando sua morte o quanto antes, sujeito asqueroso.

- Bem, a conversa está muito boa, mas preciso voltar...Não sou obrigado a ficar aqui ouvindo mentiras e ameaças.

- Quem disse que você sairá daqui? Enquanto conversávamos, o seu belo carro sumiu. Evaporou como as galinhas de dona Yolanda. A única linha de ônibus da cidade é minha, o único avião é meu, assim como muito mais coisas do que você possa imaginar. Portanto, fique sentadinho aí, bem calado e ouça o que tenho pra lhe contar. Vamos começar falando de seu pai...

- O que é tem meu pai? Meu velho já morreu e acho bom respeit...

- Quem sabe o que é bom ou não aqui sou eu. Ainda não entendeu isso? Seu pai morreu porque recebeu muito bem uma emissária minha. Enviei para ele, de presente, uma linda prostituta, muito jovem e atraente demais, mas com uma doença venérea arrasadora, como você bem sabe. Para a senhora sua mãe, aquela vaca insaciável, enviei um jovem que tem cara de mais velho, mas que mal acaba de chegar aos dezesseis anos. Dentro de uns dois dias toda a cidade estará recebendo fotos de sua velha e devassa mãe trepando com um menor de idade. Logo depois que as fotos forem distribuídas os pais do menor farão uma queixa na delegacia. A senhora sua mãe, a ordinária que passou a vida colocando chifres em seu pai, responderá por pedofilia. O melhor de tudo é que nem sua linda irmã escapou de minha vingança.

- Minha irmã era uma criancinha naquela época...

- Conversa. Ela é apenas três anos mais nova que você e cansei de ouvi-la, junto com as colegas de colégio, chamando-me de veado quando me via na rua. Ela incitava a turma e nunca me deu folga. Eu soube que ela se casou muito bem, mas enviuvou alguns meses depois. O marido morreu em um acidente com a tal asa-delta. Ela se tornou uma bela, jovem e rica viúva.

- E o que você vai fazer com ela? Matá-la?

- De maneira alguma. Ela já está seriamente envolvida com um de meus ajudantes, digamos assim. Um grande especialista em depenar viúvas de todas as idades. Dentro de pouco tempo ela estará pedindo esmolas na rua ou rodando bolsinha. Pode ter certeza disso, crápula.

Edvaldo calou-se por um bom tempo recordando o sofrimento intenso de seu pai, acometido de uma estranha doença que o tornou uma esquálida figura em pouco tempo. Quanto à sua mãe, sabia que falavam mal dela, muito mal, mas em tempo algum houvera uma prova sequer de sua tão falada e constante infidelidade. A coroa sabia ser discreta e não deixava rastros.

- Pensando na morte da bezerra, ordinário? Ou maquinando mais alguma calúnia contra alguém? Você e sua família são especialistas nisso. Vamos falar de você agora. Ou melhor, de sua deliciosa esposa.

- O que é que tem minha esposa?

- Pra começar, ela não é sua esposa. Você se casou com uma pessoa que na verdade nunca foi sua. Era e é minha. Uma moça bonita, refinada, elegante, que foi criada em um orfanato dirigido por freiras, mas que é minha amante há anos. Enquanto essa bonequinha esteve ao seu lado, seus amigos agradeceram muito. Ela deu para todos eles de uma maneira que não dava pra você.Tudo que você pensava em pedir e não tinha coragem, ela fazia questão de oferecer aos seus melhores e mais antigos amigos. Sexo oral era apenas um dos itens que você não chegou a conhecer. Nisso, essa menina é o máximo. Não é, minha vagabundinha preferida?

- Ô, se é, José...Coloquei tantos chifres na testinha dele que nem sei como ainda consegue ficar em pé. Fiz tudo que meu querido mestre mandou.

- Mas valeu a pena obedecer-me, não valeu? Agora você herdará tudo que ele conseguiu até agora. A casa quitada, o carro do ano, a casa de praia, as ações, sem contar aquela grana altíssima do seguro de vida que a empresa deu a ele de presente. Satisfeita?

- Se...Você nem imagina, querido. Foi divertido ficar com ele, devo confessar. Não é grande coisa na cama, mas como presenteia legal! Ganhei tantas jóias, tantas roupas chiques, tantos presentinhos caros que você nem imagina. Parece que ele adivinhava: cada vez que eu ia pra cama com um dos amigos dele, ou um dos chefões da empresa, ele me dava um presentão caríssimo. Sempre coincidia: um chifre a mais, um presente lindo a mais.

Edvaldo não queria acreditar. Tudo aquilo devia ser apenas um sonho ruim e demorado demais. Não era possível que sua esposa, sua amada, sua paixão eterna, a loucura mais gostosa de sua vida, fosse apenas uma farsa. Todo o restante ele agüentaria, mas saber que ela não era quem ele pensava que fosse, era demais. Tanta coisa acontecendo apenas por causa de brincadeiras de infância...Só podia ser mesmo um pesadelo passageiro.

- Pensando de novo na morte da bezerra, tipo à toa? Saiba que esperei pela melhor fase de sua vida para trazê-lo à minha presença. Coisa que um cara rico como eu pode fazer quando quer. Se eu tivesse nascido rico, você se lembraria logo quem era José Eduardo Cardoso, não é mesmo? Nome de rico se guarda fácil...

Edvaldo respondeu com uma pergunta:

- E comigo, o que você pretende fazer?

- Como sua “esposa” não poderá herdar nada com você vivo, só me resta encurtar seu tempo de vida. Vocês voltarão juntos para São Paulo e em alguma parte do caminho acontecerá um assalto. Você, que é um cara valente, capaz de desgraçar a vida de qualquer um apenas com a língua, reagirá e será morto pelo assaltante. Sua esposa, minha querida, conseguirá escapar depois de entregar tudo ao bandido e correrá para a primeira delegacia que encontrar. Simples, não é? Mais simples do que livrar-se da pecha de homossexual e ladrão de galinhas. Vamos andando. Seu carro está à sua espera na estrada. Será só ligar e partir o quanto antes.

Edvaldo disfarçou um suspiro de alívio. Se podia sair dali dirigindo, havia uma chance ainda de salvar-se. Pegaria outro caminho, faria o carro voar, pegaria sua arma embaixo do banco e faria a mulher de refém. Enfim, lutaria.

Entrou no carro esforçando-se ao máximo para manter o controle, reajustou o banco, fechou a porta e chegou a ameaçar um aceno de despedida a Zé Galinha enquanto o carro saía lentamente.

Não teve tempo de completar o gesto. O tiro entrou-lhe pela nuca e arrancou um pedaço da parte superior de sua cabeça.

- Um metro de andança já é parte do caminho...Quando chegar ao inferno diga que foi o veado do Zé Galinha que te enviou, corno dos infernos.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 03/08/2010
Código do texto: T2415626
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