Viagem

A estrada se mostrava cada vez mais longa. Podia avistar as próximas curvas, umas após outras, infinitas, parecendo levar ao horizonte, onde termina a terra e começa o céu. O vento em meu rosto acalmava o cansaço, espantava o sono que teimava dominar meu corpo, forçando minhas pálpebras a se fecharem. Mas o caminho precisava ser percorrido. O momento do descanso ainda não é chegado.

Muito tempo já tinha se passado desde que iniciara aquela jornada, a princípio prazerosa, mas que agora se mostrava repugnante, tediosa, enfastiante. Nada mais me chamava a atenção, a não ser... o grande número de insetos que encontrava pelo caminho. Zumbidos de asas batendo enchiam meus ouvidos, como se o badalo de um gigantes sino fosse soado a poucos metros de distância, fazendo meus tímpanos vibrarem com tal intensidade, que o eco retumbasse dentro do meu cérebro por horas e horas. Insetos apareciam por todos os lados, a direita e a esquerda, a frente e atrás. Parecia uma daquelas noites em que a chuva está próxima e, de dentro do carro, você percebe a presença desses seres através das manchas deixadas em seu para-brisas, na ânsia de fugirem da precipitação. Um mal estar percorreu minha espinha, uma sensação de nojo misturada com desprezo me fazia acelerar a velocidade, mas quanto mais rápido andava, deixando insetos para trás, mais insetos apareciam no caminho. Parecia que estavam por toda a estrada e não adiantava tentar fugir, pois era impossível. Enquanto permanecesse na estrada, desfrutaria da companhia desses seres. Lembrei-me da antiga dúvida sobre a chuva: “se corrermos na chuva, nos molhamos menos ou mais”? Eu, agora, estava na mesma situação, com a única diferença de que as gotas cristalinas da chuva davam lugar a seres horripilantes, com pernas cabeludas e asas transparentes, emitindo aquele zunido intragável. E eles eram de todos os tamanhos: alguns maiores, outros menores. Alguns com expressões zangadas, outros indiferentes, mas nenhum demonstrava qualquer traço de sorriso. A verdade é que, se um sorriso aparecesse na face de um desses insetos, só poderia ser um riso sarcástico, porque era querer demais que um inseto emitisse um sorriso caloroso, sorriso esse somente possível a seres civilizados, que sabem expressar suas emoções. Sorriso esse somente possível a seres civilizados, que nutrem um sentimento de amor pelo seu semelhante, apesar de, muitas vezes, sorrir ao ouvir o relato dos estragos feitos pela bomba que mandara lançar sobre certa civilização inimiga. Apesar de, muitas vezes, sorrir ao receber os lucros extraídos através da contaminação de rios inteiros, ou da destruição de imensas florestas. Mas, essa é uma outra história. No momento, a minha preocupação é com esses seres que voam ao meu lado, sem pensar, sem planejar... apenas voam. E eu, sigo por essa mesma estrada. Sinto o roçar de uma asa em meu rosto. O susto é grande, quando vejo que aquele enorme inseto me lança um olhar enigmático. Parece perguntar: “o que está havendo”? Parece não entender a minha expressão de angústia e de medo. Sim, o nojo se transformou em medo, pois percebi que o tamanho dos insetos aumentou consideravelmente. Alguns são do meu tamanho e, pasmem, outros são maiores. Preciso evitar uma colisão, ou serei destroçado por esses monstros. Aumento a velocidade e deixo alguns para trás, mas me vejo no meio de outros e mais outros, e outros ainda. Na escuridão da noite, todos seguem para o mesmo lado, rumando em direção aquele par de luzes, que aparece na estrada, lá no limite de onde os olhos podem ver. As luzes vão se aproximando e o zunido em torno de mim aumenta, pois os miseráveis estão excitados com a possibilidade de deixarem a escuridão e mergulharem na luz, mal sabendo que isso significa o seu fim, pois ficarão estatelados, ou nos faróis, ou no para-brisas desse veículo que se aproxima. Mas eles seguem resolutos, determinados e, sigo ao lado deles. Algo me chama, me impulsiona, me lança em direção aos mortíferos faróis. Sei que significam a morte, mas é difícil evitar essa viagem sem volta. Poucos metros nos separam, as luzes e eu. Começo a ouvir o baque de insetos sendo estraçalhados pelos vidros, cada vez mais perto, mais perto. Por um momento, a sanidade volta e consigo, em um movimento rápido, com uma força descomunal, desviar meu vôo da rota da morte. Vejo as luzes passarem, zunindo em meus ouvidos, como os outros insetos. A escuridão volta, mas estou vivo, batendo minhas asas, seguindo meu rumo, ao lado de milhares de seres iguais a mim.

Délcio Mores
Enviado por Délcio Mores em 18/10/2010
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