Família é tudo igual

A casa tomada pela escuridão, a não ser pelo quarto onde ela estava tudo era um escuro, mas isso não significava problema algum, pois além dela estava na casa apenas (essa parte realmente é um das mais difíceis, já que escolher o nome de uma personagem sempre nos remete a pessoas que conhecemos ou outras personagens, sendo quase impossível não influenciar a personalidade personagêntica) Eric*.

Já que citei a casa, vou descrevê-la antes das personagens, assim se torna ela própria parte do enredo. Não era uma casa, mas sim um apartamento, que graças ao vício de falarmos corriqueiramente: “esqueci em casa”, “vamos para a casa” ou “estou em casa”, acabou transformado em casa (assim fica claro o poder da linguagem, que sem utilizar um trator, pá ou tijolo faz de um apartamento, casa) e fora o fator lingüístico o domicílio de nossos espionados (sim, porque uma prosa sempre é uma espionagem) ficava no primeiro andar, ou seja, ao nível da rua o que reforçava mais ainda a imagem de uma casa. O apartamento era velho, com dois quartos, uma sala ampla que se ligava à cozinha por um lado e ao corredor que dava para os quartos por outro. Esquecendo a arquitetura prática que obriga a porta de serviços a ficar na cozinha, passemos para a parte decorativa, entre a parede e o teto, exatamente na junção havia uns arabescos de gosto duvidoso que denunciavam a senilidade do prédio e do apartamento. O mais interessante era que na sala, exatamente a três graus da porta de entrada ficava uma estante com portas de vidro onde se viam canecas de várias cores.

A noite chegava, aos poucos com seu rastro avermelhado que enchia o céu e que mudava do vermelho para o azul escuro e depois para o preto e depois para o amarelo dos cabelos de Eric que aparecia na porta saindo de casa como quase sempre fazia a essa hora. No quarto ela, que era a responsável por Eric enquanto Gusmão estivesse fora de casa se perguntava onde teria ido o jovem loiro, que sempre saía de casa ao anoitecer e só chegava quando ela e Gusmão já não mais prestavam atenção a quem quer que fosse que entrava na casa (ou apartamento). Na verdade ela apenas esperava que ele chegasse, era ele quem fazia a casa (agora casa tem o sentido de lar, de unidade familiar) funcionar, é como dizer que ela só existisse enquanto com ele, a antítese de Eric, que sempre andava às soltas sabe-se lá por onde e com quem.

Todos os dias entre 18:54 e 19:03 Gusmão abria a porta com a cara cansada e pernas titubeantes, entrava pela porta da cozinha e preparava o café, ia para o quarto chamando inutilmente por Eric e sentava-se de frente para ela, e assim conversavam por algum tempo, até que ele cansado como sempre ia até a cozinha e requentava seu jantar. Sobre o que conversavam? Sobre quase tudo, desde como estava o tempo (já que ela não saíra o dia inteiro, como, de novo, sempre acontecia) até o ultimo livro que havia pegado e as qualidades da vodca polonesa se comparada às suecas. Lembravam constantemente de um vizinho do andar de cima que todas às quintas-feiras colocava um CD do Sr. Francisco Buarque de Holanda, o que incomodava Gusmão até os ossos, muito mais pela música ruim do que pelo horário de execução do showzinho particular (uma pena que o CD não tenha sido literalmente executado) e ela se divertia lembrando que Gusmão sempre falava que aquilo era um absurdo porque a música ruim é abusada e invasiva como uma horda de bárbaros nos portões de Roma. Um livro ou quadro ruim não nos persegue com tanto afinco, basta que fechemos os olhos ou atiremos o objeto alvo de nosso asco ao fogo e tudo está resolvido, mas a música não, basta que um vizinho do andar de cima decida que vamos escutar uma péssima melodia e pronto, há pouco o que se fazer, iremos escutar uma péssima melodia. Lembravam exatamente do episódio pois na terceira ou quarta semana das sessões de música do vizinho ela havia estado mal sendo diagnosticada uma contaminação por vírus e assim sendo obrigada a ficar 10 dias internada até que estivesse completamente restaurada (até hoje não se sabe se realmente a enfermidade foi causada por uma virose ou por exposição a música ruim).

E assim a vida dos três passava, eventualmente na sempre constante ausência do jovem loiro, a quem Gusmão às vezes chamava de filho, os dois se entregavam a luxúria e transavam, mas não era sexo como de gente jovem, era um sexo comedido, sem palavras e barulhos, sem putaria, sem sujeira. Era um sexo sem cheiro de sexo, era sexo com cheiro de látex e plástico, como tudo na vida de Gusmão. Após o ritual que encheria de desgosto Pedro Juan Gutiérrez, Jorge Souza, Ubaldo Ribeiro e Millor Fernandez, Gusmão se deitava, e nada falava mais com Heloísa, que ficava ainda a olhar-lo, talvez esperando explicação para a atitude abelardesca de se deitar e não mais falar, como se tivesse sido castrado pela quebra do celibato e defloração da mocinha. Assim ele adormecia, e Helô ficava de vigília por mais alguns minutos, até que tudo ficava escuro e a manhã chegasse outra vez.

Um sábado, depois de dois anos que já moravam juntos os três, exatamente às quatro da tarde, cinco homens entraram na casa procurando por Gusmão, que dormia em seu quarto havia mais de seis horas, entre os homens estava o primo de Gusmão, sete anos mais velho que este, e seu único parente vivo, apesar dos oito tios que havia tido. Edgar, o primo, há muito não fazia uma visita, no caso esse “há muito” significa “nunca” e portanto não conhecera ainda Heloísa e Erick, conheceu-os exatamente quando entrou na casa, e foi com certa tristeza que percebeu que aquilo era verdade e que Gusmão teria que ser levado. Sem tempo os quatro homens, cada um com seu jaleco azul se postaram a porta da cozinha, onde o morador tomava seu café solitariamente, Edgar o cumprimentou, sentou a mesa e uma conversa rápida foi travada. As conversas nem sempre acabam com uma palavra, ás vezes muda-se uma palavra ou frase que teria o papel de rabo da conversa, de chocalho da cascavel anunciando que pronto, o diálogo terminou, assim foi como aconteceu, dessa vez a conversa acabara com um prato voando no rosto do visitante. Os homens arrastam Gusmão, prendendo-o dentro de uma camisa de força enquanto ele se debate e grita que o primo só quer roubar sua família, que vai chamar a polícia, quando enfim os homens conseguem empurra-lo para dentro do carro, os vizinhos já estavam se empoleirando nas janelas e varandas, Edgar explica:

-Está completamente louco, o coitado...levaremos ele para um sanatório, onde ficará melhor.

Enquanto isso Helô continua quieta no seu canto e Erick dá apenas um miado ao ver Gusmão ser levado embora.

Chegando no hospício, Edgar entra e se dirige a secretaria, para preencher os formulários, a psiquiatra chega:

-É mesmo um caso de esquizofrenia. Ele terá que ficar internado até que a doença fique controlada, e terá que tomar medicamentos por toda a vida se tiver alta. Ele disse que mora com a mulher um filho, por que ela não veio? Seria muito importante conversar com ela.

Edgar ri:

-A mulher é um computador, com quem ele conversa e o filho é um gato, isso mesmo, um gato, aquele felino pequeno, que mia, sabe?

Enquanto isso Gusmão conversava com um psicólogo:

-Mas doutor, como minha mulher e meu filho vão ficar sem mim? Me deixe sair, por favor, eles precisam de mim, Helô é tão sozinha e o garoto dá tanto trabalho, nunca em casa...

Nota do autor. Uma não tão breve explanação de como me decidi por Eric. É que seus cabelos eram louros, o que me remete a Erick, o viking, o descobridor da Vinland, que talvez tenha a ver com vinho, e que talvez seja o norte da América do norte, onde não se produzem vinhos bons (fato curioso) e onde se dissemina uma cultura que consome fígado acompanhado por Chianti (fato normal).

Este Conto também está publicado no site

WWW.BAGATELAS.NET

Ernesto Aguiar
Enviado por Ernesto Aguiar em 02/08/2005
Código do texto: T39793