INDULTO DE NATAL  DE  1969 *



Querido diário.

Quantas vezes sonho em voltar para casa. Ver novamente meus amigos, parentes, minha cidade, o céu do meu país. Gostaria de andar livremente pelas ruas. Naquela rua clara e calma do meu bairro, na qual os meninos hoje rolam em seus skates, no meu tempo eram carrinhos de rolamentos, feitos por eles mesmos. As corridas emocionantes que sempre terminavam em joelhos esfolados, as peladas de fim de tarde, as broncas dos passantes, sujeitos à boladas ocasionais. São lembranças de pouco tempo atrás, sete ou oito anos apenas, mas para mim tão distantes, assim como a distância que me separa de minha terra.
Foi no primeiro dia de abril. Nuvens negras envolveram minha rua e parece que estão lá até hoje. Numa noite, a pontapés, invadiram minha casa e sombras verdes levaram meu pai. Alguns anos eu e mamãe procuramos por ele.
- Não está aqui. Aqui não deu entrada.
- Foi transferido.
- Nada consta em nossos arquivos.
- Uma moça linda como você não terá dificuldade em conseguir informações, desde que queira de verdade...
Certo dia papai apareceu numa lista de pessoas trocadas por um embaixador. Algum tempo depois viemos, eu e mamãe, ao encontro dele aqui.
Poucos meses e a mesma nuvem verde desceu aqui. Eu em “atitude suspeita”, pois conversava com amigos na porta de uma fábrica, filha de exilado, não deveria ter amigos operários, nem portar jornais de minha terra que denunciavam atrocidades. Eu apenas sentia falta da minha rua, dos meus amigos, do céu do meu país. Voz de prisão. Confusão. Ameacei correr, me lembrei que neste assunto de segurança nacional os homens são violentos e eu não suporto dor. Tenho muito medo. Uma bala de carabina me queimou a garganta. O promotor acusou; pichação de muros; distribuição de panfletos esquerdistas; trotes telefônicos com finalidade de conturbar os órgãos de segurança; vigilância de bancos com objetivos escusos, subversão.
Condenada, rolei de prisão em prisão. Na "menina linda "como eu, meus interrogadores deixaram suas marcas. Minha virgindade pertence a um grupo de animais e cassetetes de borracha. Não há maneira de descrever o que os defensores da lei praticam em nome de Deus, Família e Propriedade. Campos de extermínio não ficaram restritos à segunda guerra. 

Hoje foi assinado o indulto de Natal. Muitos ladrões e assassinos estarão nas ruas novamente. Fico pensando que talvez possa estar entre eles, voltar para a minha rua participar das peladas com os meninos. Não, atualmente não é possível, creio que nunca mais me livrarei deste colete que me aperta a coluna e desta tosse que mancha de sangue meu lenço.

O carcereiro me disse que não estou na lista dos presidiários que serão indultados este ano.



* Carolina morreu de tuberculose e infecção generalizada no dia em que completaria vinte e três anos. No exato momento em que o Brasil conquistava a copa do mundo de futebol e o povo todo cantava “Pra frente Brasil”.
Humberto Bley Menezes
Enviado por Humberto Bley Menezes em 24/11/2006
Reeditado em 12/04/2007
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