OBSESSÂO - a verdade sobre meu pai - cap. IX

Arrependimento

Sem ânimo, estirou-se sobre o sofá, frustrado pela descoberta de há pouco. Criara muitas expectativas sobre o passado do pai, mas o que foi revelado não era nada grandioso, até mesmo comum. Seu semblante estava fechado, respirava pausadamente. Era difícil retirar da memória as noites de insônia, perseguindo seus fantasmas. Não suportava a idéia de chegar ao fim de sua busca sem encontrar o tesouro prometido na partida. Não havendo mais o que fazer, repensava a vida malfadada. Suas últimas ações não trouxeram nenhum benefício a ninguém, somente dor e sofrimento. Deixara as obrigações de lado, tanto profissionais como pessoais, e, conseqüentemente, desorganizou tudo o que se esforçara para construir. Compreendeu que o tempo necessário para arruinar um projeto é muito menor do que o gasto para criá-lo. Em pouco menos de um mês dera uma reviravolta em sua existência. Se pudesse, deixaria tudo como antes, mas há certas coisas que são irreparáveis, pensou.

Queria ficar em casa, completamente isolado do mundo, fechar a porta e nunca mais tornar a vê-lo. Não compreendia o seu funcionamento e jurava que ele também não o entendia. Era um ódio mútuo seguido de hipocrisia; toleravam-se e nada mais. Seu desejo, porém, não poderia ser realizado, era obrigado a cumprir o seu papel perante a sociedade, seguir regras e convenções. Tinha de permanecer ao lado da mulher e, pior do que se entregar as suas lamentações, suportar as implicâncias da sogra sem reclamar.

O relógio adiantara-se, caíra a noite e ele não a percebera entrar pelas gretas da janela. O tempo passara diante dos seus olhos e não foi capaz de notá-lo. Desonrara seu compromisso com a esposa, permanecendo mais do que o planejado em casa, sabia, portanto, que encontraria problemas ao retornar para a casa dos pais de Fernanda. Gostaria de evitá-los, mas era preciso encarar as conseqüências. Fugir só agravaria a situação.

Por volta de oito horas da noite, Jean chegou. Fernanda, da janela de seu antigo quarto, olhava atenta os passos do marido. Virou-se para a mãe, que estava sentada à beira da cama, e disse-lhe:

— Finalmente, ele apareceu.

— Já não era sem tempo — respondeu, levantando-se.

— Mãe, por favor! Não quero brigar esta noite, estou muito cansada.

— Mas como não, Fernanda? Você precisa tomar uma atitude — disse severamente. — Você não pode deixar isso barato, ele precisa ouvir algumas verdades.

— Eu sei — suspirou — mas não é hora para isso.

— É você tem razão, já passou da hora desse sem vergonha do seu marido ouvir o que não quer — esbravejou.

— Mãe, eu disse uma vez e volto a repetir, deixe que eu cuide disso. Quero ficar sozinha. Gastei demais o seu tempo por hoje e tenho certeza de que você tem milhares de coisas para fazer. Depois conversamos.

Rita não gostou das palavras da filha. Perdera há muito as esperanças naquele casamento. Não gostava da idéia de Fernanda padecer do mesmo mal de Elizabete. Não importavam mais as desculpas e explicações, condenara a união da filha, pois via em Jean a imagem do pai e todos os pecados que ela fora obrigada pelo marido a calar.

Abriu a porta do quarto e antes de sair disse, censurando a atitude da filha:

— Não diga que eu não a avisei.

Ao fechar a porta, deparou-se com o genro subindo a escada. Parou, observando-o calada, lentamente aproximar-se dela. Quis lançar-se de encontro a ele e empurrá-lo escada abaixo, mas deteve seu ímpeto assassino. Controlando seu instinto materno de proteção, enterrou os pés no chão e disse-lhe apenas que conversariam depois.

Jean percebeu que a conversa com Rita não seria nada agradável. A noite será longa, pensou. Queria voltar para casa com a esposa o mais rápido possível, mas as coisas caminhavam num ritmo contrário às suas idéias.

Receou entrar no quarto. Não sabia qual seria a reação de Fernanda ao vê-lo, depois de ter passado o dia inteiro fora. Estava decidido a contar tudo a ela, não esconder nenhum episódio de seu triste drama. Deixou seus pensamentos o guiarem ao objetivo. Abriu a porta e entrou.

Fernanda fingia dormir. Parecia indefesa e frágil a qualquer ataque voraz do animal que gritava dentro dele. Há tempos não a olhava daquela maneira, com o desejo latente falando mais alto do que a razão debilitada. Sem fazer ruídos, caminhou para a cama. Sentou-se ao lado da esposa, explorando as belas linhas do seu corpo. O lençol não a cobria por completo e as partes que ficavam à mostra o deixavam fascinado.

Ela aguardava em silêncio. Esperava que ao encontrá-la dormindo, a deixaria em paz. Daria o seu maior desprezo; o deixaria se entreter com seus próprios pensamentos naquela noite; não diria nenhuma palavra. Porém, suas reflexões se perderam ao sentir em seu corpo o toque das mãos de Jean. Suou ofegante, seu corpo inteiro arrepiou-se ao sentir o deslizar da mão em suas costas. O desgraçado faz de propósito, pensava em silêncio. Seu plano estava a ponto de desmantelar-se, era preciso manter a calma e controlar suas fraquezas.

Jean, sentindo o desejo queimá-lo, esqueceu-se de tudo, do mundo e seus problemas. A pele macia, tão quente, o levava à loucura. Há muito tempo não procurava a esposa, não saciava seu instinto natural. Cego de paixão e, completamente dominado por uma força maior do que sua sanidade, tomou-a nos braços e a beijou profunda e apaixonadamente.

Fernanda, assustada com a atitude do marido, tentou repeli-lo, mas seu corpo delicado nada pôde fazer contra a força brutal do homem. Cravou suas unhas nas costas dele, apertando-as contra a pele, o sangue escorria em seus dedos, mas ele não desistia. Cada vez mais, Jean envolvia seu corpo; aumentava a intensidade dos beijos e ela não resistiu por mais tempo. Cedendo aos caprichos da carne, entregou-se completamente ao marido.

Horas mais tarde, ela abriu os olhos. Finalmente, acordara do desmaio. Não conseguia acreditar no que acontecera, seu corpo tremia, estava encharcada de suor e exausta. Não se lembrava de uma noite de prazer tão intensa como aquela. Não sabia em que pensar, estava atordoada com a voluptuosidade de Jean, desfalecido ao seu lado.

Com muito custo, levantou-se. O quarto girava, seus olhos ardiam, mal conseguia ver. Recolheu suas roupas com dificuldade e foi para o banho. Era difícil de acreditar que aquele homem deitado em sua cama fosse o seu marido. Jean era delicado e amoroso em seus momentos íntimos, muito diferente de como acabara agir. Planejou desprezá-lo, mas fizera o contrário, entregando-se a ele passivamente. Se ele pensa que com isso, tudo ficará bem, está muito enganado. Não esqueci daquele bilhete, dizia para si mesma, enquanto a água quente batia em suas costas. A imagem ficou clara e ela julgou compreender o que ocorrera entre os dois. Desligou o chuveiro, vestiu-se e retornou ao quarto.

Ele ainda estava deitado. Tinha os olhos fechados, os braços abertos e em seu rosto, um sorriso tímido. Pensava na loucura cometida. Acreditava que em um curto espaço de tempo sua vida voltaria ao normal e os recentes episódios grotescos chegariam ao fim. Arrependera-se e queria recuperar o tempo perdido.

Ainda com os olhos cerrados, sentiu a aproximação da esposa. Não queria abri-los e estragar o momento de êxtase. Era reconfortante permanecer do jeito que estava. Ergueu os braços, sorrindo, à espera do corpo frágil de Fernanda. Ela, porém, não se mexeu. Continuou parada, apenas fitando-o colerizada. Desprezo, Fernanda pensava consigo mesma, desprezo é o que tenho que dar a ele.

— É assim que você faz com ela — perguntou ironicamente.

— Ela quem? — replicou ele, sem compreender o que ela queria dizer com aquilo.

— Quem? Você ainda tem coragem para isso? Não se faça de desentendido. Eu sei que você tem outra mulher!

— Eu já estou cansado de dizer que não tenho nenhuma amante — disse aos berros, não acreditando que a maravilhosa noite fosse ser estragada por tolices sem fundamentos. — Aposto que isso é coisa da sua mãe!

— Não culpe minha mãe pelas suas mancadas. Seja homem e assuma seus erros.

— Não quero discutir. Acredite em mim! Eu não tenho outra mulher — suplicou, sentando-se na cama.

— Se você não tem outra mulher, como explica o que vem fazendo ultimamente. Por que você não aparece no escritório há uma semana? Por que você chega tarde todas as noites? Por que este bilhete estava em seu bolso? Sim, eu estou errada em pensar assim! Meu marido muda seus hábitos de um dia para o outro e está tudo bem — ironizou.

Jean, forçado pela situação, pensou, repensou e chegou à conclusão de que contaria tudo, não omitindo uma vírgula do que fizera nesse período conturbado. Tinha que tirar de sua cabeça o fantasma que a perseguia, compartilhando com ela as aflições recentes.

— Você quer mesmo saber o porquê de tudo isso? Pois bem, eu direi.

Fernanda sentou-se na poltrona em frente à cama e esperou que o marido contasse sua história. Prestava atenção em todos os detalhes e, principalmente, em sua fisionomia. Cada vez que Jean desviava o olhar era motivo para desconfianças. Aprendera que quando alguém conta uma história e seus olhos viram para o alto é porque está mentindo.

Jean expunha sua alma, buscando compreensão. Não poupou pormenores de suas investigações, contando tudo que descobriu e suas conclusões. Ela, que o ouvia atentamente, não compreendia o que se passava com ele. Como chorava feito criança, teve vontade de abraçá-lo, porém deteve seu desejo, não acreditando no que o marido dizia. Perdera a confiança nele e dificilmente isso mudaria.. Não sou tão tola como você imagina, também sei ser cruel, pensava.

Enraivecida, não admitiu dividir a cama com ele.

— Arrume sua cama — disse ela, jogando um travesseiro no chão. — Você não vai dormir comigo.

— Mas, Fernanda eu... — tentou argumentar, mas ela não deu ouvidos.

— Não, Jean — impediu-o de falar. — Eu não quero você do meu lado.

Inconformado, preferiu não insistir, estava cansado demais para continuar com a discussão. Voltariam ao assunto assim que voltassem para casa.

Não tendo como evitar, deitou-se no chão e tentou dormir o mais rápido possível.

***

No quarto principal da casa, Pedro e Rita discutiam.

— Por que você insiste em arruinar o casamento de nossa filha — Pedro perguntou irritado.

— Arruinar! Esse casamento nem deveria ter acontecido.

— Não sei por que você insiste nisso, Rita.

— Você não sabe? — ironizou. — Até parece, meu querido! Jean é igual ao pai.

— Não diga bobagens. Eles são completamente diferentes. Não há motivo para você condená-lo pelo que ele nem imagina existir. Essas suas implicâncias ainda vão despertar interesse nele. Quando começar a fazer perguntas, quero saber o que você responderá.

— Ele não é louco de me perguntar nada. E se perguntar, eu tenho a consciência tranqüila.

— Você sabe o que poderia acontecer — alertou preocupado — se ele descobrir.

— Não vejo mal nenhum nisso. Na verdade, acho que é melhor que ele saiba de tudo.

— Eu prometi a Charles manter seu segredo. Não posso quebrar o meu voto.

— Não prometi nada a ninguém — disse impaciente. — Você sabe que sempre fui contra essa loucura. Não entendo por que Elizabete não toma logo uma atitude.

— Isso não nos interessa. É uma opção dela, não nossa. Se ela não quer contar a ele, não serei eu, muito menos você quem vai contar.

— Mas Pedro...

— Não, Rita — disse ele saindo do quarto, incomodado. — Não se intrometa na vida deles.

Pedro insistia para que a esposa deixasse a filha decidir o que fazer da vida por ela mesma. Não queria intromissões. A idéia de que Rita contribuía para o mal estar que sentia haver entre a filha e o marido lhe causava repugnância.

***

O dia amanheceu mais cedo para Jean, desconfortável à beira da cama. Estava deitado e olhava pela janela a claridade entrar. Em que ponto chegamos, suspirou.

Fernanda levantou-se da cama, fingindo não reparar no corpo aos seus pés. Arrumou-se no banheiro e desceu, deixando o marido estático. Nenhuma palavra, nenhum gesto, cismava em silêncio. Ela o deixara atordoado pela mudez. A situação era mais séria do que imaginava.

Fernanda, recostada na porta, dizia consigo mesma como se desabafasse um fardo: Consegui, dei o desprezo que lê merece. De agora em diante, só isso terá. Ele que vá adormecer nos braços daquela miserável. Cansei de chorar por quem não me dá o valor que mereço. Não vou me sujeitar às suas mentiras. Vou viver a minha vida, vou deixar de ser a menina boba que todos fazem o que querem. A inocente morreu, ele vai provar do mesmo veneno.