Contos do meu amigo que nunca mentiu

Cemitério I

Conversa no cemitério:

— Boa noite, amigo!

— Boa noite... Hoje a lua está bonita, né?

— Decerto. As luas de novembro são as mais belas, registre-se.

— Não me lembro de ter tido o prazer de conversar com o amigo antes...

— Morri semana passada. Sou novo nesta praça. Prazer meu nome é Baltazar.

— É um prazer. Desculpe não apertar a mão que me ofereces, mas perdi meus braços num atropelamento de trem... Sinto muito...

— Oh, desculpe a indelicadeza! Não havia notado. Mas considero minha mão apertada então. Eu perdi a vida, ou ganhei a morte se preferir, num súbito ataque do coração. Puxa, fico imaginando o que seria morrer numa situação ferroviária como foi a ocasião de seu falecimento.

— Bem, diria que é uma experiência única.

— Lembra-se?

— Apenas do leite de magnésia.

— Como?

— Sai pra comprar leite de magnésia. Andava um tanto distraído por umas questões bancárias... esqueci o que fora buscar. Tive que voltar pelo mesmo caminho. Um trem súbito, como seu infortúnio cardíaco, acertou-me e me fez isto que estás vendo. Ou fez aquilo que não vês. Morri. Creio que morri de forma rápida, por isso morri bem.

— Qual é mesmo sua graça?

— Estevão. Em vida balconista de uma loja de pregos.

— Já me apresentei. Baltazar. Fui por longos cinqüenta e sete anos um advogado muito requisitado. Litígios de família.

— Seja bem vindo, caro amigo defunto!

— Grato.

Fizeram silêncio por breve momento.

— Aqui é sempre assim... ?

— Assim como?

— Me parece ser um cemitério um tanto parado. Meio sem animação. Achei que os defuntos organizassem alguns eventos.

— O amigo é novo por aqui. Nunca participou de nenhuma de nossas atividades mortuárias. Afinal seria difícil passar tanto tempo sem absolutamente nada pra fazer.

— Que atividades mortuárias terei o prazer de presenciar?

— Bem, a maioria gosta de futebol. Mas um grupo, composto pelos sem perna, entre outros, prefere jogar cartas. Eu claro jogo buraco. Teve um tempo que apareceu um dominó. Mas alguém sumiu com as senas. A gente enjoou do dominó. As cartas são de um velho sargento que morreu num bordel. Dizem que era pederasta. O fato é que não gosto dele. Mas não tenho muitas escolhas: buraco ou futebol.

— Bem que gostaria de jogar uma partida de futebol. Porém não poderia, já que sou cardíaco. Entretanto nunca me dei bem com cartas... Até porque vejo algo de irônico no nome do jogo que me propõem. Jogar buraco num cemitério tem algo de tragicômico...

— Olha, um grupo de novatos costuma organizar pescarias mais praquele lado de lá. Eram aficionados por pesca quando vivos. São só três, os pescadores. Vivem resmungando!

— Por que resmungam, afinal?

— Por terem apenas duas varas de pescar.

— De fato uma situação bem chata. Mas poderiam resolver isso de forma simples. Quem pescasse um peixe passaria o caniço para quem estivesse aguardando.

— Sim. Mas não poderia nunca funcionar assim.

— Mas por qual razão?

— Pelo fato de não haverem peixes por aqui para serem pescados. Nem por redes, caniços, tarrafas ou qualquer espécie de anzol.

— Não?

— Não. O caso é que eles apenas pescam. O fato de se pescar não significa que procurem realmente pegar algum peixe. Apenas pescam. Sem esperanças de um dia parar de pescar. E imóveis durante anos permanecem com seus caniços na mão. Volta e meia brigam pela vara de pescar. Mas nunca pescaram, nem jamais pescarão um peixe sequer.

— Não creio que essa atividade seja a mais adequada à minha distração funeral.

— Prefiro as cartas. Não ao futebol. Mas este me é impossível por faltar em mim uma das pernas. As cartas jogo com as orelhas. Já sabes que braços o trem me negou de ter.

— Decerto.

— Por que não inventa algo pra ocupar seu tempo durante esta estada, longa por sinal, neste nosso amado cemitério?

— Sugere algo? Eu tinha um passatempo muito próprio em vida. Gostava de carros antigos. Tinha vários. Pena não poder trazer eles para cá. Poderia dirigir um pouco pelas noites fúnebres desta nossa condição de mortos.

— Não espere por isso, caro amigo.

— Gostaria de ouvir um pouco de música. Os mortos não sabem fazer músicas? Ninguém aqui trouxe um violão ou pandeiro?

— Aqui todos dormem. Não seria conveniente fazer serestas ou bailes, não acha?

— Decerto que seria muito inconveniente num cemitério.

— Não seria educado acordar os mortos...

E calaram-se os dois defuntos.

Guilherme Drumond
Enviado por Guilherme Drumond em 04/10/2006
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