Quando Hermínio Decidiu Partir

Rio Pará pensando no Jari, 29 de abril de 2015.

No dia em que Hermínio decidiu partir, tomou o café da manhã tremelique do álcool que lhe permanecia. Trabalhador rural, culpava-se desde moço pela morte de sua companheira Consuelo, diz-se que negligenciada pela tomada do mijo feito pelo esposo em pleno nascimento de Saulo. Não se deu conta da eclampsia da mulher e assim foi ela para os céus. E assim foi ele para a garrafa. Vivia um boneco desde então, sem eira nem beira, a bradar aos quatros ventos do Jari o sumo etílico e seu recipiente como se fosse Consuelo.

Na manhã do dia que resolveu partir, viu um nascer de sol esplendoroso a subir pelas serras de sua terra, de sinuosas pinturas escorregando os raios solares como crianças a correr desatinadas pelos caminhos afora. Lá do alto avistava as copas dos angelinzeiros longe, a munguba daquele lado, talvez fosse uma maparajuba, ou maçaranduba também, “ah vista que não ajuda!”. Juntou-se àquela alegria, ainda na casa das seis da matina, desajeitado que foi com sua pinga debaixo do braço num descer de ladeira, no gritar “Ei Sol! Peraí Sol, deixa eu descer primeiro”. Tremendo-se todo, já na vila, parou para dar um beijo no rosto da neta que ia buscar água, beijou outro neto que ainda vinha cheirando a sono, beijou o cachorro que lhe abanou o rabinho. O cãozinho devolveu a gentileza com lambidas melecadas na testa e o seguiu pela pequena vila. Só não conseguiu o beijo de Saulo, homenzarrão de cara dura que não lhe trocava muita conversa, preferindo a companhia dos homens que chegavam no bar da comunidade, uns e outros mal encarados que ali estacionavam para falar de traições, farras e furadas de garimpos, de madeireiras, de meretrícios.

Hermínio foi ao igarapé se lavar naquela correnteza eterna, acocorou-se para escovar a boca, de estaladas nos ossos de joelhos normais dos acima dos sessenta, mas Hermínio aparentava setenta e tantos. Tempos o álcool lhe roubara as feições joviais. Um inverso de Dorian Gray. Atrás daquela máscara enrugada das noites mal dormidas de bebedeira, havia um menino serelepe a contar os causos e cantar as serestas do tempo de sua Consuelo, época em que só pegava na mão se fosse pra casar. Como é dura a vida de um cabra solitário! E apesar das costumeiras idas ao Beiradão, não, não, queria mesmo era mergulhar nos sonhos proporcionados pela aguardente e assim rever sua amada. Enquanto nisso pensava, banhava-se, eita que o fogo sai pela venta, toma um gole, eita que o fogo entra de novo! Que escorre quente pelo esôfago feridento dos engolidos afoitos, da crosta de tabaco na parede da faringe, quão evaporante é o absinto a corroer as mucosas. Ali cresciam os tumores que tinham boa chance de marcar o fim da caminhada de Hermínio.

Pelas 9 horas anda pelo meio do campinho de futebol, e estando só reclama horrores do campo, da buraqueira e grita que o Dadinho nunca jogaria naquele campo! Ele mesmo pergunta: “o Dadinho do Remo? O Dadinho do Payssandu?” O mesmo, ué, jogou nos dois né?”. “Ah tá, é sim é, sim...”. E assim se convence. Antes de chegar às 10 horas, pára perto de uma castanholeira e vê um insetinho, um soldadinho andando pela folha oblonga na sua seriedade, disciplinarmente marchando pelas nervuras verdes da planta. Hermínio permanece em pé, olhando o inseto, tão decidido, tão reto a desfilar até o fim do folhoso. Bate continência como se fosse um colega de quartel! Sentido! Poxa, cai a garrafa no chão, mas não quebra graças ao pé rápido de Hermínio, prefere a dor no dedão à perda da bebida. “Mas ah Peste de vrido! Tua sorte ser meu ermão...”.

Passa na casa do filho às 10:30. Saulo não se encontra, só a nora, rabugenta que só ela. “E aí Branca, sai ou sai este almoço?? Tu já tirou o sobrecu da galinha?? Vixe que fede quando tu não tira! Vixe!”. Ela olha com cara resmungada. Ele sai rindo da situação que ele imagina ter criado. “Ó Penca! Ó Penca! Vem cá! Vem cá!”. Lá vem o netinho todo sem jeito querendo se sair, mas já é tarde, Hermínio o abraça com o sovaco já soprando a cara do garoto de um odor marcante do suor impregnado. “Penca, meu neto, tu estuda viu? Tu num sai teu avó cachaceiro viu? Mas ó, tu cuida da tua mulhé viu? É porque ela merece viu? Não sei bem pruquê, mas ela vai merecê que tu trate bem dela viu?”. Soltou o moleque que desembestou a correr limpando a cara pra junto da molecada que ria da cena. “Ei Penca!, volta aqui, volta aqui menino! Te dou um bombom se tu vieres.”. O garoto retornou. Ganhou Penca o big-big, ganhou o velhote um abraço de pura conveniência.

Às 11 horas, Hermínio vai ao bar da vila. Lá estão Saulo e outros homens que não são de lá, estão de passagem. Parece que discutem. Escuta os palavrões. Ouve um ameaçar Saulo. Hermínio não pode acreditar neste desaforo. “Ei homem, num fala assim do meu filho não homi!”. Saulo pede pro pai não se meter e empurra o velho de lá que só não cai por conta do esteio de aquariquara que segurava aquele recinto. “Saulo, ei Saulo sai daí destes cabras rapá!”. Mas fica humilhado pelo empurrão do próprio filho. Fica na verdade de coração partido. Saulo nunca perdoou o pai pela morte da mãe. Filho que sempre viu a cachaça lhe roubar o pai, uma mágoa, ah, uma mágoa daquelas. Hermínio anda até a estrada e se senta beira da piçarra, ali de braços entre a cabeça tonta a remoer a vontade de defender o filho que não pode, pois não tem força, pois não tem o consentimento. Pede desculpa pela fome do filho, agradece à madrinha que recebeu Saulinho depois do falecimento de Consuelo. Ressente-se de não ter seu carinho. Culpa-se por não tê-lo abraçado todos estes anos. Agora, ébrio, quando o quer, é afastado. “Ó maldita pinga que me separou de ti! Maldita”. Arremeda jogar Consuelo fora, desiste, se arrepende, bate a poeira do short puído e da garrafa. Resolve ir pra beira da Cachoeira do Pelado refletir. Branca grita por Hermínio. “Bora almoçar!!!”. Ele já está no meio da mata sem fome e sem escutar a nora.

Da boca da mata, avista Saulo em sua moto, indo pro rumo da rua, na verdade pro Laranjal do Jari, pois assim chamavam a rua. Hermínio levanta a mão pra dar um tchau onde só ele dava comunicação. Voltou-se e entrou na floresta densa do Jari, caminhando, caminhando com Consuelo no braço. Escora-se no cipó escada-de-jabuti, passa por cima do tronco da melancieira, se apoia e fere a mão na mumbaca, diz uns impropérios e continua a descer a serrinha, daqui a meia hora o barulho da água em queda. “Chóooooooo pra ti também Choeira!!”. Senta na pedra lisa subordinada à cachoeirinha, acomoda Consuelo de forma que não seja levada pela correnteza e calado olha para cima, para um lado, para o outro, acompanha o verde muro a cercá-lo. O quiquió lhe puxa conversa. Hermínio mete os indicadores na boca e imita o passarinho. Feliz. “Quanta folha meu Deus do Céu...”. Repara os bichos todos a andarem pelo solo de galhos e cogumelos, de folíolos, de terra, as saúvas, os besouros, as rãzinhas a pular de canto, passou um cachorro-do-mato zunindo já de medo do homem, tudo num rodar em sua cabeça e de uma barulheira inquietante. De repente um silêncio. A água torrencial a agredir a parede de barro maltratada por tanta força, o ajuntamento de troncos ali depositados a formar a casa de uma borboleta Morpho, de um lindo azul não reparado antes por Hermínio, que o sobrevoa e some por entre o leito do corrente riacho. “Deve ser este o azul do mar...”. Queria ter visto um dia o oceano, fazer o que? Tem coisas que a gente põe na agenda e não consegue atender. Que seja no máximo uns 20 por cento de não atendimento. E feito esta conta, Hermínio levantou-se, deu outra golada daquelas e refez o caminho até sua vila.

Perto de casa, sentiu o cheiro bom do cozidão de galinha, acelerou os passos imprecisos, impelidos pelo instinto da fome, “Ei Branca, tirou o sobrecu?”, quando dá com o dedão do pé na raiz exposta do jambeiro, caindo por cima de Consuelo, a garrafa quebra no antebraço, cotovelo cortado pelos cacos, e eis ali deitado a proteger a cara do sol num espalhar de sangue pela face. Deitado fica. Todos estavam em suas casas ou no almoço, ou na pipira da tarde. Ninguém sabe de Hermínio estatelado ali no chão de terra batida. O Sol faz o favor de ajeitar-se em ângulo para que a sombra da árvore que o derrubou cubra o ancião, que ofega álcool, sangue e tontura. Hermínio abre os olhos e enxerga a complexidade dos galhos do jambeiro, dispostos em bagunça, entretanto, de certa forma organizada. Eis que surgem as primeiras flores daquele vermelho-rosa bonito, o tapete em que viu Consuelo pela primeira vez quando veio para aquele lugar. Ela a catar as flores rubro-alvas, ele a admirar a beleza. O mesmo tapetinho que Saulo brincava, já sem a mãe, já sem o pai.

O neto Penca se assusta ao ver o avô naquele estado e leva para a casa de Branca, que limpa a ferida, passa água oxigenada, sem dor para Hermínio. Enfaixado o braço, o ébrio Hermínio diz que vai pra roça. “Te quieta velho!”, ralha-lhe a nora. Toma um caribé antes, pega a enxada no ombro, põe o facão no cós da calça, uma nova garrafa de cachaça pega do seu armário. Levanta-a como se fosse Consuelo e bota o pé no poeiral. Eram 15 horas.

Nos pés de bananeira que cuidava, roçava de lado o capinzal formado, vencia. Porém, o que desejava mesmo era arrancar todos aqueles pés de eucalipto que rodeavam sua roça, sua vila, sua comunidade. Praguejava e ali silenciosos zombavam aquelas magrelas árvores, donas de quase tudo. “ah, um dia, ah um dia...”. Concentrou-se na macaxeira, arrancou umas raízes, cortou a facão mesmo algumas embaubeiras que atrapalhavam os milhos do meio da tarefa, amolou o facão. Conversou com a terra por horas. O sol já se pôs. Cansaram os dois em seus trabalhos. Voltou para a vila. Passou pelo igarapé, tomou um banho de tira-ressaca. “Quer saber??”. Tomou a garrafa inteira ali mesmo. Tomou coragem. Foi para uma conversa definitiva com o filho que não tinha voltado ainda da rua. Branca e Penca estavam assistindo novela na casa de sua irmã, onde havia a única televisão a quilômetros. Hermínio pensou em desistir, ir para sua casinha de marupá dormir o sono profundo. Parou. Olhou para a casa de Saulo, nem uma foto sua na parede, nem sequer uma de sua Consuelo, só de um político sem-vergonha a oferecer falsidade. Um calendário de uma oficina de carros lá do Laranjal, nada, nada ali o lembrava quanto membro de sua família. Decidiu. Se viu cansado de sua embriaguez, jogou a garrafa fora, quis que o filho retornasse logo para pedir desculpas, para alforriar-se. Viu a rede de Saulo no quarto. Em sua nova postura diante dos problemas, decidiu deitar-se ali e esperar o filho chegar. “Ah, daqui só saio quando a gente conversar... primeiro, ó, respeita teu pai, moleque! Respeita que eu te pus no mundo... atrivido. Respeita se não te dou uma... respeita, respeita, ó, tenho um querer tão bem de ti, olha só como tu me olha, parece tua mãe, já te disse isso? A cara dela... ah, tão bonito tu me era bacurinho, ria alto, tão gordinho, olha só o peaozão que tu és agora, bom de trampo, bom pai, não, não, filho, tá perdoado, tá sim, desculpa eu, desculpa a cachaçada, perdão...”. E no treinamento das falas estava em tão boa rede, de um ranger suave dos armadores nos punhos da rede, quase uma cantiga: HERMÍNIO-HERMÍNIO-HERMÍNIO-HERMÍNIO, um lençol embolado para o apoio da nuca suada. Naquele deitar suavizou sua espera, em paz pela decisão de reatar com o filho, sem álcool se preciso fosse, sem mágoa, só amor. Dormiu sorrindo.

Das sombras veio um homem esquálido como a morte com uma faca na ânsia de matar Saulo, prometido desde a briga no bar, esgueirado passou despercebido por todos daquela comunidade. Imaginou que deitado na rede deveria ser seu desafeto, aquele corpo do mesmo jeito, ali enrolado, naquele breu de quarto, no cálculo onde deveria estar a cabeça e por sua vez, o pescoço.

Corte.

Nem um pio. Mal um suspiro.

Naquela noite, às 10 horas ouviram-se os gritos de desespero de Branca, escandalizada pela lamparina que apontou tal cena de terror.

E Saulo chorou a morte de seu pai, com Penca inconsolável agarrado na perna do pai. Saulo pediu perdão. Disse pela primeira vez que o amava.

Uma semana depois, às 7 horas da manhã, a foto de Hermínio foi colocada na parede, junto com a de Consuelo. Ambos estavam com aparência serena e em paz. O sol iluminava suas feições de uma vivacidade tanta, que qualquer um acreditaria que tal casal morava fisicamente naquela morada.

Era a hora.

Pantoja Ramos.