Pneuma
Quando eu era jovem, meu pai, vestido em uma sabedoria desmedida por meus olhos infantis, confidenciou-me algo que recebi como se fosse um dos grandes mistérios da vida. Com seu sorriso, ele disse, você pode conquistar o mundo. Nunca me esqueci dessas palavras. Talvez nunca as tenha abandonado pela inocência ali encerrada, por serem um fragmento de pureza do que se foi, como o cheiro de bolo de fubá que crescia pela casa, os assovios na varanda durante as noites de chuva ou as tardes preguiçosas que pareciam durar dias. Gosto de pensar que foi este o motivo de mantê-las, como se fossem um quadro pendurado entre as prateleiras de minhas melhores memórias. Tento, mas me conheço mais do que isso, e já custa enganar-me. O que verdadeiramente tatuou estas palavras em minha carne feito o contato com ferro em brasa foi algo mais vil, corrosivo e amargo. A frustração, e somente ela. Sim, papai, porque sorri e acenei, olá vida, como vai?, em uma felicidade entorpecida e cega, mas até então nunca tive meu mundo. Ah, papai, você nunca soube de nada. Se ainda pudesse te encontrar outra vez, uma que fosse, te diria a verdade: com um sorriso você nunca terá coisa alguma. Este tipo de câmbio baseia-se em outra moeda, lhe asseguro, pois o preço me cobrado por este mundo foram os olhos marejados. Isto, e duas vidas. Em dezenove minutos, três.
*
Chovia na noite em que Thiago foi até nosso apartamento. Henrique e eu jantávamos uma lasanha descongelada em frente à tevê quando o interfone tocou. Nunca nos empenhamos em formalizar um jantar conforme os protocolos familiares. Na realidade, sempre corremos por um caminho adverso, como se a ruptura com as refeições ao redor de uma mesa deixasse clara a nossa condição de casal, e tão somente isto. Uma ingenuidade, mas sabíamos que corríamos, e se parássemos, cairíamos. Um paliativo ralo, mas iludia feridas antigas.
Thiago estava com o sobretudo encharcado quando Henrique lhe entregou uma toalha na soleira da porta. Preocupado com sua respiração acelerada e seus tremores, meu marido o puxou para dentro de casa com um braço sobre seus ombros, mal sabendo que a causa daquele estado não estava do lado de fora. Eu o soube no exato momento em que seus olhos vasculharam o apartamento. E então me encontraram.
Ainda tremia quando recebeu uma segunda toalha e sentou-se na minha frente, sustentando o habitual sorriso torto para camuflar sua insegurança. Fazendo a vez de cumprimento, dirigi-lhe um tímido maneio de cabeça e uma saudação monossilábica e indecifrável. Feito a maré alta que ondula sobre a praia e carrega os desníveis da orla em sua partida, minha voz pareceu arrebatar as expressões de Thiago, de modo que neste ínterim ele revestiu-se com uma camada superficial de apatia.
—Raquel.- respondeu com uma entonação monótona. Acuada e já sem fome, encontrei nos pratos sujos pelo molho de tomate um ótimo pretexto para uma fuga. Levantei-me, recolhi a louça e segui para a cozinha. A conversa seguia no cômodo anexo enquanto eu mimicamente lavava os talheres.
— Então, Thiago, que houve? Alguma coisa no escritório? Não, não... Você nunca foi desses que tomaria chuva por trabalho. A Michele? É isso? De novo você e a Michele...
—Não! – sua voz soou como que chocada. - Não, Henrique, imagine. Eu e a Michele já estamos acertados. Não a procuro desde... Desde muito tempo.
Alheia aos talheres e a espuma, deixei a água escorrer por entre meus dedos como se nunca a tivesse tocado. Sua textura, sua frieza, sua umidade. Estranhamente, buscava assimilar cada detalhe daquele contato, como se precisasse desesperadamente apreciar todas as pequenezas da vida naquele minuto. Eu perambulava os limites de um abismo, e em pouco poderia me ver sem elas.
—Então, diga, Thiago! Que isso, cara. Sou eu. Henrique. Seu amigo.
O minuto que se seguiu pareceu dez vezes mais longo e mudo. Apenas voltei a respirar quando veio a primeira frase, revestida por um tremular que dizia muito por si só.
—Um convite. Aos dois. -prosseguiu desconcertado- Um pequeno planeta nômade está atravessando o Sistema Solar. Você deve ter ouvido falar; Nêmeses, alguns chamam. Eu tinha um dinheiro guardado, e acontece que este é um grande sonho. Havia planejado em ir com a Michele antes de ela... Gostaria que fossem comigo.
Deixei o ar escapar da mesma forma que fazia quando criança nas competições de prender o fôlego. Aos poucos, aliviei a tensão dos meus ombros. No entanto, abrindo os olhos, notei minhas mãos cerradas, seus nós esbranquiçados. A água ainda corria. Thiago. Idiota.
—Nêmeses? Mas é claro que ouvi! Não se fala em mais nada ultimamente. Mas você não... Cara, isso é uma fortuna! Onde você arrumou dinheiro? E vai para lá como, fechou com alguma empresa? Raquel! Está ouvindo isso?
—Claro, amor. Parece interessante... Mas é muito dinheiro, não é? Não podemos aceitar...- Porque, Thiago?
—Henrique, faço questão. O dinheiro já foi gasto, de modo que não posso reavê-lo. Na época, pensava em ir com a Michele, mas agora... Bem, todos sabemos que essa não é uma possibilidade. Gostaria que estivessem lá comigo. Vocês são muito especiais, amigo. Os dois.
—Ora, eu... Eu fico sem palavras, Thiago. E é lógico que não vou recusar! – emendou Henrique em uma semi-histeria infantil, como a criança que recebe a notícia do pai de que finalmente irão para aquele parque de diversões. No outro extremo, eu já não suportava mais o assunto.
—Estou indo tomar um banho. – disse sem cerimônia, embora Henrique já mal fixasse qualquer atenção em mim. Apenas Thiago me notou, os olhares de soslaio acompanhando-me pelo corredor. Eu sabia.
Sem me preocupar em ligar o chuveiro, sentei no chão do banheiro e abracei minhas pernas. Furiosa, frustrada, suja. Na sala, Thiago interava Henrique com os detalhes da viagem: em duas semanas, partindo de São Paulo na Xi Wangmu IV, pois sim, as naves chinesas são as melhores!, iríamos interceptar o planeta errante Nêmeses enquanto ele estivesse entre as órbitas de Marte e da Terra. O pacote cobria então três dias terrestres no planeta alienígena com toda a privacidade que a inteligência artificial da nave poderia garantir. Não quis saber dos outros detalhes. Liguei o chuveiro só para me encher com seu barulho, e apenas sai do banheiro quando tive certeza de que ele havia ido embora.
*
Dezoito minutos. O céu púrpuro deste planeta errante é estriado pelas nuvens rarefeitas que se enfileiram por todo o firmamento, dando à luz do dia um melancólico tom pastel. Por todos os lados, canções de perdas parecem se desprender da poeira. Em silêncio, atravesso um oceano de pedras em um quadriciclo. Esse ambiente, de certa forma, parece incitar que eu transcenda meus limites físicos e seja um avatar de uma força primordial. Agora, sou Caronte, remando pelo Aqueronte por duas almas frescas. Ou será que não? Seria fácil aceitar que na verdade o que carrego são duas moedas, o preço que pagarei por minha própria passagem ao barqueiro.
Ainda custa-me acreditar que sou a única sobrevivente da queda do Xi Wangmu IV. Por vezes questiono-me se não estou em uma espécie de limbo onde deveria repassar minha vida exaustivamente até que implorasse pelo perdão de meus erros ou que eles simplesmente perdessem seu sentido, deixando assim de ser. No entanto, pelo bem de minha sanidade, me apego a algumas evidências lógicas para justificar minha sobrevivência: primeiro, um breve desentendimento com Thiago me fez ser a única tripulante fora da sala de comando, em segundo, após a discussão, me dirigi ao ponto de embarque para provar meu traje de exploração. Deste modo, quando a explosão dos propulsores inferiores terminou por dividir a nave ao meio, eu era a única que tinha possibilidade de escapar. A diferença de pressões me tragou para fora de Xi Wangmu IV com violência, atirada pelos deuses como em uma disputa de cara ou coroa. Morre, sobrevive, devem ter sussurrado céu e inferno. Com a sorte dos inexperientes, abri meu pára-quedas por meio de um turbilhão de mãos. Espero ao menos que isto tenha trazido um bom prejuízo para a aposta cósmica.
Enquanto escorregava pelo céu, vi a nave cortar o firmamento arroxeado em um rasgo rubro e esfumaçado. Esperei em vão a visão de outros pára-quedas tomando ar, mas minhas esperanças foram enterradas pela nuvem arenosa levantada no impacto da nave contra o chão. Pousei a poucos quilômetros do local da queda. Minhas pernas tremiam, e minha garganta se comportava como se houvesse engolido vidro, quebrada pelos gritos que me acompanharam desde que despreguei do céu. Em um estalo, corri minhas mãos pelo capacete incessantemente até que sua integridade fosse uma certeza. Olhei para o indicador de oxigênio em meu pulso: uma hora e vinte dois minutos. Desnorteada, me emaranhei nos fios de meu pára-quedas até conseguir soltá-los de meu uniforme. Segui em direção a nave.
Chegando à porção dianteira da Xi Wangmu IV, encontrei Henrique e Thiago mortos sobre os painéis de controle. Os cintos ainda os prendiam às poltronas em uma declaração velada de que haviam tentado uma manobra de pouso até o fim. Apegando-me a uma incoerente esperança, sacudi seus corpos tentando tirar dali algum sinal de vida. Contudo, os monitores continuaram a iluminar suas feições indiferentes e distantes, o que, para meu espanto, trouxe-me um misto de raiva e inveja. Henrique jazia sereno enquanto um filete de sangue brotava dos lábios que tantas vezes visitei. Desmoronei ao seu lado e apertei suas mãos enquanto chorava. Chorei por sua partida, chorei por nossa vida, chorei por nossos filhos e chorei por minha vergonha. Thiago. Na soma dos afluentes que nos levaram a foz desse destino, fui eu quem verteu mais água. Esta viagem nada mais foi do que uma encenação. Um pretexto aflito para manter-me ao seu lado. Ah, Thiago. No fundo sempre soubemos; aquele beijo foi nossa condenação. Aproximei-me dele e corri meus dedos por seus cabelos negros. Se pudesse, lhe diria a verdade, que ele sempre foi melhor do que eu.
Trinta minutos, alertou com um leve silvo o indicador de oxigênio. Espantei minhas agonias e tentei recobrar minha racionalidade. Ainda não sabia o quê, apenas que havia muito a ser feito. Vasculhei os destroços em busca de outros galões de oxigênio, mas a busca provou-se improdutiva. Nos andares inferiores, consegui encontrar um quadriciclo que respondeu à partida. Resolvi voltar para a sala de comando. Não sabia o que fazer com os corpos, mas considerei vulgar a decomposição estacionária a qual estariam condenados naquele sarcófago em ruínas. O visor já pulsava em menos de vinte e um minutos quando terminei de arrastá-los para o deque inferior e colocá-los em uma pequena carroceria anexada ao quadriciclo. Usando o controle manual, abri os portões e iniciei minha marcha fúnebre. Agora sou Caronte, ou então corro para ele. Sei que pesa sobre mim uma contagem regressiva, mas pagarei a estes dois minha dívida. Dá-los em morte o conforto que lhes neguei em vida.
*
Procurei Thiago pela primeira vez logo após seu rompimento com Michele. Nunca o amei. Também diria que o desejo teve parte menor no processo. Ele, por sua vez, redirecionou toda a ternura órfã de seu rompimento com Michele para o nosso caso. O que realmente me motivava era o ato de rebeldia. Queria queimar minhas certezas em um sinal de fumaça ao destino para informá-lo de que quem detinha o volante de minha vida era eu, e somente eu. Estava exausta se perder meus anos correndo o caminho que me apontavam. Foi assim quando engravidei de Henrique e pressionaram nosso casamento. Também foi assim quando essa gravidez encerrou-se, bem como as que se seguiram. Thiago foi uma escolha minha. Nunca me apaixonei, nunca o cobicei, de modo que nada influenciou meu caminho. Passamos apenas uma noite juntos, e após ela senti-me realizada, como se houvesse dado um tapa na cara de algum deus. No entanto, apenas o reencontro com Henrique me fez cair em lágrimas. Ele nunca soube o motivo daquele choro. Também não voltei a procurar Thiago, embora suas investidas se tornassem cada vez mais incisivas. Evitei-o tanto quanto pude. Até que em uma noite chuvosa, ele propôs uma viagem.
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Estou a três minutos da carcaça de Xi Wangmu IV. Estranho como o tempo sobrepuja todas as outras medidas quando está ameaçado. De pronto, percebo que já não penso mais em metros. Nêmeses se abre para mim como um deserto sem fim, embora eu tenha visto rios e lagos enquanto o orbitava. O planeta realmente lembra muito a Terra, incluindo a grande quantidade de oxigênio em sua atmosfera, embora os índices de dióxido de carbono matem qualquer humano que fique exposto a suas concentrações. Mas, por Deus, há oxigênio!
Depois de colocar Henrique e Thiago lado a lado no topo de uma colina, pego o tanque reserva de gasolina e despejo o líquido sobre seus corpos. Um disparo com o sinalizador, e as labaredas ganham formas. Mas por que já não choro? Talvez tenha me habituado a dor, pois até a isso nos acostumamos. Ou talvez não sinta o pesar da despedida, já que se trata de um até logo. A morte já não me é uma estranha, e vejo que não há porque temer os mortos. Quando criança, possuía verdadeiro pavor de fantasmas. Hoje, sei o que realmente são. Não apenas espíritos, mas sim coisas inacabadas. Sem uma totalidade, passam toda a eternidade em busca de um desfecho. Não temo fantasmas. Sempre fui um deles.
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A vida conduziu-me feito uma parceira de dança desde que minha mente permite a lembrança. No entanto, foi em minha juventude que ela firmou a hierarquia entre nós duas. Já namorava Henrique há dois anos e era recém matriculada na universidade quando descobri a gravidez. Sem protestos e sem ânimo, nos casamos. No quinto mês de gestação, perdi o bebê. Tentamos outras vezes, mas sempre retornei a um berço vazio. Nunca tive ânimo para retomar meus estudos. Resignei-me a uma vida no piloto automático, tão plástica e artificial que logo senti eu mesma perdendo a humanidade. Thiago foi meu último grito. Uma faísca na escuridão. Mas a vida estava lá, sempre a me lembrar quem mandava. No entanto, hoje eu sei; há lugares onde nem mesmo suas ordens alcançam.
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Sete minutos. Uma ironia eu terminar em um planeta como este. Dois errantes, presos em fios invisíveis e em uma falsa noção de liberdade, em um curso determinado por forças maiores que nossa própria compreensão. Um planeta que, a despeito da presença de água líquida, não abriga vida. Estéril, feito eu.
Mas não; tenho pouco, porém o bastante para ser livre. Na antiguidade, os gregos costumavam dizer que era o sopro divino que garantia a vida. Algo lógico, visto que a ausência da respiração procede a morte. Com essa relação, os filósofos estabeleceram uma estreita relação entre o ar e espírito com o princípio da vida, tanto que uma mesma palavra designava os dois termos: pneuma. Seis minutos. Pouco, mas o bastante. Ainda me resta alma.
Com o restante da gasolina, ritualisticamente encharco o a traseira da carroceria do quadriciclo e dou vida à chama, poupando uma pequena fração do líquido para jogar em meu próprio corpo. Um batismo para a nova vida. O fogo corre manso pela extremidade do vagão, o que me permite recostar no lado oposto. Também mereço o fim que dei a meus companheiros. Cinco minutos. O pôr-do-sol destila cores acalentadoras no horizonte, ou então é o calor que vem de minhas costas que confunde meus sentidos. Em um ponto azul distante no firmamento, sei que encontraria minha casa. Não mais. Quatro minutos. Ali está o mundo que nunca tive, o lugar onde jamais fui dona de mim mesma. Três minutos. Mas não serei soprada pela vida como uma folha ao vento. Desta vez, eu é que deixo meu sopro para ela. Com dois estalos, abro a viseira de meu capacete.