Autópsia

A cidadezinha entardecia envolta na mesma modorra de sempre. Até mesmo as moscas voavam em ritmo mais lento sob o tórrido sol inclemente. Na velha delegacia a porta permanecia aberta, assim como as poucas e velhas janelas. Dentro, os três únicos ocupantes estavam entregues a seus cochilos. Na cela aberta dormia o também único “preso” – um velho negro, que já presenciara a passagem de dez Delegados por aquele fim-de-mundo. Em sua juventude havia dado cabo de um bom número de indivíduos em seus arroubos de fúria movidos pela cachaça, até que fora preso e condenado a uma pena de trinta anos. Já havia cumprido mais de trinta, mas não tinha para onde ir – e lá permanecia, como parte integrante do esquema policial da cidade. Tal esquema compreendia um Delegado – que dormia na cadeira recostada junto à parede –, um velho cabo que também dormia a um canto da outra sala e um soldado, ausente da delegacia naquela tarde.

Os demais habitantes da cidade semimorta se ocupavam do nada fazer. Não eram nem mil, contando-se aqueles que viviam nas fazendas das cercanias. E a maioria só ia mesmo ao vilarejo aos Domingos para as missas e quermesses. De resto, só mesmo nas eleições é que se via o povo ocupar as poucas ruas empoeiradas. Tal vida seria impensável a um cidadão de um grande centro, e talvez por isto mesmo não permanecessem por lá os Delegados de Polícia, que tratavam logo de apadrinhar-se e conseguir uma transferência, tão logo descobriam que aquele era um lugar esquecido pelo mundo. Fixos mesmo como profissionais de carreira só mesmo o velho padre Dionísio e o doutor Julião Peixoto, clínico geral, médico de toda aquela redondeza.

O Delegado ainda dormia, meio bêbado de sono e da pinga do almoço – talvez sonhando com uma impossível transferência – quando o jovem soldado irrompeu pela porta aberta, aos gritos, acordando de súbito a todos:

— Delegado! Delegado!

— O que foi, criatura? – respondeu o Delegado, erguendo-se do chão onde caiu com cadeira e tudo devido ao susto. – Quer me matar?

Acorreram à sala o cabo e o velho preso, ambos também assustados pela brusca entrada do soldado Wladimir. Ficaram junto à porta, aguardando.

— Morreu o Doutor!

— Que Doutor? – perguntou o Delegado.

— Ora, além do senhor que é Delegado, só tem outro doutor na cidade, que é o médico. E se o senhor ta aí em pé, só pode ser o outro, né?

O Delegado fez que não ouviu ser chamado de estúpido e perguntou:

— Morreu de quê?

— É, morreu de quê? – perguntaram os dois outros homens, em uníssono.

— E eu sei lá! Não sou médico pra saber. O homem ta lá, no consultório dele, mortinho da silva...

— Mas, homem, - interviu o cabo – diga o que houve. É morte matada ou morte morrida? Pelo menos isso dá pra se saber.

— Não fui eu! – diz o velho negro.

— Dá não senhor! O homem está sentadinho na cadeira dele, com os olhos abertos, olhando pra ontem. Não tem sangue, não tem arma, não tem nada...

— Então, se é assim, teremos que fazer a necropsia. Só assim saberemos o que motivou a morte do infeliz Doutor Julião. – disse, solene, o Delegado.

— Necro... o quê? – perguntou o cabo.

— Necropsia, anta! Necropsia! É o exame do cadáver para determinar a “causa mortis”. Entendeu, infeliz?

— Mas não é autópsia? – insistiu o cabo.

— Não, animal! Não é autópsia. Se você olhar no dicionário verá que autópsia quer dizer “exame de si mesmo”. Vem do grego: “Auto”, que quer dizer próprio e ”Op(s)”, que significa olhar. Logo, autópsia significaria literalmente alguém estaria examinando a si mesmo, o que é completamente absurdo se considerarmos aqui que nos referimos a um cadáver. O certo é necropsia, porque “necro” significa morte, em grego. Entenderam?

— Só não entendi uma coisa... Por que é que crioulo tem que ser morte? – perguntou intrigado o velho negro.

— Quem disse isso?

— O senhor, doutor Delegado! Falou que negro é morte... Ta certo que matei uns safados, mas eles mereciam...

— Não falei negro, estúpido! Eu disse “Necro”

— Ah, bom! Achei que eu ia ter que voltar pra atividade...

— Mas deixemos de coisa... E vamos cuidar do caso da necropsia.

— Doutor, se o senhor me dá licença – disse o soldado – acho que vai ter de ser autópsia mesmo...

— Você é mesmo muito burro, não é? Expliquei, expliquei... E não entendeu nada.

— Não é isso, Delegado! – argumentou o soldado – Pense bem: o único médico daqui era o Doutor Julião. Pra destrinchar o defunto não precisa ser médico? Pois é! Neste caso, vai ser autópsia mesmo, porque se ele não fizer, quem vai fazer?

O Delegado não respondeu. Encaminhou-se para a porta, colocou o chapéu para se proteger do sol ainda forte e ganhou a rua deserta e poeirenta, em direção ao consultório médico. No caminho ainda se permitiu sonhar um pouco mais com uma transferência para bem longe daquele lugar, onde, ao que parecia, nem mesmo a inteligência ainda havia chegado...

Poeteiro
Enviado por Poeteiro em 09/10/2005
Reeditado em 11/10/2005
Código do texto: T58005