O HOMEM PRA QUEM DECIDI NÃO FALAR DE JESUS

Em 1999 fui morar no bairro São Geraldo, estabelecendo o escritório na Avenida Integração,no alto do prédio comercial do senhor João Zandoná, alugado em parceria com o Moisés e a Ester Rocha, meus irmãos de fé. Mais adiante dividi o espaço com o Gilmar Pinto, onde ele passou a comercializar e produzir o jornal A Cidade, pois o Moisés e a Ester jamais abriram seu negócio ali. A casa onde o Gilmar morava com a família e onde até hoje reside ficava na metade do percurso de duas quadras que eu fazia de casa até o escritório. Por disso, muitas vezes em horas de folga ia para lá para uma boa prosa com eles. Assim fui conhecendo o seu Nestor, pai do Gilmar, o Santa Cruz, seu irmão, sua mãe, alguma das irmãs e pessoas do seu círculo profissional e social. Entre todos esses, um “bonbachudo” muito bem apanhado, com a barba bem aparada, que vi uma ou duas vezes antes.

Certo domingo lá eu estava na casa do Gilmar conversando com o seu Nestor cuja respiração era muito difícil, do tipo que me fazia sentir falta de ar, como se eu estivesse em uma crise de bronquite como quando eu era criança. Eu explicava para ele como com o poder de Deus eu pusera em prática um método que me ajudara a deixar de fumar em agosto do ano anterior. Explicava-lhe os benefícios mais imediatos do deixar o cigarro, bem como os que serão sentidos no dia seguinte, uma semana depois, resultando que em cinco dias já se esteja quase que completamente livre da obsessão pelo fumo. Foi quando adentrou a varanda onde estávamos, vindo do trilho de entrada do carro, o gaúcho “pilchado” que eu vira uma ou duas vezes. E o vivente se “aprochegou”, cumprimentou todos na mão, puxou um banco e sentou, ouvindo minha conversa por uns dois ou três minutos. Quando terminei, ele disse a queima roupa:

– Todo mundo vai morrer um dia. Então eu vou fumar até morrer.

Senti que tudo o que eu construíra em prol da decisão do seu Nestor fora impiedosamente derribado. Vi-me derrotado por uma frase tão fora de lugar, sendo que eu levava muito a sério a abstinência de cigarro, conhecendo todos os seus males e o esforço para vencê-lo. Entretanto, um sujeitinho que para mim sequer pensara nisso, derrotava meu esforço em ajudar um homem que caminhava para uma morte agonizante, chegando assim a queima roupo. E fez isso como se me conhecesse, usando de toda intimidade e liberdade que dispõe um velho conhecido, mas sem me conhecer nada.

Imaginei o que ele faria se alguém lhe falasse de religião; o que diria se soubesse qual a minha fé. Trataria com o maior desprezo, por certo, debochando talvez da crença. E para uma pessoa dessas é que eu não ia falar de Jesus. Sendo assim, decidi naquele instante que para ele jamais falaria de Deus e nem lhe permitiria me surpreender falando.

Passou-se algum tempo e muitas outras vezes vi aquele sujeitinho, que algumas vezes me apareceu pedindo para fazer certificados para os eventos gauchescos que ele promovia. Por conseguinte, nos tornamos amigos e muitas vezes falamos sobre vários assuntos. E fui descobrindo que ele era um excelente amigo, até um sujeitinho bem pacífico, que gostava de escrever e fazer e declamar poemas.

Por aquele tempo, ou, mais precisamente, 2000, apareceu por lá o Gilberto Eberle, meu amigo, ao qual eu fora subordinado quando ele era sub-gerente no Grupo Editorial Sinos, onde trabalhei no departamento de artes. Acho que eu tinha ido em sua casa convidá-lo para trabalhar comigo fazendo as artes de anúncios para o jornal do Gilmar.

A mãe do Gilberto amava a Igreja Universal do Reino de Deus, devolvendo-lhes os dízimos extorsivos e fazendo exigências a Deus quanto a Suas bênçãos como uma boa pentecostal. O Gilberto me disse que chegara a freqüentar a mesma igreja, mas que não se via digno de continuar seguindo, pois ele gostava bastante de umas boas cervejas. Todavia, pareceu-me bem convicto e bastante sentimental quanto as doutrinas e práticas dessa igreja. Entretanto, observei que não sabia nada sobre a Palavra de Deus. Por isto, falei-lhe da mensagem adventista da volta de Jesus e da transformação efetuada pelo senhor através da prática de Seus mandamentos e ordenanças, mas sem jamais atacar a Igreja Universal. Ele ouviu a tudo atentamente, mas, não querendo importuná-lo, deixei para voltar ao assunto bastante tempo depois.

No ano de 2000 houve também eleições e, porque era candidato a vereador pelo Município de São Leopoldo, o Clênio Ruas muito mais intensamente freqüentou o meu escritório, indo lá especialmente a noite, pois trabalhava durante o horário de expediente.

Numa noite dessas, enquanto ele aguardava que lhe elaborasse um material de campanha (ou outro matérial, não recordo bem), conversavam ele e o Gilberto sobre vários assuntos, desaguando por fim no assunto religião. Quando vi que chegaram nesse ponto, determinei que me manteria de fora para salvaguardar a reputação da Igreja Adventista de açoites preconceituosos. E ao mesmo tempo torci para que não me envolvessem na conversa, pois não desejava entabular o assunto religião e, muito menos, dízimo, com o CLênio, como havia determinado anteriormente. Entretanto, os ânimos dos contendores foram se acirrando e quando me dei por conta eles já se digladiavam educadamente no assunto dízimos e ofertas abusivas, sendo que e o Clênio atacava a Igreja Universal sem rodeios nas palavras, dando-lhe pau com as duas mãos enquanto o Gilberto defendia com quem defende a um filho melindroso.

Esclarecendo que era católico não muito freqüentador e muito menos praticante, o Clênio Ruas declarou que em certo tempo praticou a incoerência de freqüentar a Igreja Universal e daí para frente seguiu descortinando um rol de falácias relacionadas a indução extorsiva que os pastores dessa denominação fazem aos fiais. Enquanto isso eu seguia calado, somente ouvindo a tudo como se eu nada tivesse para dizer sobre o assunto, apenas empenhando-me na elaboração arte do material do Clênio. Foi quando, pressionado de tal maneira, o Gilberto disse:

– A igreja do Wilson também cobra dízimo.

E observou que, apesar disso, ninguém em tal igreja acha errado pagar o dízimo e as pessoas comuns tampouco vivem a falar mal dessa igreja.

Ao ouvir isto, fiquei de sobressalto. Pensei: “Agora vai sobrar para a minha igreja”. E tratei de ir me preparando para o que viesse, já pensando em bem argumentar em defesa de minhas convicções, explicando a estrutura organizacional da Igreja Adventista e a seriedade como os dízimos e ofertas são investindo nos seus devidos fins.

Entretanto, o Clênio perguntou qual era a igreja do Wilson. Ao que o Gilberto respondeu:

– É a Igreja Adventista.

Daí pensei: “Pronto. Agora vem bomba para cima de minha igreja. Finalmente fui posto na conversa”.

Foi quando o Clêno, com elogiável comedimento, observou:

– Os adventistas são muito bons, pena que eles são como os judeus, que guardam a Lei, pois a Lei foi abolida.

Ao ouvir isto, virei-me e perguntei-lhe onde ele ficara sabendo que a Lei fora abolida.

– Na Bíblia, ele disse. – Jesus aboliu morrendo na cruz, completou.

Levantei-me e fui até ele, perguntando-lhe se ele se incomodaria se eu lhe mostrasse na Bíblia somente uma das passagens que diz que a Lei não foi abolida, na qual o próprio Jesus esclarece que não veio para abolir a Lei. Ele respondeu que não tinha problema e perguntou se havia mesmo na Bíblia uma passagem assim. Disse-lhe que tivesse calma, pois rapidamente eu ia lhe mostrar. Esclareci-lhe que eu tinha perdido minha Bíblia versão de João Ferreira de Almeida, mas que tinha uma versão das Testemunhas de Jeová que, embora em muitas coisas eu vira que essa versão exclusiva dessa denominação sofrera adulteração, nessa parte eu sabia que era confiável. E, enquanto ele me via folhar a pequena Bíblia ganhada do pai do Gilmar, logo encontrei a passagem de Mateus 5:17 a 19 e entreguei-lhe o livro pedindo que Lesse em voz alta:

– Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; ele leu, – não vim abolir, mas cumprir. Digo-lhes a verdade: Enquanto existirem céus e terra, de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço, até que tudo se cumpra. Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino dos céus.

Após ler, ele ficou por um pouco extasiado olhando para a Bíblia em sua mão. Depois deu com as costas da mão na página do texto exclamando:

– Credo! Não é que ta escrito ali!

Disse-lhe que muito mais estava escrito, que muitas contradições ele iria esclarecer se estudasse a Bíblia. Ele então começou a me fazer muitas perguntas, as quais eu ia explicando fazendo referência a Bíblia e o livro O Grande Conflito que eu tinha lido. Falei-lhe da Reforma Protestante descobrindo as verdades da Bíblia e opondo-se a Igreja Católica com o propósito de fazê-la retornar a prática cristã verdadeira. Enquanto argumentava, mostrava-lhe o meu velho exemplar do Grande Conflito sobre o qual ele perguntou entusiasmado se falava de Martinho Lutero. Disse-lhe que falava e que mostrava como ele convenceu-se da graça de Jesus e descobriu que fazer confissões e cumprir penitências era anular o sacrifício de Cristo por nós.

Bastante empolgado, ele perguntou-me se eu emprestaria aquele livro para ele. Disse-lhe que o Grande Conflito emprestaria, mas que a Bíblia não, pois aquela versão tinha muitos erros maldosos. Ele, porém, esclareceu que a Bíblia não precisava, pois ele tinha uma, justamente a versão Almeida. Então, de posse do livro, ele mostrou-me o exemplar do Livro dos Espíritos que trazia junto, e, muito contente, esclareceu que primeiro terminaria de ler aquele e depois leria o Grande Conflito. Depois me perguntou o que eu achava daquele livro, se ele era bom. E, não querendo criar oposição, respondi:

– É. Mas estou certo de que tu vai gostar muito mais do Grande Conflito, especialmente se tu gosta de história, pois ele traz toda a história do Cristianismo desde Jesus até nosso tempo.

Então ele se foi entusiasmado, levando o livro e prometendo que logo leria. Quanto a mim, rompera com minha determinação de não falar de Deus para aquele sujeitinho e agora estava contente por causa do sucesso da fala que Deus me compeliu a falar. Entretanto, não fiquei muito otimista, pois sabia como que muitas pessoas que buscam uma fé cristão mais lógica e racional se iludem com o espiritismo e se ele estava lendo o Livro dos Espíritos certamente não recuaria disso. Todavia, uma ponta de esperança crescia ao pensar que o “bombachudo” Clênio Ruas me pareceu investigador e racional e, sendo assim, certamente não gostaria da história tão infantil daquele livro.

Na manhã do dia seguinte eu nem mais me lembrava do acontecido. Indo então no caminho para o trabalho, meu telefone tocou surpreendentemente. No outro aparelho falou o Clênio Ruas com desmedida empolgação.

– Aquele livro é uma loucura! Fui dar uma lidinha por curiosidade no banheiro e passei quase toda a noite lendo! Já li quase a metade! Não vou mais ler aquele outro livro, é muito “pobrinho” e não tem nada a ver. Este livro que tu me emprestou é que é uma loucura. Só vou parar de ler quando terminar. Ah! Continuou. – E já fiz várias comparações com a Bíblia. É verdade o que está escrito aqui.

No dia seguinte era quarta-feira e à noite fui ao culto de oração na igreja que eu freqüentava na Cohab Feitoria. No caminho cruzei pela casa do Clênio a fim de convidá-lo para ir comigo a igreja. Muito entusiasmado, ele me convidou para entrar e foi logo me apresentando para a esposa e a Bíblia toda esquadrinhada, cheia de sublinhados, referências a caneta e dobras. Parecia que ele estava fazendo um intensivo para o vestibular. Saudei-o satisfeito e disse-lhe que era assim mesmo que se tomava conhecimento da verdade, estudando e comparando as várias doutrinas. Ele disse bem convicto que já vira que a Igreja Adventista é que tinha a verdade, esclarecendo determinadamente que desde então já era adventista. Iniciamos então um curso bíblico que depois os irmãos da igreja concluíram.

Segui minha vida, me afastando no ano de 2001 da Feitoria para o centro da cidade e indo logo depois morar em Porto Alegre por dois anos. Até o final de 2003 estive na Capital e uma vez encontrei o Clênio na estação Unisinos do Metrô, quando ele me disse que por causa de minha ausência tinha perdido a empolgação quanto ao estudo da Bíblia e a igreja, estando então bem distante do batismo.

Bem no início de 2004 voltei a freqüentar a mesma igrejinha da Cohab, que recentemente fora estabelecida num prédio novo e maior no loteamento Uirapuru, sendo chamada então de Igreja Adventista do Sétimo Dia Feitoria/Seller. No segundo ou terceiro sábado tive a grata satisfação de ver na igreja o Clênio juntamente com a Rosane, sua esposa. Depois ele me disse que começou a ir à igreja empolgado com a minha presença, me convidando muitas vezes para ir em sua casa orar e estudar a Bíblia com ele. Passei então a me lembrar de ir fazer o culto de entrada do sábado em sua casa, mas, chegando lá, jamais o encontrava, apenas a esposa indignada porque sabia que ele já devia estar bêbado em algum boteco que chegou pelo caminho do final da sexta-feira. Então eu ia aos domingos pela manhã visitá-lo e assim encontrava o vivente no rancho.

Mas minha presença era quase decorativa. Muito pouco eu conseguia falar-lhe de Deus, exceto quando ele já estava bêbado, então me fazia perguntas frente ao vizinho e amigo Carlos. Um domingo a noite fui com ele mais o Carlos no culto da igreja Adventista central de Novo Hamburgo. A entrada distribuíram números para o sorteio de brindes. Antes de iniciar o sermão, o jovem pregador anunciou o sorteio de alguns livros, entre eles, um que achei que caberia bem ao CLênio Lê-lo e outro que cairia como uma luva para o Carlos. Então pedia a Deus em pensamento que fizesse que cada livro fosse sorteado para seus respectivos números. E assim se fez, caindo para ambos o livro conforme o que eu pensara.

Entretanto, apesar da minha assídua presença em sua casa aos finais de semana, ele falava de Deus, mas não deixava das coisas do mundo, especialmente o vício da bebida e bebia cada vez mais. Quando eu apelava que marcasse o batismo, argumentava que precisava deixar o vício primeiro. Com isso eu concordava com ele, porém dizia-lhe que se ele não assumisse um compromisso com Deus e com sigo mesmo marcando uma data para o batismo, jamais teria motivação suficiente para deixar os vícios. Mas parecia que tudo era em vão, pelo que minha paciência foi diminuindo, haja vista que comecei a me sentir usado como um álibi de sua falta de vontade. E, como não gosto de ser usado para coisas que não concordo, decidi dar um ultimato.

A próxima vez que ele me convidou para ir à sua casa, fui decidido a pô-lo na parede quanto a decisão do batismo e entrega da vida a Deus. Numa conversa à parte, disse-lhe que se ele não queria, antes de vencer a bebida, tomar a decisão de se batizar, então teria que dar um passo para vitória contra a bebida em outro lugar que não a igreja. Falei-lhe que freqüentando o AA pessoas sem religião conseguem vencer o alcoolismo com a ajuda de Deus. Então ofereci-me como companhia para ele começar seu processo de recuperação no AA. Acrescentei-lhe, porém, que se ele não quisesse freqüentar o AA eu também não mais iria à sua casa para orar e estudar a Bíblia, pois ele estava abusando da minha boa-vontade.

Com o apoio do AA, ele deu os primeiros passos na luta contra o vício da bebida alcoólica, recebendo o batismo pouco tempo depois no Gigantinho na festa de aniversário de 100 anos da Escola Sabatina no Brasil, em 2004. E por ser escritor, radialista e cheio de retórica, tornou-se pregador e hoje ocupa cargo de ancião na igreja Adventista Feitoria Seller. E tudo isto mostra que Deus nos usa para o seu trabalho, criando a oportunidade e pondo as palavras na nossa boca para atingir as pessoas que Ele sabe que O receberão.

Wilson do Amaral

Autor de Os Meninos da Guerra, 2003, e Os Sonhos Não Conhecem Obstáculos, 2004.