O brado da onça pintada.

Vou lhes contar a história da minha vida, quer dizer, apenas minha história:

Quando ainda muito novinha fui separada das minhas irmãs e me amontoaram com outras amigas dentro de um carro, com três homens armados, para viajar não sei para onde. Apesar da escuridão imensa que me rodeava, percebi que eu estava trancada à sete chaves dentro de um cofre de banco. Não demorou muito e fui parar dentro de uma algibeira, em troca de uma ordem de pagamento. Pô, e eu achando que ia dar uma voltinha, fiquei dois dias dobrada com uma companheira garça e três beija - flores. Mas, na manhã seguinte, fomos dadas a um moto boy em troca de uma pequena caixinha de remédio. Báh, e eu reclamando de estar dobrada, agora estava toda amassada dentro de uma pochete misturada com uns vales de ônibus e quatro fichas telefônicas. Nada contra as fichas telefônicas, mas é que elas podem nos rasgar! Bom, depois disso fui entregue às mãos de uma moça que me massageou e me guardou dentro de um caixa eletrônico. No final desta tarde, eu já me encontrava nas mãos de um homem que gerenciava a farmácia. Agora você deve estar pensando que esta nota de cinqüenta reais ficou louca! Que esperança, não enlouqueci não! Essa farmácia era onde o moto boy trabalhava lembra?! Ãh, onde é que eu esta mesmo! Áh, lembrei! Fui parar no sutiã de uma prostituta em troca de uma hora de prazer. Depois em troca de duas araras, saí do sutiã e parei na cueca do gigolô desta profissional. Às três da tarde, quando ele acordava, eu ainda estava no mesmo lugar. Só quando ele foi tomar banho que eu saí dali. Que decadência! Eu, jogada no chão em frente ao vaso sanitário, vendo aquele homem horrível tomando banho. Bem, continuando a história, às cinco horas parei no bolso de um Armany em troca de uma seringa com pouquíssimos ml’s de heroína, depois fui parar novamente em um caixa eletrônico, desta vez em troca de uma mensalidade de uma academia, de ginástica. Do caixa desta academia passei para o caixa de uma livraria, onde fui trocada por uma obra de Fernando Pessoa. Confesso que pela primeira vez me senti lisonjeada. Mas logo fui parar no caixa de um supermercado e, posteriormente, dentro de um carro forte, desta vez com seis homens armados, que não foram suficientes para impedir um assalto. E eu pensando que iria para o banco, lá estava eu dentro do porta - malas do opalão dos bandidos. Pelo menos eu não estava na cueca do gigolô! Aiiii, que infeliz concatenação. Era justamente ele que abria o porta - malas do opala. Não sei se foi sorte ou azar, é que o filho da puta do cafetino assaltante me deixou cair na sarjeta da rua quando começava a trovejar. Passei horas rolando pelo escoamento da rua, e quando eu estava preste a cair numa boca - de - lobo, fui salva por um moleque. Quer dizer, ele que se salvou, pelo menos naquele mês, quando de novo eu voltei para um supermercado em troca de uma cesta básica. Pô, eu passo mais tempo no supermercado do que na rua!! Desta vez do supermercado para o banco, não houve nenhum óbice, e eu estava deitada bem retinha junto com outras colegas onças. Eu percebia que tinha umas colegas em melhor e pior estado que eu, é que isto varia de acordo com a história pessoal de cada cédula.

Saí e voltei do banco mais oito vezes, fui trocada por um buquê de flores e duas garrafas de Marcus James, também fui trocada por cinco garoupas falsas, por um 38 e uma 12 cano serrado, fui trocada por uma caixinha de música e um estojo de rímel, trocaram - me por alimentos, drogas, sapatos, livros... E agora estou aqui, judiada, rasgada, amassada em frente a um incinerador preste a virar um montinho de cinzas. Como pouco tempo me resta, vou expor meu pensamento em um silencioso brado:

Tenho cara de onça, mas não posso rugir!

Tenho marca d’água, mas não posso chorar!

Tenho o rosto de uma esfinge, mas não posso sorrir!

Portanto, não me responsabilizem pela felicidade e pelo infortúnio de vocês. Porque são vocês os donos do meu destino.