A mestiça do ônibus da noite.

Ele já a tinha observado outras vezes. Devia ter uns vinte e poucos anos. Pegavam o mesmo ônibus de volta pra casa.

Aliança no dedo, jeito meio despojado, trabalhava ou só estudava. Não devia trabalhar em escritório, Banco ou repartição. Cheirava gostoso, talvez perfume de aventura. Talvez perfume de paixão. Talvez perfume de quero mais. Talvez perfume de te quero.

Ela tinha uma mistura de raças gritando no seu sangue, na sua pele,

no leve rasgado dos seus olhos. Isso tinha imantado a atenção dele de um jeito que não conseguia mudar o foco da sua mira. Parece que caiu de corpo e alma naquela cilada.

Essa coisa de usar calça meio caindo é mais do que moda, é mais do que o jeito dessa moçada mostrar o que tem bonito, o que tem de gostoso. Era o jeito de dar uma sacudida nos nossos desejos, fazendo com que algumas coisas meio caladas, meio deixa pra lá, viessem à tona e mostrassem que estavam simplesmente vivas. Simplesmente vivas.

Passou uma noite, outra noite, outra noite. E ele sempre de olho nela. Não como algo escancarado, que a faria recuar ou se defender. Mas de canto de olho, tão eficaz e fulminante que nenhum movimento fugia daquela câmera sem trégua, sem descanso.

Uma câmera já enrigecida por um desejo que teimava em escapulir.

Algo nela mexia nele. E ele nem queria saber o que mexia, mas que mexia, mexia. E como.

Certa noite, como quem não quer nada, sentou ao lado dela. Fez como se fosse por acaso, tinha essa coisa de dissimulação no ar. Ele acha que ela achou que foi por acaso. Até parece.

Ele começou a ler um livrinho de um curso que estava fazendo, como quem não quer nada. E a moça puxou papo. Ele não tirava os olhos daquela boca, dentes de marfim, que parecia dizer o que ele queria ouvir.

Cada palavra, cada golfada de ar que saia da sua boca entrava direto no pulmão dele. Linha direta de duas almas que parece que teimavam em se atracar, em mergulhar juntas na mesma raiz, na mesma saliva.

A conversa foi mostrando suas teclas de um jeito que há tempos ele não tinha se dado conta. Talvez os cabelos brancos que tanto teimavam em brotar não deixavam perceber coisas assim. Mas com aquela moça estava sendo diferente. Ela com seu jeito de menina num vigoroso corpo de mulher, arrancou com força esse medo natural de ir em frente quando a aliança no dedo servia de escudo. Ela era de outro, mas isso não tinha força pra segurar o que vinha de dentro dele, ou dela. Mas era de outro.

O jeito como perguntava as coisas dele, a forma como pediu o cartão de visitas, tudo isso estava fumegando naqueles minutos no trajeto do ônibus. Ela teve que descer e desceu. Ele sabia que na noite seguinte se encontrariam. Tchau, mestiça, amanhã a gente se vê de novo. Durma bem.

(continua)

Na outra noite ela não veio. Será que percebeu alguma coisa e não quis mais vir junto? Será que percebeu alguma coisa e resolveu largar o marido e fugir com ele para o mundo? Será, tantos serás...

Ele sentia que alguma coisa iria acontecer.

Certamente ainda terão muitas outras noites para mergulharem juntos naquela viagem tão curta, tão longa. tão forte.

O destino dele não estava mais na palma de sua mão. Estava tatuado nos olhos rasgados daquela mestiça do ônibus da noite.

(continua)

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 17/05/2011
Reeditado em 18/05/2011
Código do texto: T2975009
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