NEGÓCIOS EM FAMÍLIA

Deslizávamos pela rodovia a mais de 180 km por hora. O dodjão tão zelado por mim e pelos meus irmãos, quase se despedaçava pela estrada. Tio Carlo, baleado, encharcava-se de sangue no banco de traz - tentando dizer algo, balbuciava palavras a esmo; entendi que rezava pedindo perdão a Deus. Meu pai, agarrado a um malote de dinheiro, ria destemperadamente, excitado com a caótica situação. Minha cabeça foi a mil. A culpa, o ódio e o medo tornaram meu tormento insuportável.

_ Maldito! Ele me fez matar um homem! - fui tomado pelo remorso. Em minha curta vida, já havia cometido inúmeras transgressões, mas nunca havia tirado a vida de alguém. O meu pensamento imergia na tétrica lembrança daquele crânio explodindo por um tiro certeiro.

_ O que foi que eu fiz... o que foi que eu fiz...- desconsolado com a culpa, golpeava o volante com os punhos cerrados.

_ Você fez a coisa certa moleque,- interviu meu pai - salvou a pele do seu velho. Aquele desgraçado iria estourar os meus miolos. - nada que ele me dissesse, serviria de consolo.

_ Você não entende, eu nunca matei...

_ Ora, pare de choramingar e preste atenção na rodovia. - sua insensibilidade sempre foi característica. Mas havia outros problemas naquele momento; tentar escapar da viatura que nos perseguia, despejando rajadas de tiros, era o de mais urgência.

Meu dodjão era do tipo envenenado; com oito canecos e uma super turbina, deixava qualquer camioneta dos canas no chinelo; além disso, eu sabia muito bem manejar aquela máquina.

Pelo retrovisor, notei que os havia despistado. Não ouvia mais o barulho estridente da sirene. Orientado pelo meu pai, saí da rodovia e entrei em uma das ruas de terra que encontrei pelo caminho. Depois de percorrer alguns quilômetros e nos livrar por completo da incômoda presença da polícia, parei o carro, e o escondi nos arbustos. O sol já havia se posto; ocultá-lo, não seria problema. Tornei à meu tio, para saber como ele estava.

_Tio Carlo, tudo bem? Consegue andar? - ao ver tanto sangue, temi pela sua vida.

_ Acho... que vou precisar... da sua ajuda. - o pobre mal conseguia falar. Meu pai olhou para mim com um ar sério e acenou com a cabeça para que saíssemos do carro. Queria me falar algo:

_ O plano é o seguinte: vamos dar um fim na caranga que já tá manjada e procurar algum caipira que more pelas redondezas; algum que tenha um calhambeque prá gente roubar. Eu conheço bem a região, sei onde essa estradinha vai dar. Há uma outra rodovia a uns 20 quilômetros que leva a um vilarejo. Lá pegamos a BR. Nunca vão nos achar. - o plano me parecia razoável.

_ O.k., Vou dizer ao tio Carlo que...

_ Espere, - me agarrou o braço e disse ao pé do ouvido- o tio Carlo já tá fodido, vamos ter que deixar ele aqui. Há um montão de malotes pra carregar e ele, é só mais um peso morto. - apesar de conhecer muito bem meu pai, e saber que ele não se importava com nada nem com ninguém, aquilo me pareceu um absurdo, afinal, era da nossa família que estávamos falando.

_ Ele é seu irmão, é o nosso sangue. Você não pode ser tão insensível...

_ Sensibilidade é coisa de bicha! - interrompeu-me abruptamente- Eu sou um homem prático, e depois, ele já não tem mais sangue nenhum.

_ Eu não o deixarei. - indignei-me.

Jamais o deixaria. Tio Carlo era o caçula da numerosa família do meu pai, e sempre foi alguém por quem tive muita estima. Eu o amava muito. Quando meu velho esteve preso, ele sempre passava em casa para ver se estávamos precisando de alguma coisa. Na morte da minha mãe, levou a mim e meus dois irmãos para morar em sua casa.

Ele era um excelente mecânico. Tinha uma oficina de beira de estrada, onde me ensinou tudo que sei sobre carros. Montamos o dodjão peça por peça em sua oficina. Em meu ultimo aniversário, no qual completei 18 anos, ele me presenteou com a máquina; aquele foi o dia mais feliz da minha vida.

Ele era um sujeito bonitão e, consequentemente, fazia muito sucesso com as mulheres. Há alguns anos atrás, se envolveu com uma garota que vivia em um prostíbulo, então, começou sua decadência, - ele era vidrado nela. Fazia todas as suas vontades. Era o tipo de mulher que gostava de esbanjar dinheiro com roupas e sapatos da moda; só comia do bom e do melhor - enquanto meu tio, maltrapilho, trabalhava 15 ou 16 horas por dia na oficina. A única vez em que o vi contrariando-a, foi quando tomou a decisão de nos abrigar em sua casa. Ela enlouqueceu, dizia que não ia dividir seu teto com nenhum delinqüente juvenil. Disse em português bem claro, que ele teria que escolher entre ela ou nós. Ele optou por nós, disse a ela que o sangue era o mais importante. A infeliz, por não ter pra onde ir, engoliu em seco. Quando meu tio não estava, para retaliar, nos tratava como animais. Pedi para meus irmão não dizerem nada a ele a fim de não preocupá-lo.

Quando meu pai saiu da prisão, veio com uma comitiva de vagabundos, que conhecera na cadeia, com o plano do assalto ao carro forte. A mulher do meu tio, com sua ganância, e por não ser o seu rabo que estava na reta, foi a primeira a concordar - depois, foi fácil convencê-lo.

Tio Carlo se opôs veementemente contra a idéia da minha participação no assalto proposto pelo meu pai - eu seria o motorista. Excitado, argumentei que já tinha idade suficiente, e que não haveria ninguém melhor do que eu para dirigir o dodjão. Eu diria qualquer coisa pra poder entrar nessa. Estava empolgado com a idéia, nunca havia feito nada daquele porte - via tudo como uma grande aventura.

O plano do meu velho parecia infalível. Ele conhecia tudo sobre a rota traçada pelos agentes de segurança. Um dos caras que estava com ele, havia trabalhado na mesma empresa do blindado que iríamos assaltar; trouxe uns mapas do percurso, com horários e tudo mais. Mostrou uma metranca que segundo ele atravessaria a blindagem; (isso facilitaria em muito o nosso trabalho) e, como se não bastasse, haviam explosivos, maçaricos e toda uma parafernalha que eu não sabia direito o que era. O cara tinha todo um argumento técnico, um "blá blá blá" das arábias - a coisa era pra bandido profissional.

Na tarde do assalto, nada saiu como esperávamos; eu, meu pai e o tio Carlo, íamos no dodjão logo atras de um velho caminhão, que julguei ser roubado, trazido pelos comparsas do meu pai. Um fenemê cara chata com a carroceria de madeira podre, literalmente, caindo aos pedaços. Seria usado para fechar o carro forte, forçando-o a parar no acostamento; Nós, logo atrás, o impediríamos que desse a marcha ré.

Tudo estaria nos conformes, se o blindado não tombasse fazendo com que as portas de trás se abrissem. Isso não seria de todo ruim, se os filhos da puta, dos guardas de segurança do carro forte, não saíssem atirando como loucos, para todos os lados. Meu pai e o tio Carlo, já haviam saído do dodje com as armas em punho, quando foram surpreendidos pelos tiros vindo de dentro do blindado. Meu velho se jogou atras do nosso carro, revidando os tiros. Meu tio não teve a mesma sorte - tombou com um balaço no lado esquerdo do peito, um pouco acima do coração. Eu não havia saído de dentro do carro, e permaneci por ali mesmo escondido, até ao fim do tiroteio. Um dos comparsas do meu pai, (aquele falastrão da metranca), chegou de súbito atirando para dentro do carro forte. Aquilo resultou num massacre. Realmente a porra da metranca furava blindado. Eu já havia me arrependido de ter participado de tudo aquilo, mas já era tarde.

O pior ainda estava por vir. - Assim que cessou o tiroteio, saí para ver como estava o tio Carlo – horrorizei-me com o seu estado que me pareceu crítico. Calmamente, encostei sua cabeça em meu colo e peguei a arma que estava ao seu lado. Meu pai e os outros, foram atras dos malotes dentro do blindado.

_Que droga! Eu sabia que ia levar a pior! - lamentava tio Carlo.

_ Tio, é melhor que o senhor não fale.

_ Me fodi, moleque...me fodi...

Antes que meu tio terminasse o seu lamento por haver levado o tiro, percebi que um dos guardas ferido, sorrateiramente apontava o seu 38 em direção a nuca do meu pai, que estava de costas para a porta do carro forte, com os braços levantados, exibindo para nós, em cada uma de suas mãos, os malotes de dinheiro. Sem hesitar, apontei a arma do meu tio, que estava em minha mão e disparei um tiro certeiro, bem no meio dos seus olhos,- isso fez a parte trazeira do seu crânio explodir. Meu velho com o susto, encolheu os ombros e olhou para as costas.

Houve um súbito momento de silêncio interrompido pela observação macabra do meu pai:

_Bela pontaria, garoto. - eu o odiei como nunca antes havia odiado.

Eu havia cruzado uma linha, a qual nunca mais teria como voltar; cometi um homicídio. Em qualquer tribunal no extenso globo terrestre seria condenado unanimemente a muitos anos de prisão pelo crime que havia cometido e, em alguns países, isso me custaria a pena de morte. Mas, já estava feito. Mesmo transtornado, tratei de cuidar do meu tio. Abri a porta do dodjão e o coloquei para dentro, enquanto lá fora meu pai dividia os despojos com os outros.

Findada a negociação, combinou-se que cada grupo iria para lados opostos da rodovia. Meu pai agarrado aos malotes, despreocupado, ria empolgado, como se fosse uma criança em uma festa no jardim de infância. O único momento de seriedade foi quando me ordenou a severas, que eu desse com o pé na tábua. Foi o que fiz.

Há uma distância de meio quilômetro do local do assalto, ouvi um barulho de sirene. Vi que os canas estavam em nosso encalço. Acelerei a caranga que não foi páreo para os ratos. - Os outros caras, eu não sei, mas tudo leva a crer que eles serviram como boi de piranha.

Bem, por tudo que meu tio Carlo significou e ainda significava, jamais o deixaria abandonado no meio do mato morrendo à mingua.

_Não o deixarei - Fui conclusivo. Poucas vezes em minha vida contrariei meu pai por saber exatamente qual seria o desfecho da minha ousadia.- um soco bem dado no nariz que me faria cair para traz. Isso não seria bem vindo, principalmente nas atuais circunstâncias. Mas meu tio já fizera muito mais por mim outrora.

_Caralho! Moleque de merda! então fica no dodge que eu vou dar umas voltas a pé ver se encontro alguma coisa - Pegou sua arma e uma lanterna que havia no porta-luvas do carro e saiu praguejando enquanto se embrenhava por um carreiro que havia perto de onde havíamos escondido o dodjão.

Tornei ao dodje, a fim de saber como ele estava. A visão nefasta do seu corpo todo ensangüentado, estirado no banco de traz, me causou vertigens.

_ Meu deus, tio!

_ Agora é tarde garoto! - independente de qualquer sentimento de compaixão que sentira por ele, tive que me conformar com a mais absoluta verdade, ele não iria durar muito - escuta garoto, você tem um daqueles cigarros aí com você?

_ Sim, claro! - Tirei um pequeno pacote de plástico que eu tinha no bolso e, com as unhas, comecei a triturar a erva. Enrolei um baseado, acendi, e levei à sua boca para que fumasse. Eu nunca antes havia visto meu tio fumar. Durante sua juventude, ele havia tido graves problemas com drogas pesadas, e como dizia meu pai; "ele é um bosta de um puxador de fumo". Meu velho sabia tudo sobre armas, mas não tinha a menor idéia da diferença entra cocaína e maconha; sempre manteve um sermão hipócrita sobre o assunto, apesar de ser um velho beberrão que adorava quebrar bares. Certo dia em que fomos visitá-lo na cadeia, ele, em um dos seus ridículos discursos moralistas, disse ao meu tio Carlo, apontando o dedo em sua cara e vociferando alto para que todos ouvissem, que se porventura ele soubesse que eu estava fumando por intermédio dele, fugiria da cadeia só para lhe quebrar o pescoço. Meu pai não precisava se preocupar com isso, meu tio jamais sequer falou sobre drogas comigo; aprendi tudo na escola.

Enquanto meu tio fumava, olhava para o nada como que esperando a iminente morte. Ele me disse que se agora meu pai quisesse quebrar o seu pescoço, ele não se importaria. Aquilo fez com que ríssemos. Logo após, um súbito e melancólico silêncio envolveu-nos por completo. Ainda olhando pro nada disse suas derradeiras palavras:

_ É, garoto, como dizia o poeta: "o duro da vida é que ela nos endurece".- nisso, o cigarro que estava em sua boca caiu e apagou-se em seu sangue, seus olhos então, fecharam-se para sempre.

Por um instante permaneci ali olhando-o sem nada sentir, como que querendo ver a sua alma desprendendo-se do corpo. Independente de qualquer coisa que eu havia ouvido nas maçantes aulas de catecismo, se Deus realmente fosse um ser justo, mandaria meu tio para um bom lugar. Que seja o paraíso ou céu não importa, um lugar qualquer onde não encontraria nenhum pastor, padre ou fanático religioso, onde só estariam as pessoas que sofreram injustamente neste largo mundo insano.

Logo caiu a ficha e comecei a chorar muito agarrado em seu corpo. Tive a horrível sensação da solidão absoluta, havia perdido o tio Carlo, meu amigo e meu mestre. Saí do dodge segurando sua arma - caminhei por alguns metros, sentei no meio da rua, apontei a arma em direção a minha cabeça, fechei os olhos e ali fiquei por alguns instantes. "Eu não tenho essa coragem" - pensei. Voltei para o dodge e ali observava seu corpo sem vida, estatelado no banco de traz. Logo apareceu meu pai apontando sua lanterna primeiro em direção do meu rosto depois em direção ao corpo do tio Carlo.

_ È, ele abotoou o casaco de madeira! - Tripudiou o desgraçado.

Eu estava muito triste para me zangar com ele, então eu não disse nada, apenas continuei ali olhando para o meu tio.

_Vamos garoto, tivemos sorte, consegui ajeitar as coisa prá nós. Há um lugar bem perto daqui que podemos ir com o dodge sem levantar suspeitas. Lá podemos esconder o carro e, quem sabe, até passar a noite. Amanhã a poeira já terá baixado um pouco e nos mandamos. - O cara não estava nem aí com a morte do irmão. Aquilo fez meu sangue subir.

Ele tomou o volante, deu partida no carro e saiu lentamente com os faróis apagados. Passou por uma porteira que estava com o cadeado roto, pediu que eu descesse e a fechasse logo que o carro entrasse.

Chegamos a um casebre de madeira. Ao lado havia um paiol maior até que a própria casa - as portas do paiol estavam abertas. Ele acendeu os faróis do carro e entrou. Dentro havia um trator novinho em folha e muitas ferramentas, sementes e tudo que se usa para o plantio, além de uma dessas camionetas rurais em excelente estado. Saímos do carro trancamos o paiol e entramos na casa. Havia um casal de idosos, amarrados e amordaçados, jogados num canto da casa. Eram nossos malfadados anfitriões.

Disse ao meu pai que não haveria necessidade de amarras tão fortes, e tão pouco da mordaça - estava-mos longe de tudo e ninguém ouviria nenhum pedido de socorro por mais desesperado que fosse - ele mandou que eu me cala-se, mesmo assim eu os aliviei as amarras e tirei a mordaça. Disse a eles que não haveria motivo para se preocupar, que só iríamos passar a noite e logo pela manhã estaríamos longe. O senhor idoso me acenou positivamente com a cabeça onde havia um recente ferimento provavelmente causado pela coronha da arma do meu pai. Timidamente me agradeceu por ter lhe aliviado as mãos. A senhora idosa me fitou com um olhar fraterno e disse com uma impressionante serenidade, que eu não era uma pessoa má e que por favor fossemos embora, deixando-os em paz. Meu pai com a geladeira aberta e a boca cheia de comida soltou uma gargalhada dizendo que se ela não se cala-se, lhe daria um tiro na cara. Senti que ela ficou deveras amedrontada com o meu pai.

_Venha garoto, coma alguma coisa. Não comemos o dia todo. Do jeito que você é esfomeado, deve estar com as lombrigas degladiando-se em seu estômago – não dei importância a ele e fiquei ali ao lado dos velhinhos. Jurei a eles que nada lhes iria acontecer.

Lembrei do tio Carlo e meus olhos começaram a lacrimejar. A senhora idosa me olhou compassiva, não entendendo nada do que estava acontecendo.

Enquanto meu pai se empanturrava com tudo que achava na geladeira, levantei do chão onde eu estava sentado, e fui em direção a uma foto que havia na parede, de um rapaz em uma beca, feliz com seu canudo universitário.

_É o nosso filho - disse a senhora com orgulho ele se formou em jornalismo na capital.

_ Ele ainda mora lá? - Perguntei demonstrando um pouco de interesse, tentando aliviar a tensão que predominava.

_ Não - interviu o velhinho com um certo pesar - a cinco anos que não sabemos mais dele.

A senhora agora com tom choroso na voz completou:

_ Foram os militares, eles o prenderam porque Diogo sempre se preocupou com os outros. Dizia que com o jornalismo poderia ajudar muita gente. Ele sempre tocou na ferida dos poderosos, denunciando o descaso do governo com o povo humilde - até que um dia o acusaram de terrorismo e o prenderam. Um outro rapaz que era professor esteve com ele na prisão e nos trouxe uma carta sua quando ele já estava nas ultimas, foi torturado até a morte.

Aquilo me remeteu ao tio Carlo que sempre falava sobre essas coisas, e do quanto ele se revoltava com a situação das pessoas pobres nesse país.

_ humpf! Foi se meter com os milicos, se fodeu! - disse meu pai, debruçado sobre a mesa, ainda com a boca cheia de comida.-

_ Pai, por favor! - Dirigi-me a ele em tom severo.

_ Tá bom, vou deixar vocês ai com esse papinho de comadres e vou descansar o esqueleto. Escute aqui garoto! não vá fazer cagada! mantenha-os amarrados e não durma. Amanhã pegamos a camioneta desses trouxas e nos mandamos. Eu vou dirigindo, e aí você pode dormir. - saiu da mesa e foi a um dos quartos que havia na casa espreguiçando-se e bocejando enquanto caminhava meio trôpego.

_ Por favor! - supliquei - me fale mais sobre ele.

_ Ele era o nosso único filho - disse o velhinho - nós trabalhamos duro para lhe dar uma boa educação. Na faculdade sempre foi um aluno exemplar. Quase morríamos de orgulho pelo nosso amado filho. Eles não tinham o direito de fazer o que fizeram. Mataram-no cruelmente. Nem o corpo do Diogo, eles nos devolveram, para que o enterrasse-mos decentemente. - de repente uma angústia intrínseca acometeu-me subitamente. Lembrei que eu também era um assassino. Procurei não pensar naquilo. Voltei ao assunto que para mim estava muito interessante.

_ E a carta? Posso ler?

_ Ela esta ali, ao lado da foto.- o retrato se destacava na parede onde pude perceber recortes de jornal e outras fotos menores. A carta estava em uma moldura com vidro. O papel estava amarelado e sujo. As letras se emaranhavam em gotas de sangue, provavelmente vindas do morto.

Assim dizia as últimas palavras do moribundo:

"Querido pai e querida mãe; sei o quanto sofreram para dar a este que tanto os ama, a educação sempre sonhada desde a sua feliz infância. Lamento pela minha prematura morte que agora vos anuncio. Eu teria feito muito por esse povo se os covardes não tivessem interferido tão cruelmente em meu destino. Peço que não se desesperem, e não desistam de suas vidas pela ausência da minha. Tenho pensado em meus dias de cárcere o quanto tive sorte por ter pais tão maravilhosos, que sempre se esforçaram bravamente para ver o seu filho realizado naquilo que sempre julgou importante. Obrigado pela minha vida que, mesmo curta foi o suficiente para que, graças a vocês, eu pudesse perceber o quanto há de beleza no mundo quando se é amado com fui por vocês. E é por querer esse amor difundido, minha vida agora esta sendo abreviada. Gostaria muito que eu fosse poupado, para que pudesse fazer mais pela minha luta, mas, em contraponto, me sinto honrado por ter o sangue tão gloriosamente derramado, por tão justa causa. Mais uma vez eu peço para que não se desesperem, e saibam que sou o resultado de todo esse amor que sempre empregaram em minha vida. O mundo esta dominado pelos cruéis, mas como eu existi, virão outros, e mais outros com a simples mensagem de amar incondicionalmente a todos os esquecidos e violentados. Me despeço com pesar, por ter lhes causado tamanha dor.

De seu filho amado, Diogo Ravegua."

Aquelas palavras me causaram emoção, indignação e vergonha. Eu, ao contrario do Diogo, era a parte doente deste infeliz mundo. Usei a minha vida para lamentar e saciar as minhas infames paixões. Chorei desesperadamente até não agüentar mais. Aos prantos, voltei ao velhinhos que continuavam atados e desconfortavelmente jogados no canto da sala. Desfiz as amarras e disse a eles para que fugissem e procurassem a polícia. Eu cuidaria do meu velho quando ele acordasse. Mas, ele já havia acordado e estava na porta do quarto com a arma apontada para nós.

_ Eu sabia que não podia contar com você, seu piá de bosta. Eu iria matá-los pela manhã antes que saíssemos, mas você com o seu sentimentalismo de menininha, fez com que eu adiantasse as coisas. Vou dar um fim agora nesses velhos. - saquei minha arma da cintura e apontei para ele.

_ Eu não vou deixar você matar essas pessoas! Olhei firmemente em seus olhos e engatilhei o revolver.

_ Ah! Garoto. Não brinque assim comigo. Eu sou bandido velho, já passei muito tempo na cadeia onde cobra come cobra, não vai ser um pentelho como você que vai meter medo num cara...- antes que ele terminasse o que estava dizendo disparou com a sua arma em minha direção acertando curiosamente no mesmo lugar que causou o ferimento fatal em meu tio. Por conseqüência, minha arma também disparou instantaneamente. O tiro acertou em cheio o seu pescoço dilacerando sua jogular, fazendo com que seu sangue espirrasse para todos os lados, causando-lhe uma morte quase instantânea. Eu, mortalmente ferido fui amparado pelo gentil casal de velhinhos. Enquanto me esvaía em sangue, pedi para que eles não me deixassem sozinho naquele momento. A senhora beijou-me a face e a apoiando um lado com uma das mãos disse:

_Não se preocupe, nós não o deixaremos. Como morreu nosso amado filho, defendendo os que não podiam se defender, você também sacrificou sua vida por pessoas que não conhece. Você irá para onde ele foi.

Ouvindo isso, minha alma acalmou-se livrando-me de todos os fantasmas que a muito me atormentavam. Senti pelo breve momento, em que estive esperando pela morte, todo aquele intenso amor descrito tão maestralmente na última carta deixada pelo filho tão adorado. Então meus olhos calmamente se fecharam, e a paz tão almejada pelo meu controverso coração, enfim foi alcançada.

marcos barreto
Enviado por marcos barreto em 30/01/2005
Reeditado em 03/03/2005
Código do texto: T2990