PARA FERNANDA, COM AMOR

“Querida Fernanda: sinto um vazio tão sem escalas que, a sós comigo, me pego em péssima companhia. Se nós éramos, por que não somos? Será que amar é algo assim tão infância: fugaz e arrufável? Tudo bem, eu deveria ter dito que te amava (te amo) mais vezes, ou beijar tuas mãos, ou te mandar flores, ou um Cd de Piaf, ou... Deus, Deus! Se as lágrimas lavam a alma, porque a minha está tão suja, tão dorida?

Ainda ontem passei pela loja de brinquedos. Talvez eu compre aquele urso de pelúcia que daríamos à onírica Maria Luíza. Ela que não chegou a ser. Mas que foi matéria de sonhos. Ou talvez visite tua mãe. Ela saberia me dizer algo sobre tudo isso, saberia me dar paz entre um gole e outro de café?

Por que você sempre escova os cabelos onze vezes para cada lado? Por que teu corpo cheira à essências exóticas? E o teu sorriso? Por que ele é sempre assim, aberto para a vida?

Você é feita de diminutivos que são quase fetiches. Teus pequenos erros de português, tuas pequenas mãos, teu pequeno mundo. Por que, então, teu coração sem horizontes? Esse coração que asperge gotas salgadas em teu rosto, por meio dos teus olhos aquosos, tão puros, ao me enquadrarem na animalidade do cio.

Seria tão fácil te fazer e te ver feliz! Seria tão simples continuar a sorrir com você e para você. Ver as pequenas covinhas na tua face um pouco rosada, tão encabulada depois do primeiro beijo, no aniversário de tua prima, naquele sorriso algo encabulado, algo realizado.

Então por que não me pude agarrar a você e me pôr a salvo da correnteza? Por que procurei em outras camas e bocas o que me sobejava em tua entrega silenciosa?

Deve ser uma forma refinada de masoquismo sádico. Fazer sofrer. Sofrer fazendo.

Como te pedir perdão? Como te trazer de novo para casa, com teus vestidos leves, teu cartão de crédito do shopping e a tua alma coroada de flores?

Como te ver chorando em Titanic? Ou cantando uma música de Tina Turner sem saber inglês?

Como te ver se vestindo para que eu a pudesse despir, antes do abraço que consome, que devora?

Como te ver tomando um sorvete de baunilha com chocolate, com pequenas manchas escuras na blusa branca e um sorriso brejeiro, esvoaçantemente infantil, a brincar-lhe no rosto?

Quisera te falar de novo, bem baixinho, no escuro acetinado que ainda ecoa delírios. Quisera te levar ao baile, ao luar, ao jardim, à galeria de arte, ao inferno... pois seríamos nós.

Quisera também te abraçar forte, quase Cro-magnon, mas sensível aos teus seios macios, ao teu corpo delicado, ao teu amor de menina.

Quisera te dar um beijo logo pela manhã, enquanto você inveja, sonhadora e despenteada, a coluna social do jornal. Ou te levar uma caixa de bombons com um cartão, no Dia dos Namorados. Mesmo que você não os coma devido à dieta, mas me abrace com um sorriso assim tão mulher.

Quisera ouvir teu riso divertido ao ver meu tapa-olho no baile à fantasia. Ou ao ouvir, jocosa, meus poemas repentinos e ocos. Toscos, banais, loas do absurdo.

Quisera que você estivesse em casa, pra me ouvir dizer, enfim, que não tenho como conceber a vida sem que eu possa cobrir seu sono inquieto na madrugada. Que nunca conseguirei dormir em outra mulher. Ou sonhar com ela. Ou ser e ter família.

Quisera principalmente, Fernanda, que você estivesse aqui para me ouvir dizer isso pessoalmente”

O homem acabou de ler a carta que tinha nas mãos e olhou para o rapaz magro, bem vestido, de olhos fundos. Pigarreou, meio sem jeito, antes de dizer:

- É uma carta bonita, moço. Mas não há como escrever tudo isso num epitáfio.

Os olhos do rapaz se fixaram por um instante na face barbada do administrador do cemitério e depois tornaram, vagos, para um ponto qualquer na tarde que partia, devagar:

- Não faz mal. Acho que... (O suspiro profundo do rapaz trouxe uma comoção constrangida ao servidor) Acho que eu só queria que ela soubesse...de alguma forma...

Pegando da carta, o jovem voltou sobre seus passos e se foi, lento e curvado, quase abstrato, enquanto, numa árvore perto dali, um passarinho emitia um canto cinzento, sonora solidão.

Elias dos Santos
Enviado por Elias dos Santos em 03/03/2005
Código do texto: T5559