Às amizades que ainda restam

ÀS AMIZADES QUE AINDA RESTAM

Maio/2011

Bom moço, quem o sabe. Contudo, nunca de forma íntegra. Força da genética? Ou impulsos de ordens obscuras? De qualquer maneira, tem-se conhecimento apenas de que vivia dias de recomposição física e espiritual. Dias de renovação e ânimo.

Assim era o jovem Fredrik, a quem muitos pareciam conhecer superficialmente, mas sem saber de suas angústias e aspirações. A quem muitos cumprimentavam sem tomar conhecimento do calor de suas mãos, por mais que por um impulso junguiano, identificassem nele certa aura, certo carisma que estavam incapazes de traduzir conforme formas expressas em palavras.

A certa tarde do mês de Maio, pensou que seria uma boa oportunidade em buscar a um de seus únicos amigos às proximidades de onde morava. Há tempos já não era mesmo o lugar onde se costumava conhecer os passos de seus moradores. Há tempos já não se era possível seguir os passos da noite sem que não se conhecesse a insegurança. Mas ainda se dispunha de uma boa amizade. E apesar dos pesares, isto lhe bastava.

Buscava respostas para um enigma próprio seu, tal qual outras de suas características. Por que apenas no desconforto é que encontrava a concentração ideal? Após uma manhã a caminhar em destino a compromissos, passara em uma biblioteca para absorver o que de lá esperava. Uma seção de literatura, com livros que não podiam ser emprestados. Suas capas eram fascinantes. Não tinham nada de especial, mas eram duras. Duras, o que para ele era dizer intactas. Intactas, o que era dizer quase preservadas das mãos dos homens. Pois se estranho era o costume de ler em pé, mais ainda era o de apreciar livros lidos, tocados, discutidos e emprestados por poucos. E ali permaneceu por meia hora ou mais, em um romance sobre o campo, que expressava não mais que a própria realidade.

Desde há tempos, não buscava na literatura senão o próprio espelho. Podia maravilhar-se com possibilidades das mais diversas, mas a literatura que lhe derrubava era aquela sempre humana, sobretudo humana.

O enigma da vez era o da carência. Amar a solidão, a liberdade, o apreço por ser roubado por uma voz instintiva interior. Desfrutava de todas as suas conseqüências das quais muitos lhe invejavam, ao mesmo tempo em que lhe assombrava a cobrança em torno de uma vocação com a qual não fora presenteado. Uma companheira. Uma esposa. Uma simples família. Pois chegara a estação do acasalamento e ele ainda estava só.

Como que em sincronicidade, Fredrik encontrou Jonnson próximo à bodega, a qual, pela tradição daquilo que cercava suas moradas, recebia o nome de São N. Embora conscientes de que tal figura ainda representasse uma herança pagã, mantinham o fato em segredo. E para isto, eram discretos. Discretos, irônicos e espertos.

Os santos católicos postos às paredes já velhas. O rádio empoeirado. E duas irmãs, de idade avançada por igual, que teriam permanecido virgens, pois acreditavam na vocação religiosa. Os produtos inalcançáveis, o baleiro, os horários dos ônibus postos junto a uma lista de recados. Postos ali, os dois hereges sentiam como se aquele fosse um lugar de seus pertencimentos. Dos pequenos alto falantes, uma melodiosa canção que os animava.

O louro Fredrik, de maior estatura e por conseqüência maior envergadura, media pelas balas e doces demais a que ponto a economia de seu país se arruinara.

Pelo caminho, ambos não passavam despercebidos. Eram dois jovens que pareciam existir para si próprios naqueles instantes.

“Quero”, dizia Fredrik, “comprar-lhe um livro, se assim você o desejar. Fala sobre um homem distante, trajado em pele de carneiro, que recusa a crença popular. Dá-se aos animais mais que aos seus semelhantes. Vive e interpreta aos sinais e desígnios do firmamento. Sobre ele, muito foi dito, mas nada que se confirme entre os residentes de sua aldeia. Muitos se ocupam a gozá-lo, sem nunca tê-lo ouvido falar”. O amigo recebera a proposta com encanto e satisfação.

Ao canto, um senhor os saudava enquanto levava ao ar o copo do décimo trago. Era rubro como uma peste. Marcado pelo sol e pela vida. Mantinha um sorriso constante, ainda que parecesse melancólico, quase desgraçado.

Feita a encomenda de um presente para a mãe de Fredrik, os jovens seguiram o caminho que os separava do vilarejo monótono à agitação d’un autre monde.

Eram estudiosos. Homens de carne e osso, embora tivessem a sensação de uma origem estranha dentro do próprio espaço. Tinham suas personalidades enraizadas ao tal lugar de origem, mas não refletiam a mentalidade de seu povo provinciano. Daí o valor da amizade que um nutria pelo outro. O vilarejo era tal qual um céu que acompanhava as preces de seus respectivos fiéis, postos a viver em diferentes montanhas.

Eram também dados ao lado prático de uma teoria específica de Sócrates, Kierkgaard e Thoreau: andavam, cruzavam distâncias e permaneciam horas sobre os mesmos pés em movimento, sem que percebessem.

Na medida em que seguiam a estrada íngreme, falavam sobre assuntos diversos, que em geral não interessavam a comunidade.

A determinava altura, Jonnson apontou para uma casa de esquina: “Reza a lenda que é mal-assombrada”, “Como o soube?”, “Por um profissional de vendas”, “O que há de errado com ela?”, “Parece que os móveis sempre estão fora de lugar... Verdade ou não, fato é que a casa está sempre para alugar ou vender”.

Em um mesmo lugar, a todas as noites bebiam um chá de limão. Era uma espécie de cantina que oferecia uma bela vista. Por mais que fosse movimentada, atraindo a atenção de estudantes outros, despertava em ambos a idéia de um isolamento em meio ao coletivo, uma experiência antropológica. Até brincavam: “Que estabelecimento haveria de prosperar, se acaso tivesse de contar com clientes como nós?”, pois sempre priorizavam lugares vazios e quietos.

Distantes do vilarejo, o cenário sofria determinadas alterações. Mesmo o hálito se tornava outro. Fluíam os assuntos, mas ainda o espírito de Prometeu era cinza e pó.

Falavam da infância como se, em um instante, fossem Demian e Sinclair, Sidharta e Govinda. As boas travessuras. As aventuras próximas da natureza. E as primeiras constatações de que viriam a trilhar caminhos distantes, penosos, distintos.

Jonnson demonstrava um grande carinho pelo avô, um matemático que também era apaixonado pelas línguas e culturas do mundo. Do vínculo da fala, portas foram abertas ao seu ancestral, que conheceu a fundo a essência dos povos, desde os segredos maias às lendas polares em primeira mão.

Diziam que as quatro estações se encontravam em um mesmo dia. Também assim ocorria com os continentes. Saíam do Leste europeu anterior ao comunismo, de vilarejos pacatos, a passar pelo Haiti após os terremotos e pela tumultuosa Índia pós-ariana. Era possível notar paisagens magníficas, próprias somente do próprio berço de ambos, como a um inferno que sequer Dante teria sonhado, tampouco uma humanidade plástica e desvirtuada, que Asimov jamais teria pensado existir, nem mesmo na imaginação.

Eram testemunhos de tempos estranhos, onde o Estado fomentava o acasalamento entre machos e machos. Tempos onde homens à frente de uma nação, que diziam defender os humildes e pobres, permitiam que usureiros apátridas desfrutassem de mordomias eternas. Tempos estranhos onde a estrapolação virara regra, onde o repugnante virara belo, o bizarro virara herói.

Não lhes fazia importância dominar a língua dos homens, pois não os compreendiam. Mas se esforçavam. Passavam por entre aqueles que lhes eram semelhantes, pensando, à luz da brincadeira, que estudavam a própria humanidade.

Tinham aversão ao álcool. Não lhes matava a sede. Era custoso e em geral, o gosto não era do agrado de ambos. Também há algum tempo, aboliam a extravagância com relação a medicações, de modo que uma simples dor deveria alimentar a própria imunidade ao invez de baixá-la.

Da mesma forma, o sono não lhes agradava. Contavam com orgulho um ao outro sobre recordes sem dormir. “Não sei se por meio de meditação, por meio de uma yoga muito específica... Não sei. Sei apenas, enfim, que seria possível reativar a partes do nosso cérebro, capazes de reanimar as emoções. Por que não sentimos sono em meio a um diálogo extasiante? Justamente porque algo o produz. E se...”, “... Se este algo fosse reativado? Seria incrível!”, “Controlar ao corpo... Como se tivéssemos consciência sobre os momentos em que podemos ou devemos pensar com o lado esquerdo ou direito do cérebro”.

E prolongava: “Mas em meio a esses períodos de crise, quando expomos à frente de casa tudo aquilo que resulta de uma grande limpeza, penso no quanto pode ser proveitosa a solidão. Se casado eu o fosse, por certo que neste instante não estaríamos caminhando. O misto de carência e insegurança levaria uma esposa a crer que é simplesmente impossível que se saia à noite pelo simples prazer de caminhar”.

Jannson respondeu: “De fato... Às vezes me conforta a idéia de estar sozinho. Imagine que eu estivesse criando uma fórmula ou acordando em meio à noite a cantarolar uma melodia nova... Sendo abruptamente arrancado da torrente de pensamentos por algum escândalo banal”.

Falaram sobre o mérito de homens que souberam conciliar arte e família, vida escrita e vida vivida.

E por um instante, ainda que em meio aos passos da madrugada, quando deveria conduzir o amigo até a casa e retornar, levado pelo brilho dos pensamentos, pensou: “Estou certo de que haverei de tomar o caminho de casa como outro!”.

Assim foi. Já bocejava e apressava o andar, na medida em que a musculatura se cansava e a mente se desligava dos afazeres do dia próximo.

“É apenas uma questão de vocação... Ou simplesmente extraterrenos em forma de humano não casam”. Tropeçou, riu e seguiu, notando as estrelas e rendendo um ode an die Freundschaft em forma de assovio:

“Heil dir, Freundschaft!

Meiner höchsten Hoffnung!

Erste Morgenröte!

Ach, ohn‘ Ende

Schien oft Pfad und Nacht mir,

Alles Leben

Ziellos und verhasst!

Zweimal will ich leben,

Nun ich schau‘ in deiner Augen

Morgenglanz und Sieg,

Du liebste Göttin!“.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 16/05/2011
Reeditado em 16/05/2011
Código do texto: T2973412