Saudade, simples saudade

Transcorria o Congresso Mundial de Dicionaristas e, como de costume, congregando intelectuais de vários cantos do planeta. Naquela tarde chuvosa de Londres, muitos debates foram travados para obter uma definição do termo saudade. A palavra inglesa homesick não conseguia sintetizar toda a semântica exigida para bem posicionar o seu significado completo e pleno. Sinônimos de saudade não foram cogitados, numa batalha sabidamente perdida por aquela legião de cientistas.

Duas semanas depois, os congressistas retornaram às suas origens, retomando suas rotinas em pesquisas acadêmicas avançadas. As conversas informais nas suas universidades não logravam êxito em obter uma definição para o vocábulo saudade fora dos padrões utilizados pelos psicólogos e médicos estudiosos de sentimentos e emoções. Parecia que a Ciência tinha um tipo de resposta, mas que não obtinha aceitação notadamente junto ao ser comum ou humano afastado ou longe das teorias científicas, normalmente imergido na maciez da superficialidade prática do cotidiano deste mundo vil dos homens.

Para a doméstica Raia, era dia de trabalho na casa de Esculacho, doutor e a maior autoridade em crítica de dicionários...

– O doutor vai querer torradas no café? Perguntou a empregada Raia ao cientista das palavras.

– Sim. Gostaria de ter café com leite e açúcar, também. Respondeu o dicionarista à sua serviçal.

– O que tanto o senhor lê? Novamente, intercedeu a empregada Raia.

– Dona Raia, estou afogado numa palavra depois de ter navegado um dicionário inteiro! Respondeu o cientista, metaforicamente.

– Desculpe–me, doutor, mas não entendi “nadica de nada”! Retrucou a empregada.

– Pois bem, Dona Raia, vou lhe contar uma coisa: tive de estudar várias teorias médicas e psicológicas e ainda não consegui aliviar minha incapacidade em definir uma simples palavra, entendeu? Parecia, pelo jeito de falar do dicionarista, que Dona Raia já o estava incomodando, de sorte que o papo deveria ficar por ali.

– O senhor quer mais alguma coisa? Finalizou a doméstica.

– A única coisa que quero mesmo é definir a palavra saudade, o que saudade é de fato? O dicionarista usou um tom agressivo, mas a empregada incauta nada percebeu e novamente o abordou...

– Quem é que o senhor quer ver? Perguntou diretamente, pois sabia que o cientista era solteiro, nunca o tendo visto em companhia de mulheres.

– Ninguém! Respondeu o pesquisador à funcionária incômoda de forma curta e grossa.

– Será que eu posso ajudar o senhor? A serviçal parecia querer dar uma de pesquisadora sobre o trabalho do renomado cientista, até ali ainda paciente com a falação daquela doméstica impertinente.

– Sim, certamente que podes me ajudar! Meio irônico, o doutor queria afastar definitivamente a serviçal persistente do seu pé.

– O que o senhor quer saber de mim? Colocou a empregada de forma objetiva, olhando bem nos olhos do cientista, quase não percebidos pelo impedimento ótico das lentes grossas de seus óculos.

– Dona Raia, o que é a saudade para a senhora? – Foi por demais direto o doutor, certo de que estaria encerrando aquela conversa já muito prolongada com sua doméstica.

– Então o senhor não sabe, doutor? A empregada arregalou os olhos sem entender como é que um doutor com tantos livros espessos publicados não soubesse o que era a saudade.

– Não! Aliás, no congresso que presidi em Londres recentemente, ficou patente existir muita gente que também não o sabe, certo? O doutor foi um pouco rude com Dona Raia.

– Pois saiba que a saudade é a vontade de ver outra vez, não é mesmo doutor? Falou a serviçal com muita convicção.

Naquele momento, o famoso dicionarista quase despencou da cadeira, deixando apenas cair um livro que então segurava. De pé, o Dr. Esculacho fitou sua serviçal com admiração...

– Puxa, Dona Raia, a senhora fez falta no nosso congresso. Por favor, sirva–me o café, pois tenho de enviar e–mails para os pesquisadores de muitas universidades com a sua definição maravilhosa.

Certamente, a empregada Raia não entendeu a alegria estampada na fisionomia do cientista...

Este conto ligeiro é de muita simplicidade como também o é patente a lição de que as coisas simples não precisam de muita ciência para serem entendidas. Assim, a saudade deve ser considerada como algo muito simples, pois quem a sente e a entende, de fato, é o próprio ser humano, para quem ela se mostra tão mais intensa quanto menor parece ser o grau de abstração de quem a tem. É, pois, simples, muito simples!

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 179-182).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 16/03/2016
Código do texto: T5575454
Classificação de conteúdo: seguro