Telhado

Era noite. Uma noite escura, muito boa para se perder, se sentir perdido, mas estranhamente boa para se achar também. O tempo ruim fazia tudo parecer familiar. Seria uma noite de coincidências, sorrisos e lágrimas.

Silvio estava triste. Não, triste não era a palavra. Ele estava mais q triste. Tão grande era o peso q sentia em seu peito q era difícil respirar. Seus olhos não conseguiam se abrir, seus ouvidos só ouviam estática, seu nariz não podia captar o emaranhado de cheiros que vinha da cidade e em sua boca só havia o gosto da solidão. E era um gosto amargo. O único lugar onde conseguia sentir um pouco d alívio era o telhado d seu prédio, simplesmente porque o parapeito tinha um efeito sedutor sobre ele. A idéia d seu corpo na calçada era morbidamente tranqüilizadora.

Subiu no parapeito. Olhou para baixo e sorriu. Olhou para cima e imaginou se algum Deus estaria olhando de volta pra ele.Fechou os olhos e pensou q era mais provável o diabo estar olhando, olhando e esperando, já com o caldeirão fervendo...Abriu os braços.Olhou para a esquerda, viu um casal brigando e riu da inevitabilidade das coisas. Olhou para a direita e viu uma cena curiosa, algo q o fez parar. Uma mulher, morena, d cabelos longos, negros e ondulados, vestida de cinza estava parada no prédio ao lado, olhando para baixo e chorando. Sim, estava longe e não havia como ouvir um soluço ou ver uma lágrima, mas podia ter certeza d q ela estava chorando.

Aquela cena o havia perturbado e enchido-o de curiosidade. O que aquela mulher estava fazendo ali? Ela parecia imersa em lembranças. Tão bela, porém tão triste...Vestida de névoa, quase se misturando com a noite...Quase como se o próprio vento a estivesse envolvendo...Não resistiu e desceu do parapeito para ir até o lado direito do prédio e observar com atenção. A mulher, que agora havia se sentado, parecia uma pintura de nanquim, cheia d sombras e de mistério. Decidiu-se. Iria passar a limpo essa situação.

O primeiro passo seria passar pela portaria, pensou. Desceu, dirigiu-se até a portaria e parou para pensar. A imagem daquela mulher, envolta em brumas não parava de martelar sua semi-entorpecida mente. Como q por um espasmo, decidiu entrar. Sem nenhum plano. Simplesmente iria entrar. O vento não o deixava ouvir mais nenhum pensamento e a névoa não o deixava ver nenhum outro objetivo senão o d chegar naquele telhado.

Então partiu. Foi devagar. Porém obstinado. Como se fosse uma enchente, que vai aos poucos preenchendo tudo e afetando a todos. O destino realmente é inexorável. De sua cabine, o porteiro não viu mais q um vulto cinza, que andava com uma naturalidade ameaçadora em direção à portaria. Não poderia ser um desconhecido, pensou o porteiro, e então abriu a porta.

Já dentro do prédio, não seria problema chegar até o telhado, pensou Silvio. Afinal, foram tantas noites no telhado de seu prédio e os telhados são todos iguais... Ao entrar, deparou-se com a figura q tanto o intrigava. Ela estava ali. Era ainda mais bonita pessoalmente, porém seus olhos transmitiam uma melancolia incomensurável. E estava realmente chorando.

Pareceram milênios antes d Silvio conseguir aproximar-se da figura. Mas, enfim, e não sem muito esforço da parte dele, o silêncio foi quebrado.

- Oi. Disse Silvio.

A mulher pareceu surpresa pela súbita quebra do silêncio, mas não demonstrou medo.

-Oi. Respondeu num tom simpático, porém triste. Silvio sentiu vontade d chorar ao som daquela voz, que parecia vazia, no entanto encantadora.

-Tudo bem com você?- Sílvio tentou continuar a conversa, mas após fechar a boca, um longo silêncio se seguiu.

-Sabe, eu odeio telhados - Disse a mulher justamente na hora em q Silvio ia tentar outra abordagem - Eles deixam você mais longe de tudo. Como se não fossa a sua vida. Como se você pudesse assistir a tudo, mas sem poder interferir... Falou ela de novo. Silvio decidiu q não iria interrompe-la.

-Acaba fazendo com q você não sinta mais nada. Nem fome, nem frio, nem medo, nem alegria. É como se fosse uma prisão sem grades, onde você é prisioneiro d você mesmo e o tempo passa para todo mundo, menos pra você.

-Então por quê você está aqui em cima?- perguntou Sílvio, que agora sentia uma profunda pena da figura. Agora a via como um pássaro com asa ferida, incapaz de voar. Entendeu que o que o atraíra fora uma dor parecida com a sua.

- Porque eu não consigo sair daqui!- disse isso e começou a chorar. Sílvio aproximou-se e abraçou-a para a consolar. Não que se sentisse melhor do que ela, na verdade não se sentia nem um pouco mais feliz. Apenas compartilhava sua dor. Havia achado alguém que sangrava tanto quanto ele. Alguém que o entendesse. É, talvez se sentisse um pouquinho melhor...

-Ele me disse isso! Que eu nunca sairia daqui!! Nunca sozinha!! Mas não importa o que eu faça, eu sempre volto pra cá!! Disse ela em prantos, e depois balbuciou algo que não dava para entender.

Por um momento, Sílvio esqueceu de si mesmo. Imaginou o que teria causado um ferimento tão profundo. Era triste ver uma paisagem assim tão bonita tão depredada.

Não deixaria que isso acontecesse. Não podia deixar aquilo continuar. Era simplesmente demais para ele. Olhou para ela, para a cabeça encostada no seu ombro, e sentiu que tinha algo a fazer. A calçada poderia esperar por ele um pouco mais.

- Quando você gosta de alguém, você acaba ficando parecido com aquela pessoa... É inevitável. Faz parte da vida...Mas e se você não consegue gostar? No começo você se sente bem, como se você não precisasse disso, como se fosse muito mais autêntico ser você mesmo. Mas com o tempo, você acaba fatalmente se tornando parecido com o que você sente, ou seja, com nada. Vai aos poucos perdendo a sensibilidade, ficando parecido com nada, cada vez mais... – Silvio decidiu que deveria esperar um pouco mais pra agir... Melhor conhecer o terreno, pensou...

-Quando eu te vi no outro telhado, eu sabia que você viria... – disse a morena, e se levantou. Silvio não havia reparado antes como ela era alta.

-Como você sabia? Já tinha me visto no telhado? Pq foi a primeira vez q te vi...

-não preciso t ver mais d uma vez pra ter certeza d q você viria... Quando pessoas como nós se encontram, se reconhecem de longe... Você sentiu a mesma coisa, não foi?

-Como assim, pessoas como nós? Silvio sempre soubera que eram iguais, q tinham muito em comum, mas não havia entendido o q.

-você só se sente à vontade em telhados, né? E quanto mais você pensa em algo, mais ele se afasta d você, não é?

-você é como eu. É a mesma prisão, o mesmo telhado... Eu tenho o dom de cativar as pessoas, mas não consigo gostar d ninguém! Simplesmente não sei mais como se faz isso... E você se aproxima das pessoas simplesmente para se sentir seguro, mas, nunca dá o último passo. Nós dois somos iguais, estamos cada um em um telhado, mas somos iguais...

Neste momento, um raio caiu ali perto e o cenário ficou todo iluminado. À luz daquele raio, Silvio conseguiu enxergar as coisas com uma clareza q não alcançara com nenhuma droga. A súbita percepção da sua condição foi como um soco no estômago. Era verdade. De repente, parou pra contar, não só neste telhado, mas em toda sua vida, as vezes q chegara tão perto d uma coisa e quantas vezes hesitara.

Percebeu que estivera todo tempo em uma prisão, que estivera sempre perto, mas nunca alcançava seus objetivos.

- E agora, o q vai ser? Perguntou Silvio para a morena, que agora parecia muito distante, como se estivesse a quilômetros dali. Qual de nós dará o primeiro passo? Qual de nós conseguirá sair de seu telhado pra buscar o outro?

E os dois ficaram ali, na chuva, se olhando, lutando contra os próprios demônios por instantes q pareceram séculos... De repente, quando outro relâmpago caiu no horizonte, os dois tiveram a mesma atitude. Os dois se aproximaram, se deram as mãos, se olharam nos olhos, e, sem olhar pra trás, rumaram para a porta do terraço e sem dizer uma palavra, desceram. E nunca mais subiram em um telhado de novo.

Marcelo Holanda
Enviado por Marcelo Holanda em 24/08/2005
Código do texto: T44906