Barco para Portugal

Havia dois meses que consumaram o matrimônio. Casaram-se no civil, as testemunhas estavam presentes, o paletó remendado e a maquiagem borrada. Mudaram-se, foram para o Sul. Ele comprara um pequeno pedaço de terra. A guerra civil estourou; até a cidade em que Tertuliano e Aras foram viver foi atingida. Fugiram, não sabiam para onde. Não queimaram nada, apenas deixaram. À noite, enquanto Aras dormia, Tertuliano foi levado, guiado. Ao nascer do sol ele acordou-a de seu colo, contou os pedaços de pão, os leguminosos e os litros de água, foram em direção ao porto mais próximo. Após três dias de caminhada somados de paradas para Aras descansar, chegaram a ele. De lá para o porto foram dias de vista: viram fome e sede. Tertuliano com sua enxada teve de decepar a mão de um árabe.

No porto havia um barco. Médio porte. Tertuliano foi se informar, perguntar. O dono, ao ouvir ser chamado, puxou as redes com que pescava peixe morto, murmurou, puxou o avental cheio de sangue, pegou um dos facões, foi atendê-lo. Perguntou o que Tertuliano queria, olhou estranho para o casal, disse que lá não havia nada senão peixe podre e família faminta, que se quisesse roubar perderia a jugular. Aras tentou defendê-los, Tertuliano sinalizou com a mão para que não o fizesse. Tertuliano explicou sobre a guerra, o dono disse que fome gera guerra, não era novidade. Seu Emanuel foi chamado pela esposa, no que este disse que ela viesse cá fora junto dos filhos. Junto dela duas meninas e um rapaz apareceram. Dona Rosa limpou a cara suja de carvão com o avental, os filhos fizeram o mesmo. A senhora ofereceu um pedaço de pão ao casal, Seu Emanuel disse que não havia pão para estranhos.

Tertuliano a todos interrompeu, perguntou se o casal poderia acompanhá-los em viagem, não importava para onde. Seu Emanuel ironizou, ignorou o pedido. Tertuliano disse que ele e Aras trabalhariam apenas em troca de comida e água; não precisariam de vestimentas, local para dormir e que ficariam no próximo porto. Seu Emanuel riu, disse que o barco iria para Portugal. Tertuliano insistiu, Aras concordava com o braço agarrado ao dele. Dona Rosa tentou falar, Seu Emanuel impediu: negou o pedido, entrou ao barco, mandou que a família entrasse.

Aras dormiu, Tertuliano ajoelhou-se ao lado. O barco não estava distante, ainda no porto. Amanheceu. Levantando-se, Tertuliano avistou Seu Emanuel a caminho. Acordou Aras, disse que se levantasse. O dono falou que pegassem as bagagens, o barco partiria em meia hora. Aras andou, Tertuliano ajoelhou-se, demorou dois minutos e alcançou a mulher. Seu Emanuel disse que lá não haveria tranquilidade, Portugal era o destino. Pôs desconfiado Aras para trabalhar com Dona Rosa e os filhos, Tertuliano para limpar o barco.

Nos jantares Tertuliano servia a todos, recolhia a mesa, lavava a louça. Aras sentava-se à mesa junto da família, Dona Rosa e os filhos ficavam encolhidos, Seu Emanuel comia quase tudo. Aras trazia os restos a Tertuliano quando havia. Depois disso Tertuliano ajoelhava-se com Aras, lia a Escritura à luz de velas, dizia-lhe que dormisse: deitavam no chão, ela o abraçava, ele a enrolava com uma capa de chuva. Tertuliano levantava-se, corria para conseguir cascas de pão jogadas fora, mascava fumo, que a fome passasse.

Ao amanhecer, pareceu noite aquele dia. O pano que amarrava o cabelo de Aras foi levado, Seu Emanuel previu tempestade. Mandou que todos entrassem, Tertuliano permaneceu fora: ajoelhou-se, poucos minutos a tempestade ia embora. Entrou também ao barco.

Ao amanhecer noutro dia parecia noite mais uma vez. Seu Emanuel não mandou que entrassem, queria pegar peixe. O ventou enfureceu-se, as águas tornaram-se montanhas, uma das pequenas de Seu Emanuel foi levada, caiu ao mar. Dona Rosa gritou, os dois outros filhos correram para dentro, Seu Emanuel foi olhar no mar e avistou a filha. Aras agarrou-se a Tertuliano, Tertuliano beijou-lhe a testa e disse que confiasse no Criador e Senhor daquela tempestade. Pegou duas boias que se jogavam ao mar, gritou que puxassem-nos quando fizesse sinal. Correu à borda, pulou: fechou os olhos, de rosto sereno, pensou em salvação e em sua amada. Caiu ao mar, acalmou a pequena, amarrou-lhe a boia, puxou a corda. Seu Emanuel gritou, todos puxaram a corda, a menina voltou. Tertuliano amarrou mal a corda em si, quando puxaram-no quase foi enforcado: desamarrou, puxaram a corda sem ele.

Tertuliano lembrou-se que ao lado de fora do fogão de pães havia um pedaço de madeira para se agarrar, nadou até lá, engoliu muita água. Gritou que lhe jogassem as boias, Aras ouviu: jogou-lhe desesperadamente. Tertuliano arrancou as boias das cordas, amarrou cada uma em um pulso, começou a escalar o barco: uma perna, uma volta de corda, outro perna, outra volta. A escalada fora suave, como se andasse nas águas. Voltou ao barco, Aras chorou amargamente sobre seu corpo, Seu Emanuel, de longe, agradeceu meneando a cabeça e com um olhar, houve inúmeros agradecimentos chorosos de Dona Rosa e dos filhos, o jantar foi o mesmo aquele dia, Tertuliano ajoelhou-se durante toda uma noite naquele dia.

Passado um tempo, veio um dia que tudo começou a ficar branco: Seu Emanuel falou que diminuíssem a cozedura de pão, que aumentassem o aquecimento do barco, em vez de água beberiam o vinho guardado para esse dia. No jantar, Aras teve apenas meio pão, não sobrando nada dele para Tertuliano. Seu Emanuel comeu dois, Dona Rosa nenhum, os filhos dividiram dois entre si. Aras abriu a segunda mala que trouxeram, Tertuliano vestiu-se bem, deu um casaco a Seu Emanuel, que aceitou. Dona Rosa ganhou roupas de Aras, que, agradecida, chorou.

Seu Emanuel no almoço de alguns dias antes da chegada a Portugal bebeu sozinho: gritou, ameaçou bater na mulher, empurrou um dos filhos, jogou ao mar frio as redes, desperdiçou farinha, apagou fogo. Tertuliano ouviu ele proferir xingamento contra Aras, foi ter com ele. Pediu que se acalmasse, Seu Emanuel empurrou Tertuliano, disse que lhe cobraria todo favor com o corpo de Aras. Dona Rosa chorou e correu para dentro, Seu Emanuel soltou o cinto, Tertuliano logo pegou um facão e ficou a frente de Aras. Seu Emanuel repentinamente caiu, descobriram que estava adoecido.

A água estava para acabar: Seu Emanuel bebia, Aras quase nada, Dona Rosa e os filhos bebiam o que sobrava do marido e pai, Tertuliano bebia o resto de uma mistura alcoólica forte de Seu Emanuel. Não havia peixe, a farinha quase acabara, dias ainda de Portugal. Seu Emanuel, enfraquecido, ficou calmo. Tertuliano ajoelhou-se, pediu comida. Dois dias se passaram, Tertuliano disse para Seu Emanuel que jogasse a rede aos mares: ele se riu, não jogou. Tertuliano jogou, ela voltou com peixe para sete dias. Tertuliano ajoelhou-se e agradeceu pela comida cuja não eram dignos.

Aras foi descuidada, Tertuliano estava perto e foi socorrê-la, uma de suas mãos foi decepada. Tertuliano passou a limpar o barco com uma só mão, não conseguia mais limpar os peixes ou lavar a louça. Pôde, durante um dia, apenas ler. Isso lhe foi refrigério.

Poucas horas para Portugal, Tertuliano dormia, Aras comia por três, Seu Emanuel tinha febre, Dona Rosa e os filhos olhavam ansiosamente para o horizonte.

Chegaram a Portugal, Tertuliano pediu que todos se sentassem antes de saírem do barco. Seu Emanuel olhou feio, sentou-se desconfiado: Tertuliano deu à família uma Escritura, ajoelhou-se, agradeceu, chorou. Aras ficou enjoada, foi vomitar em um canto.

Era uma vila formosa aos olhos, com necessidade de construtores e construção. Seu Emanuel desfaleceu na água, Tertuliano pulou para salvá-lo: de nada adiantou, caíra nela já morto. Dona Rosa e os filhos muito choraram, Tertuliano os acalmou, disse que ele e Aras cuidariam deles.

Tertuliano pediu licença ao vilarejo, construiu uma casa, plantou uma horta, pai de gêmeos, adotou os três órfãos.

Sete estações passadas, Tertuliano pescou um peixe perto da margem: estava com muita fome, comeu no barco mesmo. Ao voltar, urinou sangue: três dias de febre, dormiu. Aras, após seus dias enlutada, encontrou uma carta de Tertuliano, deixada para ela: agradeçamos ao Criador e Senhor de todos os mares, tempestades, peixes, mãos, sofrimentos, misericórdias.

Cesare Turazzi
Enviado por Cesare Turazzi em 18/11/2014
Reeditado em 19/11/2014
Código do texto: T5040113
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