foto: sabugueiro


                          
  CASA DE GRÃOS/ARARUNA
                                             

                                                  .... chão batido,
                                                      das favas abertas saltavam os grãos,
                                                    .o sol quente  arrebentava
                                                    as cordas das mãos,
                                                    a  bem menos de um milhão de anos
                                                    guarda-se este Agora...
              


                         Penso que o vestido era floreado, de algodão, com sainha godê, de bolsinhos  ovalados com cianinha branca costurada em volta. Minha mãe era sempre desdobramento sobre a máquina de costura.. Acho que também me lembro ainda, do tafetá das fitas das tranças e daquele espelho malvado que mostrava sempre o meu rosto como um território salpicado de sardas. E tudo misturado à vermelhidão das bochechas e da minha timidez  de falar com as pessoas estranhas e o rebanho das peraltices pelas quais sempre era contumaz no banco dos réus das varadas de minha mãe. Não, eu nunca fui uma menina sossegada, não! Entre as muitas inquietações, a dos sete anos de idade na cidade de Araruna, terra dos cafezais e das carambolas, era colecionar plantas e folhagens as quais cultivava em latas de óleo que buscávamos no  posto de gasolina da cidade. Dalí, se a gente retornasse pela rua principal, larga avenida empoeirada, dobraria frente ao Hotel do Comércio, onde havíamos ficado hospedados durante meses, antes de ser adquirida a casona de madeira escura, na praça, frente à Igreja Matriz.  Ah, como dá pra sentir ainda o cheiro das lembranças daquele Hotel, do café da manhã, daqueles potinhos minúsculos de manteiga, do zunido da arrumação dos pratos na copa, das escadarias enormes que levavam ao pavimento superior onde ficavam os quartos dos hóspedes e onde acompanhávamos a arrumadeira, ajudando-a na arrumação das camas. Lembro-me que o Hotel ficava numa esquina muito importante e sua construção com piso superior era toda de madeira bruta. De sua fachada principal observa-se o movimento da cidade. Um deles era o passeio das mulheres da vida com seus farfalhantes vestidos coloridos. Como pareciam bonitas aquelas criaturas. Faziam compras nos armazéns próximos. E meus olhos ficavam a conjecturar sobre as conversas que ouvia sobre elas. Chamavam-nas de Madalenas, e diziam que habitavam um lugar  estranho da cidade. Essa cidade   de terra roxa, rodeado por extensas planícies de plantações de café, em cuja praça brincávamos em noites  escuras com nossa lanterna de vagalumes. Meu entendimento  doía e não entendia o mistério da pertinente e constante ausencia de meu pai, e da lucidez veemente de minha mãe, que cultivava com constancia sua imensa plantação de alfaces,  com a qual muitas vezes nos sustentou, e que sob a luz prateada da lua pareciam imensas rosas explodindo sob a noite. E, ainda ao longe, ecoa nos labirintos da memória daquela casona escura o ruído do balde descendo o fundo poço e caindo na água. E a manivela girando, girando... subindo, subindo sob a força dos braços de minha mãe. Da  varanda ainda sinto o olor das trilhas da rosa trepadeira púrpura, que se estirava por todos os lugares onde v. passava, como a enredar-nos os pés com suas teias, suas redes de espinhos, sob o mormaço daquele clima sempre quente e os grãos de café  ainda verdes na boca. ´Algum tempo depois, casa desmoronada, sonhos esquartejados, pousando pela casa dos outros, como refugiados  num sítio próximo à cidade, aquele café  mãe minha torraria no fogo com uma torradeira giratória rústica, que parecia a bola do mundo escura, cheia de maldade, e moía os grãos numa singela máquina, coando a bebida pura no coador de pano...enquanto o mundo nos crescia... enquanto o vapor do tempo nos consumia entre dores, paulatinamente,  como aos grãos de nossa casa...



    
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