José e o Gauche

Havia um bom tempo que ele não passava por ali, na verdade, nem lembro quando foi a última vez que isto aconteceu. Passos serenos como de costume carregavam o corpo magro. Mãos juntas ao corpo como de costume, cabeça baixa como de costume; costumes estes adquiridos na adolescência quando, para ele, inventaram uma tal insubordinação mental. Ah, e como de costume, carregava um caderno em uma de suas mãos, para fazer anotações, talvez!

Resolvi seguir o gauche. Devo salientar que nunca tive por hábito seguir pessoas pelas ruas; menos ainda havia a necessidade de segui-lo. Pois, sabia bem para aonde ele se dirigia sempre que por ali passava. O destino era sempre o mesmo: o calçadão do mar de Copacabana, claro! Só o seu olhar não era o de costume. Isso me intrigou. Então, o segui em seus passos lentos, ritmados, determinados.

Caminhou pelo famoso calçadão, sentou-se num dos bancos e com olhar atento aos transeuntes, apreciava em silêncio a toda a agitação a sua volta.

Sim, ‘o homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa’. Assim era o gauche e assim permanecia por horas seguidas; ‘o homem atrás dos óculos e do bigode’, a observar, a pensar, a reter em sua mente o cenário capturado por suas cansadas e atentas retinas. Percebia que por ali passavam ‘pernas brancas, pretas, amarelas. Para que tanta perna, meu Deus? - pergunta seu coração. Porém seus olhos não perguntavam nada’! Seus olhos nada diziam do que habitava o seu interior naquele momento.

Foi então, depois de um longo período que o gauche resolveu quebrar o silêncio e me indagou enigmaticamente:

– E agora José?

– Desconhecendo seus pensamentos, respondi-lhe imediata e automaticamente: - E agora o que senhor? - Assim foram as palavras que saíram da minha boca. Porém, minha alma estava cheia da resposta para aquela simples e enigmática pergunta. Não sei porque, mas senti vontade de lhe falar sobre as novidades em minha vida e o que ia no mais fundo da minha alma; de lhe dizer que as coisas para mim haviam mudado muito nos últimos anos. Eu já não era mais um Zé na multidão. Agora eu era o José que havia dado sobrenome a uma mulher. Eu era o José que teve uma linda filha que, infelizmente, Deus a levara. Meu trabalho então, nem se fala! Eu fazia o que mais gostava na vida. Era admirado, respeitado; uma celebridade! Sem, contudo, perder a humildade. Conseguia manter com serenidade as coisas em ordem na minha vida e dentro da minha casa, graças a Deus! Embora famoso, com a vida simples que havia acostumado a levar, eu, o José, já sabia bem para onde ir... Sim, eu tinha tudo para ser feliz, para estar feliz. Mas, naquele dia e naquele momento não era assim que me sentia. Estranho isso, não?

Todos os detalhes da minha vida passavam pela minha cabeça num turbilhão. Eu pensava e desejava conta-los pormenorizadamente ao gauche. No entanto, me intrigava o fato de nunca antes ter conversado com aquele senhor, vê-lo me chamar intimamente pelo nome e sentir extrema afinidade com ele.

Mais uma vez o gauche quebrou o silêncio para dirigir-me aquela pergunta:

– E agora José?

– Pensei: - diante de uma pergunta desconexa como esta, posso então respondê-la com qualquer tolice que me venha à cabeça. Mas, optei por não ser desrespeitoso com uma pessoa pela qual, não sei a razão, sentia uma profunda admiração e respeito, um carinho um tanto especial!

Pelos motivos já relatados, resolvi nada lhe contar sobre minha vida pessoal. Quis primeiro saber mais sobre ele. Então, perguntei:

- de onde o senhor vem? - Sua resposta foi imediata, direta e, enigmática:

- De ‘além da Terra, além do Céu’

– Hum... E como o senhor chegou até aqui, vindo deste lugar tão inusitado?

– ‘No trampolim do sem-fim das estrelas, no rastro dos astros, na magnólia das nebulosas’.

– Obviamente, eu não estava entendendo nada do que aquele homem estava falando, talvez fosse mesmo esta a sua intenção. Mas resolvi, digamos, embarcar nos seus delírios.

- Isso realmente parece ser muito longe senhor, onde fica mesmo?

– ‘Além, muito além do sistema solar, até onde alcançam o pensamento e o coração’.

– Hum, já começava a me impacientar... Aquela conversa estava um tanto quanto surreal demais para o meu gosto, pensei. Então, resolvi mudar o foco da prosa.

- Senhor e quanto a sua família?

– Oh, deseja saber sobre meus pais; sobre minha ‘infância’?

– Se possível Senhor?

– ‘Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho, menino entre mangueiras lia história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longe da senzala - e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha, café gostoso café bom. Minha mãe ficava sentada cosendo olhando para mim: - Psiu... Não corde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... Que fundo! Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé’.

- Sim senhor... Agora sim, uma história de gente de verdade! Pensei.

– E quando não estive contando história de gente de verdade pra você, José?

– Assustei-me! - Caramba... Esse aí consegue ler até os meus pensamentos! - Ele não disse nada! Silêncio novamente... Cinco longos minutos mais. Quando pensei em falar algo, uma besteira qualquer que fosse. Pois, me incomodava o silêncio, ele me fez mais uma pergunta.

– José, ao observar esta linda paisagem a nossa volta, qual é a sua melhor lembrança?

– O réveillon! - Respondi entusiasticamente. - ‘A passagem do ano’. Tenho lembranças ótimas! Mas, sabe senhor, além das pessoas que alegres festejam, eu vejo muitas pessoas tristes, melancólicas, como se o último dia do ano fosse o fim de tudo. Mas, se esquecem que ‘o último dia do ano não é o último dia do tempo, outros dias virão’.

– É exatamente isso o que eu ia te dizer José. As pessoas sonham com um ano de prosperidade, felicidade, amor, harmonia, saúde... E, para obterem tudo isso fazem coisas mirabolantes, inimagináveis. Quando a receita é tão simples José.

- É? - Agora falava ele cheio de sabedoria.

– Sim! Quer saber? ... ‘Para se ganhar um Ano Novo que mereça este nome você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre’.

– O Senhor está coberto de razão. - tive de admitir. - É assim que as coisas funcionam. – Agora, ciente dos detalhes da sua infância e família, desejei me inteirar de sua vida particular.

- E, o senhor nuca se apaixonou? Nunca viveu um grande amor, uma paixão proibida?

– Quanto a amar, José, claro que sim! Amei, amo! ‘Que pode, pergunto, o ser amoroso sozinho em rotação universal, senão rodar também, e amar?’ Mas, quanto a paixão proibida, José. Esta vai ficar sem resposta. ‘Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer. São ‘estritamente reservadas para companheiros de confiança, devem ser sacramente pronunciadas em tom muito especial lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança.’

Mas, e agora José?

– Pronto! Voltou ele com esta pergunta! - E agora o que meu senhor? ... Diga de uma vez o que deseja saber, por favor!

– Não se irrite José. Apenas me diga a data de hoje.

– Dezessete de agosto de mil novecentos e oitenta e sete. Porque meu senhor?

– Porque hoje é o dia em que nós morremos, José.

– Perdoe-me senhor, mas eu não morri. Tampouco o senhor morreu, que insanidade senhor!

– Sim, José. Nós morremos hoje! ... E, não apenas nós, meu caro José. Pois, você, como tantos, veio a existência primeiro em meu imaginário e, de lá não saiu enquanto não o coloquei em uma história, em uma poesia, para que todas as pessoas pudessem ter ciência da sua existência, José.

– Então, sou fruto do seu imaginário, Senhor?

– Sim José, você é!

- Penso que, se eu sou fruto da sua imaginação e se o senhor morreu, devo supor que o senhor se tornou como eu?

– De certa forma sim... Mas José, e agora?

– Agora Senhor, posso respondê-lo claramente. Se, como diz, sou fruto do seu imaginário e estou num dos seus poemas. Eu jamais poderei morrer. E, o senhor acaba de se tornar como uma das suas criações. As poesias com seus personagens não morrem, senhor. Creio que deveria saber disso!

– Tens razão José. Contudo, não sou fruto do imaginário de ninguém.

– Sim, senhor... Mas, do que tens medo? És muito maior do que eu e do que todos os seus personagens. Porque serás lembrado não apenas através de mim, mas, através de todo o seu trabalho. Perceba senhor, o caminho seu caminho está livre... Nele não há mais pedra! ... Se eu sempre vivi e viverei na imaginação dos amantes da poesia, o senhor sempre viverá na recordação de todas as pessoas que amam e admiram a sua obra... Meu Senhor, não há com o que se preocupar... Nos tornamos imortais!

Texto baseado na biografia e nas seguintes poesias de Carlos Drummond de Andrade:

Além da terra além do céu

Amar

Certas palavras

Infância

José

No meio do caminho

Passagem do ano

Poema das sete faces

Receita de ano novo