A Morte para Vivaldo

Tudo o que foi encontrado ali iam jogando fora sem nem mesmo deixar passar pela peneira dos necessitados, que aceitam tudo o que lhes é oferecido.

– Quase tudo, Deise. Há alimentos que matam e roupas que sufocam. Jogue fora, sem dó.

Ela acatou ao marido – bem mais velho do que seus trinta anos – e, de orelhas murchas, pôs-se a tentar entender como um homem cético, e não dado a coisas de alma e espiritismos, diante daquele mundaréu de objetos úteis, queria desfazer-se de todos sem sequer tocá-los nem ponderar sua radicalidade. Estariam amaldiçoados?, ela disse sozinha e acabou largando a caixa que segurava, magoada com o mau agouro que Vivaldo a estaria deixando sujeita. Quer dizer que eu posso? Hã!, e foi até a sala, deixando o quartinho, e encontrou o esposo em pé ainda, sem coragem de se sentar naqueles móveis.

– Isso já é exagero. Depois vai reclamar de dor-nas-costas.

– E você já me viu reclamar de dor em algum lugar? Você que está irritada.

– Só falta você querer que eu arraste os móveis pra fora sozinha.

– Sozinha, não. Daqui a pouco eu chamo... ah, meus Deus, o aparelho de telefone também. Eu vou na cidade agora e compro um novo.

– Que exagero...

– Como?

– Com que dinheiro, eu disse.

– Ah, é isso que está te preocupando...

– Eu disse: que exagero! Não quero jogar fora aquele telefone! Tem marfim nas pontas, Vivaldo...

– Podia ser de ouro. Eu te avisei antes. Não reclame. – e saiu para comprar outro.

Deise foi avisada, decerto, mas não inteirada dos motivos dessa estranha atitude e muito menos do valor daqueles objetos. Para comprar baixelas e tapetes como aqueles, levaria a vida toda. Se vendesse a metade do que havia ali – e nem tinha aberto o cofre nem chegado à adega! – ficaria rica em questão de dias. Guardou então o telefone na mala e retirou em seguida. Não precisaria fazer nada escondido de ninguém, era simplesmente uma questão de decidir-se: jogava ou não fora, Vivaldo que se virasse a partir de sua decisão. Ora, tudo até aquele momento não aconteceu sem que Deise fosse consultada? sem que ela pudesse manifestar interesse por essa ou outra jóia? avaliasse os motivos de Vivaldo para desprezar tamanho dote? ou, simplesmente, sem dar chance para que ela concordasse com ele.

O desdobramento para essa falta de confiança, ou de diálogo, ocorreria sem contar com o apoio de Vivaldo. Deise abriu as cortinas, varreu o chão com a vassoura mais antiga que já tivera a oportunidade de tocar, limpou a superfície dos móveis com um fiapo de pano secular, deu corda nos relógios – só na ante-sala eram três –, ligou o rádio com mal-contato, tirou os lençóis amarelados que cobriam toda a mobília – inclusive a dos quartos –, deu descarga em todas as privadas, limpou a louça das pias e bidês. Foi até o pomar, onde o mato parasitava a beleza daquelas árvores carregadas com frutas da estação. Teve tempo de cortá-lo todo, usou o ancinho enferrujado para a retirada de folhas, frutos podres, restos de ninhos e com um grande cesto que avistou na edícula enquanto cutucava um cacho de marimbondos de uma mangueira, juntou uma seleção de serigüela, graviola, uvaia, coquinho, manguito digna de ser exportada, e levou tudo à cozinha ampla e que ocultava um arsenal incrível de antigas engenhocas como um batedor de claras que estava mais para transmissor de tétano e, ah... que diferença dos multiprocessadores elétricos, um moedor de carne à manivela! O liqüidificador parecia um mini foguete blindado. Ouviu um sonzinho que parecia vir do corredor. Abriu uma veneziana que, mal sabia ela, dava para um jardim de inverno que rodeava uma bica d’água. Bebeu, bebeu, bebeu aquela água fresca, fresca. Aproveitou e lavou o rosto, tirou o suor do pescoço, olhou para o alto e notou que o sol já havia cruzado o céu. Vivaldo estava demorando.

Preparou refrescos com as frutas, sentou ao lado do rádio e abriu uma revista de moda já bem fora de moda e nem percebeu quando Vivaldo, para não pisar o capacho, pulou-o com o novo telefone embrulhado e parou diante dela: exausta, estirada sobre um sofá de canto e com um par de chinelas velhas a seus pés que ele reconheceu imediatamente, e não pertenciam a ela...

– Deise!

Ela pulou de sobressalto, mais de susto que por dever algo como explicação, por exemplo, a Vivaldo. Naquele instante, começou a chover. Deise havia deixado todas as janelas e portas abertas. Olhou para Vivaldo e foi controlar a molhadeira fechando o que deveria ser fechado. Enquanto isso, meia dúzia de goteiras também pediam por controle. Vivaldo, ao contrário do corre-corre de Deise, estremeceu e manteve-se em pé, acompanhando com olhares tensos as atividades de sua esposa. Não a ajudou em nada. Ela, por sua vez, manteve sua energia e foi só sossegar quando encontrou baldes suficientes para conter a enxurrada que vinha das telhas com potes e penicos que foi encontrando. Quando conseguiu concluir sua tarefa é que foi ter com o marido. Vivaldo a media como se estivesse ela possuída por alguma entidade demoníaca.

– Não bastasse eu avisar que não ficaríamos com sequer um prego daqui, você fuçou a casa toda, encontrando função para tudo... Deus do céu, Deise, você está morando aqui já!

– Ah, e o que você esperava que eu fizesse? Sei muito bem a diferença entre utilizar e desperdiçar. Eu é que estou estranhando você.

Perceberam que a chuva estava forte e sem sinais de trégua. Um silêncio.

– Vou passar a noite aqui.

– “Vou”? Eu então que vá sozinho e procure um hotel, é isso?

– Não. Você que... Você que nada. Eu é que estou comunicando o que eu vou fazer, e não será pegar estrada com esse tempo.

– E não será ir comigo tampouco.

– Vivaldo...

– Deise! Ou você se esquece, ou essa casa é minha daqui por diante e já lhe disse de antemão que só estamos aqui hoje para evacuá-la.

– Só não disse porquê.

– Para torná-la habitável. O que é que deu em você? Então eu estou em pé até agora à toa? Mandei você jogar fora...

– Pediu.

– Mandei! Tudo aqui é meu! E você só terá parte disse quando tudo já estiver vazio. Aí sim, faço inclusive questão de que você redecore tudo como bem quiser e não vou me opor nem à cor das paredes.

– Eu gosto assim.

– Como está, não!

Deise não quis entender. Escolheu um quarto, com cama de viúva, e lá preparou seu leito com o que viu à disposição e lá se deitou. Vivaldo foi até o corredor dos quartos e quando a viu deitada, chorou.

– Você está me matando assim...

O sono começou a consumir Vivaldo e o cansaço queria dobrar suas pernas ao meio. Se escorava nas paredes, desesperado. Queria conseguir sair dali com a companhia de Deise, e temia que não estivesse mais a seu alcance as duas coisas. Acordou Deise, que não estava dormindo, mas assim quis que parecesse a Vivaldo.

– Deise.

– Não.

– Deise...

– Vivaldo, não!

– Deise! – e se ajoelhou. Soluçou, grunhiu. Se babava todo.

– Eu não saio daqui enquanto você não dividir comigo o que está por trás desse seu número. Eu não posso concordar com o que não conheço, Vivaldo.

– Conhecer meus motivos não vai fazer com que você entenda.

– Então, já que pouco importa o que eu pense, gostaria que você me deixasse dormir e descansar.

Vivaldo se levantou e foi até a janela. Tocou aquelas cortinas grossas como se acariciasse o cadáver de um ente querido. Deise desistiu de fingir que tentava dormir e, de costas para Vivaldo, ficou de ouvido reparando o modo como ele chorava. Era um choro dolorido. De fato estar ali naquela antiga casa, rodeado daqueles antigos objetos, era para ele mais do que um transtorno rabugento, era a morte! Deise então se levantou, foi até ele repleta de silêncio e perdão, tocou seu ombro forte e pesado, e o amou com os olhos de esposa e amante.

Marcos Baô
Enviado por Marcos Baô em 05/12/2006
Reeditado em 24/01/2007
Código do texto: T309748