O Andarilho - Dia 10

Deitado numa clareira, entre os corpos já apodrecidos de alguns cachorros, o andarilho começou seu dia. Percebeu que o cansaço fora mais forte que as orações e as perturbações de sua alma. Pois ele enfim, apesar de tudo, havia conseguido dormir. Observou o pulso e viu que havia realmente melhorado, e isso era ótimo, já que o outro braço, estava praticamente imóvel. A dor que lhe incomodava, havia lhe deixado. O que era realmente um perigo, pois o mau já estava se instalando. A cor azulada havia enegrecido fortemente, e o buraco, antes do tamanho de uma moeda, alastrava-se como uma praga.

“Droga... Salina. Onde você está? Preciso lhe encontrar logo, ou então vou acabar empurrando casas por aí”.

Ele se levantou e sentiu-se zonzo. A dor no ombro ainda dava sinais de vida. Sinais de que a vida, apesar de tudo, insistia em continuar. Ele caiu sobre uma das carcaças e lembrou-se de que não vinha comendo nada nos últimos dias.

“Há... O sal. Preciso enganar esse corpo cansado. Preciso alimentar essa alma perdida”.

Levantou-se apoiando uma das mãos sobre o joelho, e com um pouco de dificuldade, colocou-se de pé outra vez. Catou um pedaço de broa ao guardar seu livrinho na mochila, mas não conseguiu come-lo. O cheiro da podridão era cada vez maior, e com a ajuda do sol, que começava a esquentar de verdade, ia crescendo insuportavelmente.

— Salina! — Gritou logo cedo, revirando os corpos espalhados sobre o asfalto.

Alguns urubus começavam a sobrevoar o local. Mas não desciam rápido como de costume. Eles sabiam que havia muito para todos eles. Podiam esperar aquela ave rasteira procurar por sua carniça. Não precisavam comer a batata com a casca. Então, pousaram sobre os fios de alguns postes de madeira que conduziam energia sabe-se lá para onde. Até mesmo para eles, era uma visão catastrófica. Ter aqueles milhares de cachorros apodrecendo enquanto ostras centenas caminhavam num grande transe pela areia do acostamento e jogavam-se uns sobre os outros.

— Salina!

“O que está acontecendo por aqui?” “Eu não entendo...”.

— Salina! — Gritava.

Ele desamarrou o cordão que carregava ao pulso, e o enlaçou por entre os dedos, deixando a medalha pendente no ar.

O dia já se ia, e as aves haviam cansado de esperar. Começaram a voar em rasantes pelas carcaças, arrancando grandes nacos de carne. Muitas vezes de alguns animais ainda vivos.

No fim da tarde, o andarilho já não caminhava mais sobre os corpo. Ele engatinhava arrastando-se sobre a pista. Já havia sido arranhado, mordido por cães desesperados, e até mesmo bicado por alguns pássaros. Porém, ainda não havia encontrado Salina. Mas ao arrastar a medalha sobre um dos corpos empilhados, teve uma surpresa. Um dos cachorros caídos de lado havia levantado a cabeça e mordia a medalha que carregava.

“Então é você”.

Ele retirou o cachorro de baixo de outros três já mortos e percebeu seu estado frágil. O pêlo, já havia soltado, dando espaço a uma pele rosada e sem brilho. Os ossos, completamente aparentes, davam um ar fantasmagórico ao animal.

Arrastando-se de quatro, como um daqueles milhares de animais, que se empilhavam aos montes, o andarilho conseguiu seguir adiante, carregando sobre as costas o cadavérico Salinas.

Seguiu pela estrada, conseguindo deixa-la somente no fim da noite. Caiu sobre o acostamento e apagou, logo depois de ter colocado o cordão no pescoço do cachorro.

Alguns uivos foram ouvidos ao longe. Não pelo andarilho, mas por alguém que no meio dos corpos, também procurava por Salina.

Leia todos os dias do Andarilho e acompanhe esta saga surpreendente...

Frei Antonio Silva
Enviado por Frei Antonio Silva em 19/06/2005
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