NO FIO DA NAVALHA

NO FIO DA NAVALHA

Pedro Luiz Silveira Castilhos – Pedro paisano – cumpria o segundo mandato como vereador na cidade de Trança de Embira: duzentos e cinquenta quilômetros ao sul da capital do Estado.

O município, com pouco mais de trinta mil habitantes, estava prestes a comemorar vinte e cinco anos de emancipação. As conquistas foram significativas. O hospital São Judas, de parcos recursos, que por pouco não cerrara as portas, fora ampliado e recebera equipamentos novos. Forças políticas, Câmara empresarial e entidades assistenciais mobilizaram-se. Duas modernas ambulâncias conduziam, terças e quintas, enfermos à capital para sessões de hemodiálise e tratamentos pormenorizados. Persistia o desprovimento de profissionais na área da saúde: o salário não os atraia. Cogitara-se a vinda de médicos cubanos.

À semelhança da maioria das comunidades minifundiárias, sedimentara a economia na agricultura e pecuária. Terras férteis e chuvas sazonais propiciavam expressivas safras de arroz, soja e milho, fontes em que se assentavam a economia, o labor e o desenvolvimento. Os cítricos e a melancia chegavam a mesas distantes. A uva e o caqui mereciam atenção. As primeiras safras de oliveira confirmaram a possibilidade de extração de óleo. Bacia leiteira promissora: confiáveis produtos eram beneficiados pela cooperativa Transul. O leite e seus derivados jamais foram passíveis de suspeição ou de denúncia quanto à pureza. A Feira de Riquezas da Terra, realizada anualmente em agosto, na Associação Rural, expunha os avanços da tecnologia. Uma multidão sequiosa de atrações tomava conta dos amplos pavilhões brancos. Intrépida, desafiando alturas nos bancos oscilantes da roda gigante, a puerícia rodopiava. Hábeis ginetes e amazonas exibiam destreza no carrossel.

Pedro Luiz afirmava, com orgulho, que seus ancestrais haviam cruzado, heroicamente, o oceano e se aquerenciado nas plagas uruguaias: deixaram a Espanha à busca de aventuras e ‘plata’. Citar as raízes acentuava o brilho nos olhos. Aos quarenta e dois anos, vivia as graças de uma vida harmoniosa, compartilhada com Marilúcia, mulher prendada, incansável companheira. Um filho, bancário, relutava em deixar as mordomias caseiras. Pedro não poderia ser classificado como homem rico, contudo, contemplado com uma polpuda partilha, incorporada ao dote feminino, estufou a guaiaca e multiplicou-se nas mãos da proficiência.

Além das atividades políticas, permitia-se participar do Conselho Fiscal do Sindicato Rural, era integrante do Conselho de Vaqueanos do Centro de Tradições Gaúchas ‘Laço de Embira’ e apresentava um programa radiofônico, nativista: ‘Cantos ao alvorecer’, aos domingos, ao despertar da manhã.

Voz grave, empostada. Timidamente, alguns fios de cabelos brancos emprestavam-lhe sobriedade e sedução. Ria na hora certa. Bigode e sobrancelhas espessas; costeletas a moda dos mais respeitáveis caudilhos, pupilas escuras, olhar atilado. Com frequência, discretamente, ostentava a indumentária gaúcha. Destacavam-se botas longas, marrom, bombachas fronteiriças - preguiadas (estreita ao estilo argentino). Em ocasiões especiais agregava o lenço branco, identificando o ‘Pica-pau’ e o ‘Chimango’, simbologia dos adeptos do Partido Republicano Liberal. Não perdia por nada um fandango galponeiro. Por ocasião da Semana Farroupilha, aflorava o atavismo, destacando-se nos desfiles de cavalarianos, no lombo de um garboso tordilho.

Trança de Embira, outrora distrito de Vertente, floresceu embalada na melodia nostálgica das rodas de carreta. Os bois, geralmente eram chamados por nomes ligados à tradição: Cambaí, Pitanga, Pintado, Matreiro, Paisano... Muitas vezes se ouvia: Mineiro, Gaúcho, eira boi! Boi da ponta! Boi do coice! O carreteiro manejava com agilidade a aguilhada ou picana. O movimento dos bois estimulava-se na vara comprida, com ponta de ferro, ou na taquara com um prego na extremidade.

Através das carretas, os produtores rurais transportavam sacos de arroz de pequenas roças (cercados), milho, abóboras, frutas, verduras, queijos, pães, cucas, ovos, embutidos. Em troca, procediam à aquisição de tecidos, arame, pregos, ferramentas, sementes, vacinas... Por dias e meses, as carretas foram transporte e morada.

Pedro Luís professava a fé cristã na matriz de São Carlos: cultos dominicais, festa do padroeiro, semana santa. Uma prima seguira a carreira religiosa. Padre Romeu contava, especialmente, em campanhas filantrópicas, com o apoio irrestrito do edil. Sua colaboração, no congraçamento natalino, atingia dezenas de carentes nas periferias. Seus adversários, não raras vezes, acusaram-no de compra de votos: não conseguiram sensibilizar o Ministério Público.

Metodicamente: o banho, a barba, o café da manhã, ouvidos e olhos atentos aos primeiros jornais. Pedro Luís gostava do pão feito em casa e de broas de milho. Dona Marilúcia herdara o gosto e a habilidade às práticas culinárias. Ampliavam-se virtudes nos doces caseiros, na costura, no bordado, nos cuidados à casa e à roupa e na atenção ao marido, assim como na filantropia.

Pedro Luís conservava hábitos e amigos de muitos anos. Aos sábados e em ocasiões especiais, eram-lhe reservados cortes das melhores peças bovinas. O açougueiro Getúlio conhecia seu gosto por uma boa costela de rês. No ligeirito, sempre havia tentadores pesos de vazio para um carreteiro. Acima do fogão, conservava o costume interiorano de secar linguiça, num varal de taquara.

Quinzenalmente recorria aos préstimos do compadre Cláudio Botelho, reconhecido profissional, proprietário da barbearia Corte de Mestre. Aparava o excesso capilar, particularmente a costeleta e o bigode. Suas atividades exigiam que se mantivesse bem vestido e apessoado.

Sábado, 14 de setembro. Pedro Luís faria uma alocução, na Câmara Municipal, às 18 horas, alusiva à efeméride farroupilha. Um mês antes começara a redação do texto. Discorreria sobre os valores nativistas na formação da cidadania.

Nove da manhã, Cláudio Botelho, vestindo um alvo guarda-pó, já o esperava. Conhecia bem os caprichos do político, a vaidade do homem público e a exigência do compadre. Já estava em atividade há mais de quarenta anos, sua autocrítica aprovava-o como bom profissional. Apenas a visão não era tão precisa quanto o fora. Mas não vacilava em exames periódicos ao oculista. Tornara-se confidente e prometia o segredo de um monge. Se bem que, uma vez consultado, não se omitia. Sabia dosar, como poucos, sem jamais citar as fontes, pareceres e futricas que lhe chegavam à contrição do confessionário. Torna-se histórica fonte de informações. Figura lendária no manancial folclórico embirense.

Música nativista de boa cepa, toalhas quentes, cadeira confortável, massagem facial. Pedro Luís confiava tanto no trabalho do amigo que não se preocupava com o espelho, pelo contrário, algumas vezes, permitiu-se reconfortantes minutos de sono.

Pela assiduidade, pouco era o trabalho da tesoura. Contudo, as ‘aparas’ mereciam cuidado e habilidade. E assim o foi: inicialmente o cabelo: bem delineado na parte de trás da cabeça e próximo às orelhas. As costeletas precisavam ficar absolutamente retas e harmoniosas. Uma ou outra palavrinha desviava o fígaro da atenção.

O ato de maior suspense reservava-se ao bigode: conjunto de pelos faciais, localizados entre o nariz e o lábio superior e é comum ser preservado por alguns homens junto ou não de uma barba. Dos que o preservam, muitos o fazem como símbolo de masculinidade, de maturidade, de estética ou de conceito social. Pedro Luís adotava-o como parte de sua personalidade.

E eis que don Cláudio, num descuido, traiu-se, e deixou o lado direito maior. Tentou equilibrar, em vão. Ao perceber o que fizera e que seria inviável a recuperação, comentou como amigo:

– Pedro Luís, os homens importantes dos grandes centros, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro... inclusive empresários e políticos não estão usando mais bigode. Ficaram mais jovens, mais simpáticos. Alguns, até estão fazendo a tal de depilação no peito e nas partes íntimas. São chamados de metrossexuais. Que te parece?

– Mas que conversa sem fundamento, compadre. Um descendente dos Castilhos da Espanha sem costeleta, sem bigode? Seria comprometer a masculinidade.

E nosso barbeiro, desolado, temendo pela própria integridade, olhava sem saber o que fazer. A visão o traíra. Qual seria a reação do compadre? Por certo, esqueceria os anos de amizade e companheirismo. Não tendo alternativa, dirigiu-se ao nobre cliente, falando firme e forte:

– Pedro Luís, tchê, o teu bigode ‘tá’ ficando branco. Não condiz com tua elegância, me perdoa, mas tu fica muito melhor sem bigode!

E sem que pudesse opinar, naturalmente contra a posição do barbeiro, Pedro Luís Silveira Castilhos, em plena Semana Farroupilha, fez o pronunciamento sem bigode.

Jorge Moraes – jorgemoraes_pel@hotmail.com – setembro 2014