Reencontro

O bairro era extremamente pobre. Casas com paredes manchadas, telhados cobertos de limo. Franca decadência. Era numa dessas residências que ela morava. Regressava do trabalho pela noite, já bem tarde. Cansada pela dificuldade de conduções cheias, sem o mínimo conforto e tendo ainda que enfrentar a pé um grande percurso até sua casa. Chegava ofegante, mas mesmo assim se sentia gratificada em ter um lar que a acolhesse.

Era triste voltar para casa e não ter ninguém para recebê-la. Antigamente sim, era uma alegria chegar em casa, ser abraçada por sua mãe como se há muito não se vissem. A saudade dos tempos idos fazia com que a cena mentalizada parecesse ter sido ontem. As coisas pareciam ser eternamente as mesmas. No entanto havia uma grande tristeza em saber que aqueles momentos familiares já se foram rumo ao soturno e melancólico passado. A morte levara seu pai, depois sua mãe. E, realmente, o tempo passou como uma tempestade. Como gostava de ouvir a voz quase profética de seu pai dizendo com gravidade que ia chover, e não é que a tempestade chegava! Eram coisas tão simples, bem que poderiam ser eternas. Difícil crer que aquela voz se calaria para sempre. Por que tinha que ser assim?

Ela atravessou a sala, aproximou-se do quadro com o retrato de seu pai, sentiu uma espécie de vertigem – quanta saudade! Ao seu redor móveis pesados, paredes brancas, piso de lajotas bem gastas pelo tempo – sempre o tempo que tudo corrói!... Sala espaçosa aumenta o sentimento de solidão – . Abriu a janela e contemplou o decadente jardim, não havia quem cuidasse dele, em outros tempos era o orgulho de seu pai que, como ela, tinha uma verdadeira paixão pelas rosas, principalmente pelas vermelhas.

Na parede o velho relógio tique-taqueava no seu velho compasso, como se fora o senhor do tempo. Seus pensamentos saltavam sobre recordações, prendendo-na a lembraças desordenadas.

Antes de ir para a cama, deixava-se ficar à janela que dava para a rua, distraia-se vendo a realidade transmudada em seu cotidiano. Por mais que não desejasse comparar era obrigada a avaliar a diferença que tinha que enfrentar. Como era diferente o seu dia passado na Galeria em que trabalhava, localizada na Zona Sul da cidade, cercada pelo luxo. Como eram elegantes e alegres as pessoas que por ali transitavam. Bem diferente da sua realidade quando retornava ao lar, onde tudo era triste. Era em momentos como esse que avaliava os seus inconfessáveis anseios e deixava os pensamentos vagarem ao léu, ao sabor de pequenas lembranças. Era impossível deixar de lembrar, por exemplo, alguns fatos ocorridos em seu dia de trabalho. Vagas emoções, farrapos de lem­branças que lhe esvoaçavam pelo cére­bro.

Jamais esquecera daquele dia em que ele entrou na Galeria de Artes. Não lhe prestou muita atenção, para ela era apenas mais um dos freqüentadores que circulava entre as obras expostas. Além do mais, sua aparência não revelou nada de extraordinário. Trajava-se com elegância. Disso lembrava-se muito bem. Na verdade, o que mais lhe chamara a atenção foi o interesse que demonstrou pelo quadro de uma linda mulher. Ela, em sua discreta observação pôde vê-lo diante da obra exposta, com o rosto quase colado, como que a avaliá-la.

Em suas lembranças não escaparam despercebidos quaisquer detalhes com relação a ele, principalmente porque passou a frequentar a Galeria com uma assiduidade impressionante. Só que já não circulava em busca de outras obras, ia direto ao quadro e ali permanecia.

Como lhe era prazeroso lembrar-se daquela tarde em que, cheia de coragem e determinação, aproximou-se daquele estranho e tentou comunicar-se. Embora não percebida por ele, que continuou com o olhar totalmente voltado para o quadro.

Como aqueles minutos lhe pareceram horas! Na esperança de uma aproximação indagou-lhe se desejava alguma informação sobre aquela obra, despertando-o de sua contemplação. Ele ficou por algum tempo a mirá-la, constrangendo-a. Mas intuitivamente sentiu que daquela criatura não poderia vir nenhum perigo, além do mais seu olhar era penetrante e trazia uma aura de paz. Mesmo desconcertada, entregou-lhe um catálogo com detalhes a respeito da referida obra. Ele, sem nada dizer, pegou-o e saiu a caminhar lentamente rumo à saída, sem ao menos balbuciar um até amanhã. Nada. Silenciosamente se foi.

No dia seguinte no mesmo horário de praxe, lá estava ele, diante de sua obra predileta. Por não querer ser indiscreta ela não se aproximou dele, ocupando-se com outros afazeres numa sala contígua.

Após o decurso de algum tempo, voltou ao local da exposição em que se encontrava a obra referida, ficou espantada de não mais encontrar o visitante. Lá estava o quadro e, preso à moldura, encontrou um envelope, abriu-o: era um poema. Leu-o pausadamente. Sem saber o que fazer, dobrou o papel, colocou-o de volta no envelope e guardou na gaveta de sua escrivaninha. Tinha a intenção de devolvê-lo no dia seguinte, pois por certo ele viria para apreciar a sua obra predileta.

A noite, em sua casa, passou e repassou todas as cenas daquele dia. O que mais lhe chamava atenção não era só o comportamento daquele homem e sim seus olhos. Seu olhar era penetrante e pareciam querer dizer algo muito especial que não conseguia definir, mas projetava nela sentimentos parecidos com sonhos.

Os dias se sucediam como que aos tropeços, as horas não passavam. Em seu coração ainda guardava a esperança de encontrar de novo aquele estranho. Esperava vê-lo entrar por aquela porta, pontualmente como vinha fazendo, mas como isso tardasse a acontecer, começou a ficar inquieta e de novo lhe veio o medo, a sensação de que não o veria nunca mais. Foi um tempo estranho, delirante, um verdadeiro caos no qual os mais contraditórios sentimentos se misturavam. Para ela o desaparecido con­tinuava sendo o cavalheiro encan­tado, o que a fazia sentir-se cada vez mais ridícula por se deixar enredar pelo desejo que sentia de revê-lo.

No trabalho não trocava nem uma palavra com seus colegas sobre o fato ocorrido. Cumpria com determinação a rotina do dia.

De volta para casa a mesma rotina. Tudo era silêncio. Tentava integrar-se ao ambiente composto por móveis de aparência antiga, sentava-se na cadeira que fora a preferida de seu pai, ali fechava os olhos com força para obrigar o sono a chegar até se recolher a sua cama.

Naquela noite fazia calor. Viu que era inútil relaxar. Levantou-se e caminhou até a janela que dava diretamente para rua. A lua brilhava em uma claridade azul que banhava as fachadas das casas ao redor, transfigurando a silenciosa rua. Aquela visão tirava-lhe o folego. Não tinha a menor vontade de fe­char a janela e ir para a cama. Deixou-se ficar apoiada ao peitoril.

A vontade de rever o estranho visitante não decrescia como esperava, mas, ao contrário, aumentava tanto que, por certo, como em outras noites, não conseguiria dormir de tanto pensar nele, o que a faria levantar e procurar algum livro para ajudar a passar a noite insone.

De súbito ouviu um rumor de passos que indicava que um transeunte se aproximava. Pensou entrar, não desejava expor-se. Caso fosse algum vizinho, que pensaria ao vê-la à janela a uma hora daquelas? Mesmo sem se dar conta, vivia presa a antigos conceitos, mas tais considerações foram anuladas pela curio­sidade, aguardaria para ver quem se arriscava a caminhar por aquela rua deserta tão tarde da noite.

Os passos se aproximavam mais e mais e ganharam forma. E ela, julgando-se presa de súbita alucinação, distinguiu um vulto de homem, alto, esguio, impressio­nante. Sim, era ele.

Espantada, manteve-se imóvel, olhos fixos no fantasma, que de mais perto se delineou como sendo realmente o cavalheiro de seus sonhos.

Levada pela perplexidade, a respi­ração suspensa, pensou recolher-se e fechar a janela.

Eis que o cavalheiro solenemente vestido, como da última vez que o vira, inclina a cabeça, cumprimenta-a e vai se afastando com os passos a ressoarem não só na acús­tica da calçada deserta como nos ouvidos dela.

Totalmente atônita, ela respira fundo e fecha devagar a janela, como que com medo de quebrar o encanto de tal visão. Deita-se, mas fica de olhos abertos, em pensamento revendo o fantasma. Será que era ela que não estava regulando bem? Quem sabe o que vira era somente produto de sua mente solitária. Levantou-se, rebuscou na gaveta da mesinha de cabeceira o poema que guardara por longos dias na gaveta de sua mesa de trabalho, com a intenção de devolvê-lo, mas em vão o aguardou. Realmente cansara-se de esperar por sua volta e, por isso, levara o escrito para sua casa, como única prova de sua existência. Acariciou aquele pedaço de papel e pôs-se a ler, como já o fizera por muitas vezes, como se fora uma oração mágica:

Olhar emoldurado

Quisera sempre - verdadeiramente quisera,

Mergulhar em seus olhos envoltos de mistério,

Trazer o infinito do seu negro brilho sério.

Embora admita que isso seja simples quimera.

Quisera sim, muito que eu quisera,

Traduzir em luz qualquer escuridão que encobre

Tão cruel enigma profundo.

Por certo seus olhos revelam sua existência no mundo.

Esse mistério me intriga, me excita.

Tento desvendar sua identidade

Mergulhando em sua eternidade.

Nada temo em questionar:

Esconderão amor calmo, como profundas águas?

Ou tentam ocultar mal curadas mágoas?

Quem nesses olhos mergulhar por certo descobrirá,

Os longos dias em que vivestes antes de mim.

Uma das razões que nos faz tão distantes assim.

Já que nada mais posso desejar, a não ser

Continuar sonhando esclarecer tão profundo mistério.

A mim resta ficar aqui diante dessa moldura

A lamentar o absurdo que nos separa,

Você presa num passado que se foi, deixando

Eternizada a imagem por ditoso artista que a concebeu,

E eu no presente sonhando por resposta que ninguém me deu.

Para mistério tão intrigante do seu olhar profundo e provocador

Digo, com certeza, que continuarei confundindo mistério com amor.

Por cautela faço do silêncio uma forma de diálogo.

Na realidade só em sonhos posso provar de seu afago.

Dobrou com redobrado zelo o seu precioso pergaminho, deitou-se na tentativa de reconciliar-se com o sono.

O dia seguinte pareceu-lhe longo e a mes­mice das tarefas a sufucavam. Esperava com ansiedade a noite chegar. Não possuia amigos em quem confiar o seu segre­do, a sua secreta preocupação, nin­guém que a ajudasse a entender aquilo, ou pelo menos lhe apresentasse uma hi­pótese viável para explicar o mis­tério e assegurar que ela conti­nuava equilibrada, de juízo per­feito.

Como ele viera descobrí-la naquele bairro simples e esquecido? E uma outra indagação surgia sorra­teira em seu coração: Ele apareceria outra vez e voltaria a passar diante de sua janela? E tal expectativa foi aos poucos se transformando em obsessão.

Findo o dia, mal chegada em casa, correu para a janela. Debruçou-se no peitoril, sem querer confessar a si própria que aguardava a aparição dele, como na noite anterior.

Em vão esperou por ele naquela noite, e em outras mais. Já cansada da espera, procurava um discernimento para angustiante mistério. Claro que se realmente ele pas­sara ali, seria mera obra do acaso. E porque voltaria? Mas em seu coração acalentava a esperança absurda de voltar a re­vê-lo. Quem sabe ele vol­tasse impelido por algum parti­cular interesse ou, quem sabe, por mera curiosidade.

Invariavelmente, não havia noite em que não se debruçasse naquela janela. E, finalmente, naquela noite fria, iluminada pela luz de prata de magnífica lua cheia, os seus ouvidos de repente captaram ao longe rumor de passos. Toda ela se alertou. Sim. Não se enganava, alguém vinha da mesma direção de onde, naquela noite, ele surgira. A intuição lhe assegurava que era ele mesmo.

Com o coração em disparada, permaneceu à janela. Se voltou, só podia ser com o objetivo de vê-la. Por que se esconder? Não haveria risco algum, pois estava dentro de casa, com a porta trancada. E além disso, ele se mostrara tão respeitoso, em seus raros contacto. Eram reflexões que se suce­diam em sua mente.

Ele, afastando-se da penum­bra, postou-se defronte de sua janela, in­clinou a cabeça num calado cumprimento e, de forma discreta, quase imperceptível, convidou-a a descer ao seu encontro.

Ela, sem exitar, deixou a janela e dirigindo-se à saída, desceu as escadas em trambulhões.

Foi andando lentamente, num movimento inconsciente, sem decisão formada, mas andando sempre ao seu encontro. Ignorou inteiramente o que estava fazendo ali, embora soubesse que devia haver boas razões. Atravessou a rua sem olhar para os lados, os cabelos esvoaçando pela brisa da noite. Ficaram bem próximos um do outro, conservaram-se calados, cada um com seus pensamentos, a olharem-se nos olhos com compreensão, mesmo sem palavras se entendiam. Ele tirou da lapela uma linda rosa vermelha e, sem nada dizer, gentilmente ofereceu-a. Ela, ar de espanto, recebeu-a. Aceitou seu braço estendido. E foram andando à toa por um destino ignorado. Ela encostou sua cabeça em seu ombro e deixou-se ser conduzida, pois depositava nele toda sua confiança que por certo a conduziria com plena segurança. Momento decisivo de sua vida, sua oportunidade de aventurar-se. Não poderia per­dê-la.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 17/09/2012
Reeditado em 18/09/2012
Código do texto: T3886285
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