O banheiro

Não conseguia divisar bem os contornos do rosto. Baço e manchado, como se estivesse há anos sem limpeza, aquele espelho falseava imagens propositalmente. Não, não poderia saber com certeza, porque também ela já não enxergava bem como antes. Porém, mesmo sem grande acuidade visual, percebia o lavatório trêmulo: era só tocar nele para sentir sua precária estabilidade, como se fosse despencar de uma hora para outra.

Um grupo de azulejos, próximo à porta de entrada, estava trincado e ameaçava cair. Batidas leves com o nó dos dedos denunciavam que estavam completamente soltos há muito. E, caso se erguesse os olhos, ficava fácil constatar a umidade excessiva que impregnava o ambiente, pois grandes nódoas de bolor formavam desenhos tétricos no forro que, um dia, fora imaculadamente branco. Não bastasse isso, a lâmpada tremeluzia a cada toque no interruptor, e durante longos minutos o ambiente tornava-se soturno e gelado como uma cripta. Assim, sem iluminação suficiente, tropeçar num dos pisos soltos era quase uma realidade.

Enquanto ouvia a insistente e sutil toada dos pingos que eram liberados lentamente pela velha torneira cujo mecanismo desafiava a força da idosa, considerava que deveria consertar aquele banheiro. Mas com que recursos? E como viabilizar tudo, já que não tinha a mesma mobilidade de antes e não conhecia nada de reformas? Sentou-se no vaso sanitário que, incomodado, balançou levemente, e pôs-se a repassar mentalmente todas as pessoas que pudessem auxiliá-la naquela empreitada.

Repassou também o olhar pelas antigas louças azuis, pela torneira dourada com manípulo em forma de pássaro, pelos azulejos portugueses pintados à mão, pelos pisos de ladrilho hidráulico artesanal, pelo lustre pendente de vidro colorido. Pelo casamento aos dezessete, pelos anos de juventude e felicidade, pelos risos de criança, pela alegre e intensa vida social. Pelo remendo malfeito com azulejo branco barato, pela banheira enferrujada e sem uso, pelo vidro quebrado da janela por onde o inverno entrava. Pelos valores perdidos, pelos mortos, pela decrepitude e pela solidão. Sim, o banheiro era um panorama, um retrato de sua existência, e embora a decadência daquela peça íntima de sua morada fosse patente, também o era sua antiga beleza e a inegável utilidade de todos aqueles equipamentos. Ela decaía com o banheiro no qual anteriormente se banhava, se embelezava e se perfumava para a vida. E ambos já não faziam sentido.

A reforma do antigo sobrado pelos novos proprietários terminou seis meses depois de sua mudança voluntária para o asilo. O banheiro ficou irreconhecível com seu piso de porcelanato, suas torneiras automáticas e lâmpadas de alta tecnologia dotadas de sensores de presença. As louças, retilíneas, contemporâneas e branquíssimas, assim como o revestimento das paredes. Algumas das peças existentes foram recolhidas a antiquários e lojas de reposição, outras destruídas e descartadas. Inclusive a torneira que, apesar de ser uma bela peça de museu, sem o manípulo restava inútil...

Porém ele, o pássaro dourado, diariamente gorjeava suas memórias junto dela, pousado no criado mudo do asilo.

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Este texto faz parte do Exercicio Criativo "Reforma"

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