HELOÍSA VAI À GUILHOTINA

E seu único crime foi o irremediável amor que sentia pela vida. Pura e simplesmente.

Da condenação do júri, formado pelos homens mais velhos da aldeia: o veredicto foi irrecorrível, pois todos votaram pela punição.

Tinha vinte e um. E tudo nela era casto, belo e íntegro. A boca virgem, o sexo intocado, sem qualquer promessa de lascívia. Os homens da aldeia não pensavam assim.

O carrasco, que levava o rosto encoberto por um capuz negro, a conduziu até o estrado. Heloísa trazia os longos cabelos aloirados enfeixados numa longa trança que se enrolava no alto da cabeça, de modo que não criassem dificuldades ao cortante fio do cutelo. As pessoas, principalmente as velhas aldeãs, gritavam em coorte enquanto a condenada tinha as mãos e a cabeça presas.

Desde que nascera, a família se viu obrigada a trancar a menina. Por demais bela, a todos encantava como em feitiço. A pobre casa onde moravam desde então era cercada pelas gramíneas sempre verdes, e as flores em permanente primavera, mesmo que inverno, sob espessa camada de neve.

Os irmãos partiram, o pai morreu. A mãe que ainda zelava, e temia pela sorte da menina.

E foi trabalhar na colheita do trigo. A silhueta ganhava traços do pecado carnal, embora seu espírito fosse eivado apenas pelo sentimento de amor e contemplação que exaltava em relação às minúcias da vida. Deleitava-se quando atravessava o bosque, o passaredo em revoada, as sombras do caminho, todos os dias, indo e voltando para casa. Não mais do que isso lhe bastava para ser feliz.

Por mais que forjasse no trabalho pesado, sol a sol, por mais que castigasse seu rosto o vento frio de inverno que soprava das pradarias do leste, por mais que a vida sempre se mostrasse dura e não raro viesse açoitar-lhe a carne, abria-se um sorriso de encantamento capaz de abrandar a maior das fúrias humanas.

E por que não sorrira aquele dia? Estava triste, não entendia tamanho espetáculo de horror.

Prometeram-lhe casas, jóias, animais, riqueza de toda espécie. Nobres de terras distantes vieram ao seu encontro. Por que, se já sou feliz o bastante? - e todos partiam. Não raro os que perderam o juízo e se mataram no caminho, enquanto regressavam para casa.

Loucos também ficaram muitos dos aldeães, chegando a ver nela a encarnação santíssima da Virgem. Mas as outras, as feias que não desposavam, tomadas de ódio e rancor, passaram a acusá-la de bruxaria. Ganharam valioso apoio da igreja.

A mãe morreu quando soube da condenação da filha.

Heloísa tinha a fisionomia endurecida, olhos assustados. Não por medo de perder a vida, mas em ver tamanha fúria nos corações daquela aldeia, gente a quem nunca fizera mal.

Não quis se pronunciar. O carrasco soltou a alavanca que suspendia a lâmina. A cabeça saltou para dentro do cesto. A multidão se desfez. Uma parte seguiu satisfeita, principalmente o grupo das velhas aldeãs. A maioria dos homens lamentou sua morte, embora não tivessem coragem em manifestar seu desapontamento.

O corpo e a cabeça foram sepultados em cova rasa, numa estrada fora das imediações da aldeia.

O jardim na porta da pobre casa ressecou. As flores feneceram diante dos primeiros ventos do outono. Na primavera seguinte, poucos foram os jardins que viram desabrochar suas margaridas e crisântemos. As mulheres, porém, descobriram um local não muito distante da aldeia, na margem de uma estrada esquecida, onde por mistério cresciam em abundância flores das mais variadas espécies.

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Goiânia, 2004.