Quadrinhos

Parecia tão longo o caminho ser percorrido da cozinha até a porta de entrada da casa, todos os dias ele fazia esse percurso, e se não cumprisse o trajeto exatamente da mesma maneira ficava irritado. Ninguém conseguia entender o porque de contar nos dedos, também ninguém sabia o significado daqueles neologismos que ele inventava.

Havia já alguns anos que Beto não se sentava à mesa, fosse onde fosse, os da casa já haviam se acostumado a vê-lo ao pé da pia ou sob o batente da porta com o prato à mão. Andar na calçada, jamais! Costurava entre os carros e não raro ouvia bronca dos motoristas; apesar do seu comportamento estranho, era dócil.

Beto tinha gostos nada convencionais não ia ao cinema, nada de barzinhos, namorada era coisa que não lhe fazia falta, era quase certo que apesar dos seus 35 anos ainda era virgem. Tinha ele seu próprio mundo, vivia as voltas com seus aparelhos de musculação, esse sim era o seu verdadeiro e maior prazer; "treinar" como ele sempre repetia. Trocava qualquer coisa por seu treino, se esforçava e media os músculos constantemente, e onde quer que se estivesse pela casa; lá estava ele fazendo pose para demonstrar os músculos cada vez mais definidos.

Mergulhava nos gibis, passava horas distante...ou se deixava perdido nos filmes do homem-aranha, e outros super-heróis que pululavam na sua imaginação do dia a dia.

O mundo é complexo, mas o de Beto, era muito mais, já que ele vivia com a cabeça enfiada nos seus sonhos malucos. Achava que era super-herói, assim nada para ele era impossível; laçando mão, mentalmente dos superpoderes se livrava de tudo que não gostava, esse mesmo poderes que lhe protegiam dos perigos de ziguezaguear entre os carros.

Um dia ele fechou os olhos e decidiu que não era mais o Beto.

- Puft! Olhou a sua volta e viu-se cercado por um quadrado colorido, uma cidade toda desenhada, com prédios altos, árvores e plantações verdinhas pintadas e contornadas por canetinhas coloridas. Caminhou um pouco olhando dos lados, só via o que estava à sua frente, percebeu que o quadro mudou, e a medida que caminhava, mudava a cena e o quadradinho, até que num quadro deparou-se com uma bela mulher de curvas sinuosas, saltos altíssimos, boca vermelha e saia muito justa, que gritava socorro. O banco tinha sido assaltado, ela gritava pelo seu super-herói das revistas de quadrinhos.

Envolvido num tornado de rabiscos, Beto se transformou e saiu voando atrás dos bandidos; nos próximos quadrinhos os capturava e os encerrava na cadeia. Foi quando percebeu que também era um personagem desenhado e ridiculamente musculoso, com uma enorme capa vermelha, mas nem parecia mais com ele mesmo. Sentiu estranhamente vazio.

Por um momento Beto imaginou que se fechasse os olhos voltaria a sentir de novo sua pele, sua carne, seus cabelos, mas quando os abriu viu que era agora só um personagem comum de papel, trabalhando num escritório de móveis e pessoas desenhadas caprichosamente. Não via ninguém conhecido, nada lhe parecia familiar, nem habitual, se sentiu oco; quis fugir pelo quadrinho colorido desenhado ao seu redor.

Mas por mais que se esforçasse só conseguia agarrar a caneta de quem fazia e desfazia das cenas que vivia. Lutou bravamente para pular fora do quadrinho, nem com seus superpoderes conseguiu voar por aquela janelinha. Sentou-se cansado de se debater e adormeceu.

Acordou sentindo um toque estranho no seu corpo, olhou para cima e viu uma enorme borracha apagando com toques leves o seu minúsculo corpo, quis correr, faltou-lhe pernas...

- Psiu! Se não quer mais ser um super herói, sossega que vou colocar-lhe em outra história.

- Não! Argumentou, quero sair daqui, quero voltar a ser quem eu era.

- ? Como??

- Tira-me de dentro dessa revista em quadrinhos! Quero ser gente de novo!

- Mas...não posso...

- Desenha-me de novo as pernas e me dê asas.

- ....

Logo que se viu alado, voou desesperado para fora do quadradinho colorido, continuou voando, voando com suas pequenas asas até que: Plaft! Tomou um tapa e caiu atordoado. Acordou com a voz da sua mãe:

- Beto, cadê você? Tem um desenhista de quadrinhos procurando por você.

Angélica Teresa Faiz Almstadter
Enviado por Angélica Teresa Faiz Almstadter em 04/12/2006
Código do texto: T309488
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