A paz começa comigo*

Era uma ideia fixa. Não podia voltar no tempo e mudar seu passado, como acontecia nos filmes. Mas precisava, tinha que consertar o estrago. Como será que vivia aquela família depois do incidente? Tentara procurar por eles, mas foi em vão; não achou ninguém, não encontrou nada. Nenhuma pista. Que fim teriam levado? Onde estariam, o que estavam fazendo?

Todos os seus amigos, seus familiares e principalmente seu terapeuta, que sabiam de suas agruras, eram unânimes: esqueça, já passou, viva sua vida. Mas era impossível. Todas as noites, sem exceção, antes de dormir, lembrava-se de tudo. Ao acordar, da mesma forma: era seu primeiro pensamento. O cotidiano e seus afazeres até que distraíam sua atenção, mas era durante a noite que tudo voltava. E, dependendo do seu estado de espírito, até durante o dia vinham-lhe flashes, revivia momentos esporádicos, revia cenas.

Foram anos de martírio, com um detalhe especial: não conseguia se lembrar de quando haviam ocorridos esses fatos. Por mais que tentasse, apenas lhe vinham à mente as cenas, mas não se recordava de datas. Era como se fosse uma aflição que o consumisse depois de haver tido um sonho ruim; mas as imagens eram tão nítidas que, tinha certeza, havia sido um fato real.

Um dia travou conhecimento com um rapaz estudioso de fenômenos paranormais com quem dividiu suas aflições e que o convenceu a fazer uma visita ao centro em que trabalhava. E lá, depois de algumas sessões, descobriu-se que o fato que o martirizava havia ocorrido há muitas gerações passadas, em outra vida. Ele ouviu atentamente as explicações dos estudiosos do local e também uma forma de se livrar de tudo aquilo: entre outras coisas, bastava orar, repetindo algumas frases e sentindo-as com o coração, para que todas as responsabilidades por situações em que houvesse se envolvido no passado fossem expurgadas pela força do amor divino. As frases eram: eu sinto muito, me perdoe, eu te amo e sou grato.

Saiu de lá confuso e acelerado. Não conseguia conceber que a nitidez com que sentia aquela aflição pelo incidente fosse imaginária, ou melhor, não fizesse parte de sua vida real. Demorou para que conseguisse colocar em prática a técnica ensinada, porém, depois de meses se aplicando nisso, um dia acordou e percebeu que não havia pensado naquilo desde o dia anterior. Mais algumas semanas e a aflição foi sumindo devagar, até que um dia desapareceu.

Porém ele, calado, não comemorou. Aquela culpa lhe fazia falta. Sentiu que, talvez, não tivesse mais motivos para viver, pois vivia para reparar um erro, ainda que inespecífico, e não apenas tirá-lo de sua alma. E assim, no auge de sua libertação, pulou do nono andar.

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*A frase que dá título ao conto, "A paz começa comigo", é um dos princípios do Ho'oponopono, técnica de purificação interior baseada em orações para libertar-se de recordações dolorosas, crenças limitadoras e condicionamentos.

Dela, depreendo que todo e qualquer método para elevação ou para a busca de paz interior não encontrará eco naquele que assim não o deseje. Este é o mote do texto acima.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Ho'oponopono"

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