A Realidade do Mito

“O oceano tem alma. O ódio e o amor perscruta,

forasteiro, na voz do mar, no seu marulho.

Repara como estronda e espuma nos penedos,

Na ânsia de destruir, vencer a rocha bruta.

E agora, vê, desliza, ameno, sem barulho,

Para dizer à areia amada os seus segredos.”

Eduardo Pacheco - O mar - do livro, Cabo Frio - 1950.

A REALIDADE DO MITO

O entardecer encontrou-me caminhando pela praia manchada de pôr-do-sol, tapete vermelho-alaranjado serpenteando no vai e vem das espumas. Os pensamentos vagavam ao léu, como vagam as gaivotas marisqueiras.

Pensava nas dunas brancas; na restinga selvagem, cheia de frutas, que minha infância não dispensava; os vermelhos e doces bajirus ; as iúcas espinhosas e seus cachos de flores brancas, lembrando os candelabros de cristal de igreja matriz; a vastidão da lagoa de araruama, lagoa que parece um rio, no dizer do poeta; os Tamoios, primitivos habitantes destas plagas; o vento rebelde, que

canta nas casuarinas, os lamentos daqueles anos remotos; as lendas indígenas que tanto me emocionam.

Há uma lenda que fala da graça e beleza da índia Ceci. A virgem por quem os Tamoios se perdiam de amores. Ceci era a encarnação do amor, a própria natureza em flor, de certo modo, a responsável pela formação da Lagoa de Araruama.

“Antigamente, muito antes do que poderiam sonhar nossos avós, toda esta região era um prado florido e cheio de árvores frondosas, onde morava Ceci. Bela e formosa, sua fama os bravos guerreiros levaram para longe”.

“Um dia, o mar em fúria venceu o rochedo em batalha fácil, tomando o prado para si. É que o mar se apaixonou por Ceci; o mar quis beijá-la também”.

Impressionantes essas lendas indígenas. Se a virgem Ceci existiu ou não, é impossível saber. Não sei se esta história originou-se de uma lenda esquecida pelo tempo ou se foi produto da fértil imaginação de alguém. Mas estou certo de que é desta forma que se originam as lendas.

Gaivotas pairavam no ar, qual leveza de plumas. A noite chegava cavalgando o último raio de sol. Os Tamoios não saíam da minha mente. Olhei para o mar distante. Pensei: Nem o mais afoito guerreiro, nem o feiticeiro profeta da tribo poderiam imaginar cenas de velas enfunadas ao vento ou simplesmente a miragem de homens brancos aportando as terras do Cabo Frio.

Foi então que percebi um vulto etéreo a minha esquerda. – Venha! Vou mostrar-lhe a verdade por trás do mito.

Era um índio. Trajava pomposa veste de gala, formada de penas de araciuirá, o pássaro da aurora, e colar de fragmentos de conchas pendurado ao pescoço. – Cacique Iapuguaçu? - Pensei.

- O mito é a alma da história. Se for retirado, o que sobrará? Apenas um monte de escombros espalhados pelo chão.

Tinha o semblante alumiado pela luz emanada do seu próprio interior, como uma estrela. Retratava uma época em que Cabo Frio dormia tranquila seu sono de criança, entre o sussurro do mar e o canto das aves madrugadoras e tagarelas, cantando nos ramos do pau-brasil.

- A maldição da madeira cor de sangue! De nada adiantaram as súplicas ante o brado forte da cobiça do homem branco. Todos sabem o que aconteceu ao meu povo no dia do grande massacre.

Eu ouvia em respeitoso silêncio o estranho relato, mas não compreendia o que ele queria dizer. Havia alguma coisa familiar naquela figura exótica. Era como se ele fosse eu, e eu fosse ele. Estranha mistura de eus, interpenetrando em flashes, o contínuo espaço-tempo.

- Foi o fim de uma era dourada de paz e tranqüilidade e o início de uma nova, que vocês civilizados, chamam progresso.

A noite sem lua estava intensamente iluminada pelo brilho dos astros piscando na imensidão do céu, facilitando o estado de introspecção. Será que a paixão despertada por Ceci seria capaz de vencer o tempo e transcender o mito? Esta momentânea volta à pureza de sentimentos passados, se entrelaça aos sentimentos do tempo presente, motivada pela poesia que a lenda inspira. O elo de ligação é esta figura espectral na linha divisória do espaço-tempo. O mito como alma da história se eterniza pela repetição. Manifesta-se no nosso tempo atual, mas se reporta sempre ao passado, ao qual estamos presos por causa do inconsciente coletivo.

- Onde acha que podem nos levar os degraus de mármore formados pelas ondas?

Percebia agora. Os degraus de mármore pareciam provir de algum lugar indefinido, abrindo um caminho até se esvanecer na areia. Aí estava a chave que iria desvendar o enigma. “O mito é a alma da história”.

- Quer mesmo saber a realidade do mito? Ouça o mar!

Desapareceu repentinamente nas brumas. Não o vi mais. Vi apenas minha própria imagem, distorcida, toscamente espelhada nas águas. Ouça o mar... Ouça o mar... – Lembrava.

Ouvi. Meu coração disparou quando finalmente entendi a mensagem. O mar calmo batendo na areia parecia dizer: Ceci... Ceci... Ceci...

©2001 Paulo Orlando dos Santos.

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1 -Planta arbustiva encontrada na restinga de Cabo Frio.

2 -Do tupi ara’ si wi’rá, pássaro da aurora. Ave de cor avermelhada.

3 -Cacique dos Tamoios na época da colonização.

4 -Covarde extermínio dos Tamoios por Antonio Salema em 1575, pela posse da terra.

5 -Segundo Jung, as regiões mais profundas da psique humana dos povos antigos e modernos, no tempo e no espaço, produzem mitos. São as imagens arquetípicas.

Paulo Orlando
Enviado por Paulo Orlando em 03/08/2005
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