DEPOIMENTO

Então agora o senhor veja. O que é combinado, não fica caro pra nenhum dos dois, e o senhor tem que concordar que ninguém tem sangue de barata, nem eu tenho cara de palhaço. Eu não sei nada, não tenho leitura, nem sei direito as letras, mas conheço alguma coisa da vida e tem horas que a gente não agüenta. Tá certo que ela já tem quase oitenta e cinco, as próprias filhas vem com aquelas brincadeiras de que a velha já anda fazendo hora-extra, que já está quase na hora de plantarem um jardinzinho em cima dela, coisa e tal, que eu nem ligo que gente é bicho que, porque fala, acaba falando o que não deve. E eu até concordo que ela até que é uma velha muito da enxerida, mesmo, nisso eu concordo sim, mas se tem uma coisa que eu acho muito triste é a ingratidão, não sei se o senhor pensa assim também, cada um pensa de um jeito. Então agora o senhor veja, não é porque ela é velha, que está com o pé na cova, como o povo por aí diz, e no final agora é que está mesmo, Deus me perdoe, e o senhor me desculpe o jeito que eu falo certas coisas, mas tem horas que se não for assim acaba saindo do jeito que não deve. Quando eu conheci a filha dela, que é a menor, eu andava na pior, o senhor não imagina, nem dinheiro para um ônibus eu tinha. Eu era novo aqui no lugar, tinha vindo de longe pra um serviço em obra, e com um mês o patrão me mandou embora, saí com menos dinheiro do que quando cheguei. Mas aí já tinha conhecido a patroa, e a gente se apaixonou, e foi um amor tão grande que até hoje estamos juntos. Então o senhor veja, o que é que eu tinha que fazer numa situação dessas, comprometido com a moça e numa pindaíba de dar dó? Enquanto arrumava as coisas pra voltar, sem saber se ia voltar mesmo, a velha chegou em mim e perguntou se eu amava de verdade a filha dela, e eu disse que sim, e ela falou Então não vou deixar você ir embora, ela também gosta de você, e você fica morando aqui em casa, só peço que vocês me respeitem e respeitem esse teto, e se quiserem casar podem continuar morando aqui. Então ela é uma boa mulher, isso eu posso garantir para o senhor, e seria muita ingratidão da minha parte deixar fazerem isso com ela, mesmo ela estando quase morta, como parece que é o caso. Então com tudo isso não tem como a gente se controlar, agora então o senhor veja. Me ligam lá no serviço dizendo pra eu correr pro Pronto Socorro que a dona Zefa teve outro derrame e foi todo mundo lá. Eu chego no Pronto Socorro e minha mulher se acabando de chorar, aquela desgraceira toda, a família desesperada porque o médico deu a notícia. Eu fico lá bem uma hora, consolando todo mundo, buscando um saco plástico com água gelada pra botar na cabeça da patroa que está se acabando de doer, na condição de pessoa-sem-mãe. Uma danação, o senhor bem sabe como é que são essas horas de morte, que por mais que as pessoas brinquem como eu lhe disse antes, na hora que acontece de verdade é um deus-nos-acuda, o senhor bem sabe. Então de forma que liguei para o serviço pra dizer que estava de luto, e perguntei quantos dias eu tinha de direito, e a pessoa do depê me disse que eu tinha que estar no serviço no dia seguinte, porque sogra não é parente, o senhor veja se isso lá é resposta que se dê em uma hora destas. Depois que chegaram meus cunhados é que eu fui procurar a igreja de crente que ela freqüentava para cuidar do velório, e a zeladora ficou de ligar para o pessoal para avisar do acontecido. Aí passei na funerária que tem ali na Coronel Vieira, escolhi o caixão e uma corbelha de flores, até que não saiu tão caro como eu esperava, setecentos e poucos reais, cheque pré e depois eu resolvia com a parentada como é que a gente ia fazer. Tudo acertado, pensei eu, ainda dei um tempo, uma circulada pelo centro, uma olhada nos jornais da banca pra botar as idéias em ordem. Foi quando parei na padaria, liguei pra casa e avisei a Neuza, que é uma amiga da família, Olha Neuza, avisa todo mundo que a dona Zefa faleceu, e o velório, e o enterro, e aquela coisa toda, liga para a família dela em Itapirana, dona Zefa saiu menina de Itapirana, mas os parentes ainda moram lá, Liga, Neuza, e avisa todo mundo. Pedi uma cerveja, e mal o sujeito botou em cima do balcão me apareceu o meu cunhado Crove me dizendo pra voltar pro Pronto Socorro, que a mulher ainda estava viva. Então o senhor veja, não sei dizer o que se passou dentro da minha cabeça, foi como tivesse dado uma volta, o susto foi tão grande que eu quase caí, o senhor imagina. Como é que a pessoa está morta e dali a pouco está viva? Paguei a cerveja e nem tomei nada, o senhor calcule o prejuízo. E no caminho de volta para o PS eu disse Mas e o derrame, Crove, e ele Foi feio, mas ela não morreu não, o médico se enganou, ela tá viva ainda, não passa dessa noite, o doutor falou, mas morrer ainda não morreu não. Então chegamos no Pronto Socorro e estava uma confusão, o povo espalhado pela calçada, tinha parente rindo, parente chorando e outros já pedindo a Deus para a mulher morrer logo pra ninguém passar vergonha. O senhor acha justo, me diga? Na hora me deu uma agonia, então o senhor veja, o que é que um cristão faria na minha situação? Então chamei o Crove, Crove, vamos lá que eu quero ver a dona Zefa. Entramos e falei com a mocinha do balcão, Que é que está havendo, minha sogra morreu ou está viva? Então ela disse sem me olhar, O médico já falou com a família, agora o senhor tem que esperar a hora da visita, E eu disse que porra é essa de visita, menina, eu quero saber direitinho o que é que está acontecendo aqui, mas ela falava comigo sem me olhar, então o senhor veja, ela falava e ao mesmo tempo batia no computador, ela falava comigo olhando para o computador, parece que ela estava lendo o que tinha que falar comigo, e eu perguntei Moça como é que ela está, E ela disse tem que esperar a hora da visita, e eu disse Mas que diabo de médico é esse que não sabe quando uma pessoa está viva ou está morta, e ela não respondeu, e eu fiquei esperando e ela não respondeu, e olhei o Crove e ele olhava pra baixo, e então pensei que naquela hora alguém estava fazendo alguma coisa muito errada e eu estava sendo enganado, e aí, o senhor veja, aí eu não agüentei. Só sei que quando o médico entrou pela porta eu tive certeza que era ele, como foi o senhor não me pergunte, eu tinha certeza pela cara dele que ele é quem tinha falado pra minha mulher que a mãe dela estava morta sendo que ela estava viva. Então foi isso aí, o senhor me perdoe, mas naquela hora ali não era eu. Eu perguntava as coisas e queria saber do acontecido, porque eu estava preocupado era com a minha mulher que reclamava muito de uma dor na cabeça, e aquele homem de branco me olhando daquele jeito, me olhando como quem olha um bicho estranho dentro de uma jaula, de canto de olho, sem me responder nada, fazendo pouco da minha agonia, e aquele risinho debaixo do bigode, ali eu não agüentei, moço. Se ele tivesse me explicado o que tinha acontecido talvez eu até entendesse, vai ver nem tinha acontecido nada, mas o diabo do médico fez que não era com ele, moço, e aí eu não agüentei. Desci o braço mesmo, dei sem dó, catei a primeira coisa que vi na frente, que era uma pedra que estava em cima de um monte de papel no balcão, e enfiei na cara dele, o senhor veja, foi uma sanguera só, o sangue esguichou até na minha roupa, na hora levei um baita susto com aquele homem caindo por cima de mim, mole daquele jeito. Agora o senhor me diga, Como é que alguém estuda tanto, o senhor me diga, como é que alguém fica estudando tanto tempo enfiado numa faculdade pra ser médico, e no fim não saber dizer se uma pessoa está viva ou está morta? E ainda dar a notícia para a família, e depois armar essa confusão toda? O senhor me desculpe, eu não tenho estudo, mas sei bem quando uma pessoa está viva ou está morta, qualquer apalermado sabe. Eu não tenho estudo, eu já disse isso pro senhor, mas tenho vergonha na cara, não fico fazendo pouco dos outros, não senhor, não fico olhando de rabo de olho e rindo de um jeito como quem está fazendo pouco, achando graça da situação, desrespeitando ninguém. Na hora que catei na mão a tal da pedra era como se eu dissesse Olha aqui seu moço, não é assim que se trata a mulher que me confiou sua casa e sua filha, pelo menos não na minha frente, toma aqui o que você merece. O senhor veja, o que é que dona Zefa ia pensar de mim se eu não fizesse nada, me diga, do jeito que ela é era bem capaz de querer espalhar na vizinhança que eu não sou homem. Mas não foi por isso que eu perdi a cabeça não, doutor, foi por causa da revolta, mesmo. Agora pelo que o Crove me disse ela está bem mal, mesmo, não passa dessa noite. Agora o senhor pense comigo uma coisa: da hora em que ele disse pra minha mulher que a velha tinha morrido, até a hora que ele percebeu que ela ainda estava viva, ela deve ter ficado sem medicação, o senhor não acha? Afinal de contas, nunca vi ninguém dar remédio pra defunto. E quem que me garante que não foi isso que piorou a situação dela, e que é por isso que ela vai morrer? Porque pelo jeito ela vai morrer mesmo, não tem mais o que fazer. E o pior não é isso, e essa dor de cabeça da minha mulher que não passa, já pensou se acontece alguma coisa com ela e eu aqui, explicando tudo que aconteceu pro senhor? Se bem que tá todo mundo lá com ela, mas não sei, minha patroa é muito nervosa, se acontece alguma coisa não sei o que vai ser. Agora, pelo amor de Deus, não me prenda. Eu sei que eu errei, não se bate assim em um médico, um homem que estudou tanto na vida pra salvar as pessoas da morte, mas poxa vida, numa situação como essa, o senhor veja, eu perdi o controle, o senhor não entende? E eu não posso ficar preso, doutor, amanhã tenho que estar cedo na firma, senão me descontam o dia, capaz até de me botarem no olho da rua. E já já o doutor fica bom, vai tomar uns pontinhos na cara e volta pra casa, o senhor vai ver.