A última hora do resto de todos os dias

Na última hora do dia, depois das lides domésticas, sentiu o olhar descansar em algum lugar da memória. Suspirou profundamente, buscando-se em qualquer canto da casa. Demorou-se acariciando o piano, que jamais tocara. Havia sido um presente do pai, quando ela completara 8 anos. Ele sempre lhe dizia, que ela estudaria piano. Um sonho coberto pelo musgo do tempo, já que apenas dez dias, após a aquisição do piano, o pai fora vitimado por um infarto fulminante. Lembrava-se bem das notas tristes daquele dia e das lágrimas que seus olhos, não conseguiram chorar. Era o seu primeiro contato com a dor e como estranhas, que se haviam encontrado pela primeira vez, sequer soube como encará-la. Não sabia, se lhe abria os braços, se descerrava as portas do peito e abraçava-lhe num gesto de resignação ou se lhe virava as costas, para que aquela estranha não visse suas emoções despidas.

Teve infância abreviada, já que por ser a primogênita da família, cuidava dos dois irmãos, enquanto a mãe trabalhava e tentava fazer jus ao final das histórias que o pai costumava contar. Nelas havia sempre um :”E foram felizes para sempre”. Nunca entendera aquela promessa de eterna felicidade, que só lhe parecia palpável em páginas de livros.

Na adolescência, lendo um livro de Clarice Lispector, viu-se entre as letras inquietas de uma das personagens, que se indagava, o que acontecia com as pessoas depois do felizes para sempre. Nunca concluiu a leitura daquele livro. Aquela pergunta tomava-lhe os olhos, cada vez que tentava seguir em frente. Talvez até hoje, tanto quanto ela, a personagem também não sabia.

Casou-se muito cedo, num tempo em que as bonecas de pano, feitas habilmente pela mãe, ainda enfileiravam-se na porta do seu quarto. Talvez esperando-a, para ver com qual delas ela brincaria. Não se cansava de admirar a beleza das bonecas, mas de fato, não sabia o que fazer com elas. Achava-as demasiadas em suas mãos.

Enquanto a tarde caía, estes pensamentos sempre lhe tomavam. O silêncio da casa, a mobília sem pó, o jantar pronto, as crianças na escola...um aroma de pretensa harmonia e de insuspeita paz. Felicidade seria isto? Ao mesmo tempo, a serenidade deste cenário funcionava também como algoz, porque favorecia o desarrumar das suas aparentes certezas.

Havia palavras dentro de si que não permitiam hesitações. Mas o que fazer com elas, se seus mergulhos são tantos e, se há um oceano que a navega, levando-a a ancorar em ilhas de interrogações? Nem sempre se reconhece em águas plácidas. Pensa, muitas vezes, que a vida precisa navegar na inquietude de um mar aberto, a fim de que possa avaliar a sua disponibilidade para alcançar o continente, assim como para testar seu fôlego para as braçadas que exige o navegar da evolução. Imagina, sem muita certeza, que nem sempre a vivência, os conhecimentos e a experiência dos nadadores profissionais os levam até à praia...por momentos, acha que é necessário flutuar enfrentando as correntes marítimas; que por vezes, é preciso deixar-se acolher no silêncio da ilha mais próxima, para que se possa refletir sobre o percurso que pode levá-la de volta a si mesma.

Sente as emoções espreguiçando-se em seu corpo. Já lhe é natural este contato sem medo, com aquilo que nem sempre compreende. Importa-lhe estar e dar-se plena às mãos da descoberta. Seduz-lhe o sentir, a vibração da vertigem do que virá, o pulsar do delírio roubando-lhe a razão, o peito aberto, sem estratégias e atento ao que os sentidos nem sempre lhe revelam. Em seu olhar, há um estremecimento, quase êxtase, quando se permite entregar-se ao mistério das confidências que o silêncio aviva.

Enquanto a lua passeia nas órbitas de suas lembranças, resgata-se, porque há momentos que não passam, como se seus passos ecoassem infinitamente nos corredores da memória.

Ah, como aprecia perder-se em indagações, ainda que as vezes, as palavras lhe pareçam tão inúteis. Por mais que tente dar exatidão e firmeza a algumas delas ao escrevê-las, depara-se com uma conspiração de letras emudecidas que a empurram à contemplação. Dentro de si, o idioma da inquietude a envolvê-la em todas as perguntas. E é assim que se vê, interrogando-se à sua própria voz:

- Quanto tempo permanece a dor, quando se sente alguém morrendo dentro da gente? Existem mortes que lhe parecem ser mais pesarosas e sofridas que qualquer morte física. O coração fica a se perguntar, onde se esvaiu tanta ternura e o que fazer com tantos sonhos que já não querem mais respirar. As mãos ensaiam acenos mudos, como se precisassem ocultar das lágrimas, o som de cada passo do adeus.

- O que sobrevive dentro da gente, quando até as lembranças começam a emudecer, como se a brisa do desalento esvoaçasse as páginas que foram um dia escritas com letras de desejos e sonhos?

- O que se diz para um sentimento em agonia, tendo-lhe jurado infinitude e eternidade, celebrado com todos os pactos, porque a maior aliança era o coração que o abrigava?

- O que acontece com as pessoas depois do “felizes para sempre”?

Em noites como esta, seus véus não resistem a transparência do seu próprio silêncio..

Fernanda Guimarães

www.fernandaguimaraes.com.br

Fernanda Guimarães
Enviado por Fernanda Guimarães em 08/09/2005
Reeditado em 25/08/2008
Código do texto: T48624