Sapatos

-- Vamos caminhar?

-- Vamos.

E foram.

Denise e Marcos não eram pessoas, eram sapatos. Sapatos do Destino, que ia caminhar. Não tinham escolha, portanto, sobre ir ou não passear, mas já há tempos decidiram que o melhor era concordar com o Destino. Já tentaram ir contra, uma vez, mas não adiantou: precisavam de pés para se mover. Sem pés, sem movimento. Vida de sapato era isso. Que podiam mais, então, se não eram eles os próprios pés que se calçavam?

Para onde iam hoje? Nunca sabiam, a boca de Destino ficava longe demais. Mesmo que ficasse perto, aliás, ele muitas vezes nem dizia para si aonde ia. Só ficava lá em cima, em silêncio. Um desperdício de talento, se quer saber a opinião dos sapatos.

-- Se eu fosse livre, diria para sempre para onde ia! E com muito orgulho! “Desculpe, estou indo para a padaria. Desculpe, estou indo para o supermercado. Desculpe, estou indo almoçar. Desculpe, estou indo para a praia.”

E o outro sempre concordava.

-- Eu, se fosse livre, diria com todo o orgulho para os lugares aonde iria!

Hoje iam para a praça, os sapatos. Não ouviram ele falar, não, apenas reconheceram o caminho. Era o caminho da caminhada corriqueira. Destino fazia disso às vezes, caminhadas corriqueiras. Denise e Marcos ficavam felizes ao descobrirem para onde iam antes de chegarem lá, era como ver o futuro.

-- Tu viste a árvore?

-- Que árvore?

-- Aquela ali, grande, grossa, forte, verde.

-- Queres dizer marrom?

-- Poetas veem na cor verde.

-- Eu sou poetisa.

-- Se fosses, verias na cor verde.

-- Tá, tá, a árvore está verde. Vejo ela, o que tem?

-- Ela é grande, grossa, forte, verde.

-- Ela é.

Seguiam a vida assim, em despropósitos, em despretensiosidades, com conversas despropositais e despretensiosas. Mas que podiam mais fazer? Estavam nos pés do Destino. Ele caminhava, eles eram caminhados. Toda a liberdade que tinham estava na maneira como encaravam aquilo.

-- Tu vês a outra árvore, Marcos?

-- A outra grande, grossa, forte, verde?

-- Não, a outra, a que é grande, grossa, forte, laranja.

-- Já chegou o outono?

-- Nem notaste!

E logo viria o inverno, seguido da primavera, que por sua vez seria seguida do verão. Mas agora estavam no outono: grande, grosso, forte, laranja, mas com algumas árvores grandes, grossas, fortes e verdes, como a que Marcos vira. Mas isso não importava. Estações não importavam, as cores as árvores não importavam. Importava terem um ao outro, ali, andando, pois, no final, era tudo o que tinham - nem o Destino possuíam; eram possuídos pelo Destino.

-- Vê as nuvens. São brancas. As nuvens são brancas e o céu é azul, Denise. Brancas como o sorriso que não tens, azul como o vestido que não usas.

-- Do mesmo modo são os passarinhos que por lá voam em sua forçada liberdade. Marrons da calça que não vestes, e dos bicos alaranjados, da barba que não cultivas.

-- Um sacrilégio!

-- Nas cores do passeio!

E iam, e iam, e iam, e iam. Com todos os polissídentos aos quais tinham direito, eles iam. Uma curva, outra curva, outra curva, outra curva. Às vezes minutos e curvas se passavam sem que um dos sapatos dissesse uma palavra. Mas quem falou que minutos corriam sem que um olhasse para o outro? Denise era o mundo de Marcos, Marcos era o mundo de Denise. O resto, o resto era o Destino quem comandava. Até a união dos dois estava à mercê do Destino (felizmente este era vaidoso! Guardava os sapatos em pares. Quando achava um ao lado do errado sempre consertava o erro). O destino mandava, os sapatos obedeciam. Ainda bem que tinham um ao outro. Denise era o mundo de Marcos, Marcos era o mundo de Denise.

-- Um dia, Denise, seremos velhos e desbotados.

-- Mas pregados um ao outro, numa parede velha e despintada.

-- Até que venham demolir essa parede e sejamos destruídos.

-- Um fiapo ou outro dará jeito de nos entrelaçar, meu Marcos. E tão pequenos que seremos, ninguém haverá de se preocupar em nos separar.

-- Um fiapo ou outro!...

-- Para a eternidade, um fiapo basta. Ou outro é luxo.

O sol caía, a lua subia, mas nem Denise nem Marcos notaram. Isso ficaria para amanhã; teriam ainda muitos dias para notar o sol e a lua. Destino terminava sua caminhada, agora ia para casa, caminhando pela vida. Denise e Marcos o seguiam, sem escolha, observando tudo. Porque vida de sapato era isso.

-- Sapatos não sabem de nada.

-- Só do que sapatos conseguem enxergar.

-- Sapatos não têm olhos.

-- Só têm os olhos que conseguem ter.

-- Falhos olhos, falhos olhos.

-- Mas uma coisa está completa em ser sapato.

-- Que está completo em ser sapato?

-- Tu, Denise. Tu.

-- Tu.

7/9/2016

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 07/09/2016
Reeditado em 07/10/2017
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