A feijoada

Era um domingo de muito sol na capital alencarina e já beiravam onze horas da manhã quando Nando chegou à casa de Da Ariza. Ele trazia sua urna funerária famosa, que, na realidade, tratava–se de um recipiente em alumínio na forma e dimensão apropriadas ao transporte de ossadas humanas, porém era isolada termicamente com paredes internas de isopor. Naquele baú, Nando carregava muitas Bhramas geladas, lourinhas verdadeiramente apreciadas pelos comensais daquela feijoada, a qual já espalhava no ar o seu cheiro característico e estimulante para as glândulas salivares humanas, provocando o crescimento da fome de todos os famintos, que então só pensavam em devorar aquela comida.

A gastronomia fora iniciada logo após a chegada de Nando, com todos os presentes degustando com avidez os tira–gostos de calabresa, farofa, azeitonas e outras guloseimas comuns aos festivais incentivadores da gula pecaminosa e, justo por esta razão, muitíssimo temidos entre os cristãos mais religiosos. No ar daquele final de manhã quente, rolava um som maneiro no CD player, sem perturbar o papo intenso dos ali presentes, que comiam como se fosse pela última vez em suas vidas e riam mais do que a plateia do Tom Cavalcanti no auditório da Rede Globo. Estavam todos em festa tipicamente familiar, pois que ali somente se viam entes das famílias de Nando e de Larisa.

Vez por outra, Nando pegava o violão, dando uma trégua ao tocador de CD. Tocava e cantarolava canções da MPB de boa qualidade. Sistematicamente, fazia também intervenções no recinto: parava o violão e contava piadas divertidas, revelando competência na sua interpretação humorística, com muita comicidade nos gestos que fazia e no tom de sua voz devidamente colocado em cada uma das anedotas levadas a cabo. Era uma alegria que empolgava a todos os ouvintes, que demonstravam está de bem com a vida e, também, muito famintos!

O cheiro de feijoada ajudava a amplificar a fome de todos, catalisada pelos 'brametos de etila', fato que estimulava o apetite crescente percebido em todos, talvez hipoglicêmicos àquela altura dos acontecimentos, cujas fomes apenas eram controladas por tira–gostos então servidos com menor frequência porque simplesmente estavam no final da leva preparada, que fora concebida inicialmente para um estágio de curta duração da festa, que então assumia a dimensão de um instante demorado, o qual parecia não querer acabar tão cedo!

Uma da tarde e muitas incursões dos comensais até à cozinha para beliscar a feijoada pronta acabaram por obrigar Da Ariza a iniciar a colocação da mesa, que imediatamente fora invadida pelos vinte acometidos de “apetitose”, que num passe de mágica fizeram sumir toda aquela montanha de comida servida em bandejas e tigelas fartas. Quase que imediatamente fora dado prosseguimento naquele serviço e a mesa fora reposta, repetindo–se a fúria dos comensais acontecida sobre os pratos engolidos pelos convidados acometidos de fome tipicamente canina. Daquelas investidas deseducadas, pôde–se perceber que a etapa segunda durara não mais que dez minutos. Na investida gastronômica inicial, a comida fora devorada em cerca de dois a três minutos. Talvez um recorde para o Guiness Book!

Deu–se um tempinho ou pausa para a comida descer, naturalmente ajudada que fora por muitos goles de cerveja conservada gelada até ali na urna funerária de baixa condutividade térmica. Momentos depois, alguns daqueles batalhadores em luta árdua e prazerosa contra o inventário de feijoada ainda não consumida pareciam satisfeitos e já se escoravam nas paredes ou se escornavam no chão, de forma alheia a qualquer protocolo imaginável ou de respeito às regras usuais do lar então visitado, ou nas cadeiras espalhadas pela casa. Entretanto, para surpresa de muitos naquele dia, eis que alguns revelaram–se insaciáveis e voltaram a atacar, agora compondo um reduzidíssimo número de cinco comensais. Fizeram no entanto pratos mais modestos e demonstraram ainda velocidades de ingestão menores. Deram a entender mesmo que tinham o objetivo de nada deixarem sobrar daquela feijoada maravilhosa, de sabor ímpar e aroma singular, que todo brasileiro bem sabe apreciar. Percebera–se que em seus pratos o resto ingesta fora mantido zerado desde o início daquela prática gastronômica exagerada, provavelmente em homenagem a algum país faminto da Ásia, onde pessoas morrem de fome a cada minuto! Sem dúvida, esta fase supostamente final vinculara–se à satisfação pecaminosa da gula, pois os estômagos daqueles últimos glutões ativos ainda estavam cheios, repletos de tudo que havia sido comido até então: carnes diversas, feijão preto ou carioca, farinha, calabresa, costeleta de porco, pé–de–porco e tantos outros ingredientes ricos em colesterol maléfico, os quais compunham àquela receita alimentar pouco digestiva. Sim, o batalhão estava finalmente alimentado e apenas poucos eram os derradeiros a insistir em praticar a mastigação. Vira–se, por outro lado, que muita gente já havia jogado a toalha! No entanto, surpreendentemente, Nando ainda não havia entregue os pontos, sempre molhando o bico com uma Bhrama véu de noiva. Naquela ocasião, a maioria dos convidados superalimentados apresentava sonolência e, nas redes estendidas no alpendre lateral da casa, alguns haviam se entregado aos braços de Mofeu, que àquela altura acolhia a quase todos os pecadores que haviam cometido o pecado condenável da gula.

Nando era o reminiscente mais forte por estar de pé, talvez movido pela energia do etanol das muitas cervejas ingeridas até aquela hora, a um fluxo médio elevado, não decrescente e constante na média! Dominado pela fome insaciável, quasi canina, eis que ele retorna à cozinha para raspar o fundo do tacho, como que buscando o fechamento daquele rancho ou seção de matança da fome universal, derramando o que ainda restava no panelão de feijoada em seu prato fundo, culminando por acabar ou eliminar qualquer possibilidade de sobra daquele almoço na casa de Da Ariza. Configurara–se uma refeição dantesca, além de bastante adensada na qualidade energética dos alimentos componentes, todavia parecendo não satisfazer àquele moencano guloso último, cujo apetite não dava um só sinal de satisfação plena! E, com a mesma rapidez com que devorara os três pratos anteriores, passara a atacar violentamente o bocado derradeiro daquele alimento preto. Finalmente, quando estava por vencer o combate finalíssimo, depara–se com um calango cozido a integrar o alimento em seu prato então minguante. O pequenino quadrúpede fizera parte de toda aquela feijoada consumida com avidez por todos os presentes e, devido sua densidade maior e a sua não desagregação com respeito aos demais ingredientes daquela feijoada, alojara–se no fundo da mesma, como resultado de uma decantação. Sua cor cinza contrastava com o pretume daquela comida, pois que se mostrava muito reluzente ao ser descoberto por Nando. Imediatamente, não se contendo com o nojo sentido em decorrência da observação do bichinho morto, correra para o banheiro mais próximo, onde com seu jato de vômito forte e descontrolado lavara todo o ambiente em volta do vaso sanitário, deixando ali e espalhando pela casa inteira um cheiro forte e próprio de produto alimentício semi–digerido – expelido com violência e sem de controle de vazão algum! Voltava–se, pois, ao tempo glorioso dos banquetes greco–romanos, comparativamente revivido naquele epílogo vomítico.

O olor enjoento de vômito, impregnado pelo odor de levedura de cerveja ingerida, alojara–se no subconsciente de cada presente (seguramente para aqueles que haviam insistido em permanecer acordados, em rejeitar os chamados insistentes do deus mitológico do sono), caracterizando–se uma limpeza cerebral típica e uma ocupação posterior dos neurônios (as células que armazenavam os reflexos condicionados dos ainda famintos àquela ocasião, que certamente ajudaram a definir a vontade incontrolável de comer feijoada ou simplesmente uma mistura hipercalórica preparada com feijão preto e lipídios em abundância), implicando definitivamente na inibição ou extinção da voracidade desregrada de alguns daqueles convidados, em especial para quem chegou à etapa final da festa, particularmente para quem vomitou, quer por nojo ou repulsão visual ao calango cozido, quer pela provocação de náuseas em decorrência do aroma insalubre e insaudável no ar – fedor que então tomara o ambiente inteiro da casa e que fora provavelmente perceptível pelas narinas dos vizinhos de parede.

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 39-43).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 17/03/2016
Código do texto: T5576602
Classificação de conteúdo: seguro