A MOÇA DO PONTO DE ÔNIBUS

Todos os dias, indo para o trabalho, no mesmo horário de sempre, faço sempre o mesmo caminho, eleito não despropositadamente, mas por ser o melhor, do ponto de vista de quem dirige. O trajeto percorrido se tornou em minha mente uma espécie de filme que se repete todos os dias. Como comercial te TV que reaparece a cada instante na televisão da minha realidade. Como todo ser humano normal, mas diferente por ter a qualidade da profunda observação - qualidade a titulo de pura vaidade em benesse à estima deste narrador. Tenho a exata noção dos efeitos que a lentidão das atividades cerebrais, nessas primeiras horas do despertar, sobre a forma como meu corpo processa as informações. Todo o conjunto de ações que alavanca o início do cotidiano compreendido entre os chamados dias úteis, se desenvolve quase que mecanicamente, programado pelo cérebro para depender do menor numero possível de sinapses para prosseguir. O caminho percorrido até o trabalho não é diferente. Não há registros detalhados do que existe ou acontece. Por certo eles existem, mas estão armazenados aquém da curiosidade instintiva que move nossos olhos, e além do senso crítico que aguça nosso intelecto. Mas há uma exceção no meu trajeto, uma exceção que se alinha no horizonte de ambas as perspectivas. A moça do ponto de ônibus. Uma personagem do meu roteiro matinal que destoa dos demais. Considerando que as demais são desconhecidas que se inserem no roteiro aleatoriamente entre uma sinapse e outra da minha cabeça, sem que eu as considerem partes integrantes do trajeto, a moça do ponto de ônibus fica ainda mais em evidência.

De altura suficiente para ser considerada alta, e cabelo ornamentado denunciando o excesso de vaidade, faz concluir que a dedicação prévia para se atingir aquele resultado no visual consume muitos minutos que antecedem nosso encontro, minutos esses que, muito provavelmente, começam a ser contados muito antes de meu próprio despertar. O fato é que, nunca vi alguém esperar por um ônibus com tanta elegância. Parece engraçado quando contado assim, de surpresa numa frase solta. Como de fato o é. Mas as nuances que permitem a apreensão exata da sutileza e transcendência da tal cena não pode ser traduzida em palavras. Pelo menos não as minhas. Muito provavelmente Saramago conseguiria tal excelência, sem muito esforço. Mas, nessas circunstâncias, o leitor deve ter fé na narrativa deste singelo narrador factual. O corpo magro, e muito bem trajado, compunha uma silhueta longilínea, e as pernas, cruzadas a meia coxa, apontando o bico do salto para um horizonte onde os pés, geralmente, não têm acesso, na mesma direção dos quadris, levemente inclinados para facilitar a composição da postura, davam a nítida sensação de que aquela moça deveria estar sentada em qualquer outro lugar condizente com aquela pose embevecida, menos num ponto de ônibus. Os imensos óculos escuros contrastam com sua pele alva, e, obviamente, escondendo a expressão dos olhos, reforçam a plasticidade dessa personagem singular no meu cotidiano. Nuca a vi sorrindo, ou falando, ou manifestando qualquer tipo de gesto que demonstre alguma animação, prazer, raiva, insatisfação...ela é como um retrato num cartaz publicitário. Da minha existência ela tem noção, certamente, apesar de não ver a direção do seu olhar, sei que me olha pelo movimento que faz com a cabeça enquanto passo pela rua, exatamente na frente dela, momento de 3, no máximo 4 segundos de contato visual. A única diferença é que eu a observo todos os dias. Ela, no entanto, apesar de me ver, em alguns dias, faz encenar um interesse disfarçado por outras coisas alheias a minha passagem, em prol da manutenção da indiferença que existe entre pessoas desconhecidos. Mas tenho certeza de que ela nota minha ausência nos dias que por ventura preciso atrasar.

Engraçado pensar que, da mesma forma que ela já pertence ao meu cotidiano, eu pertenço ao do dela, ainda que ela não saiba disso. E isso me faz pensar na quantidade de outras pessoas que fazem parte do meu cotidiano, e que, ao contrário dela, não têm notoriedade alguma do meu ponto de vista. Para alguma dessas talvez eu seja tão importante quanto a moça do ponto de ônibus seja pra mim. Quem traz o galão de água para abastecer o bebedouro do escritório? Quem compra o café que a Dona Cida, copeira do meu andar, usa pra abastecer nossas garrafas térmicas? Quem recolhe o lixo da cesta de lixo da minha casa? Quem são as pessoas que atravessam a rua, bem na minha frente, enquanto espero o semáforo piscar verde? Quem são todas as pessoas que fazem parte da minha vida, as quais nem sei quem são e, provavelmente, nunca saberei. Não quero aqui sugerir, nem trazer discussão sócio-antropológica acerca do tema. Tratam-se apenas de divagações.

Amanhã reencontrarei a moça do ponto de ônibus, e ela a mim. Nada mudará, senão as posições das nuvens no céu, e o dia no calendário.

Ricardo Henrique
Enviado por Ricardo Henrique em 21/08/2011
Código do texto: T3174236
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