Rascunho do Tempo

Mais uma vez ela chega ao fim do dia, e o entardecer se apresenta como único testemunho de seu tédio. Debruçada na janela do apartamento, observa, em silêncio, suas cores. As nuvens se deslocam, lentas. Fica a imaginar as horas como círculos vazios...Orgulho é também uma palavra redonda. Esta palavra invade seu pensamento e, pouco a pouco se mistura a tantas outras: horas circulares e vazias, tédio, solidão, ódio, ósculos.

Acende um cigarro calmamente e lhe ocorre que certos acontecimentos são como um cigarro mal apagado no cinzeiro, cuja fumaça insistente, que minutos antes lhe apaziguava, agora perturba.

O telefone esteve silencioso o dia todo. E ela ficara o dia todo trancada, esperando que este silêncio se rompesse.O apartamento cheira a cigarro e a incenso barato.

Nesta hora, especialmente, tudo lhe parece alheio: o cheiro de churrasco que emana das casas nas manhãs de sol, aos domingos, ou o apetite voraz das pessoas que devoram feijoadas, aos sábados. Nesta hora, tudo lhe parece sem sentido.

Há uma estranha paz em seu olhar fixo no infinito. Ela sabe da noite que vem chegando cega e muda. Sem promessas. Sente no corpo um leve cansaço, que lhe faz bem.Uma desculpa a mais para não ir. Tem estado assim, sem vontade de ir a nenhum encontro, a lugar algum.

A solidão lhe entedia, mas também lhe proporciona prazer. Perverso talvez, se é que existe algum que não o seja. Lembra-se de um personagem de Júlio Cortazar em Os Prêmios: Medrano, que se refere à solidão como um ato de egoísmo, como se fosse necessário estar livre para dispor de si mesmo.

Não é comum que lembre detalhes de romances que lê. Suas lembranças se fragmentam. Assim mesmo insiste em ler romances. Gosta de tê-los sempre à mão. Na adolescência, era a desculpa mais aceitável para fugir do barulho da casa, e isolar-se no quarto do sótão, onde passava dias reclusa.E, quando havia cigarros o prazer era ainda maior. Fumar e ler Dostoiewisk era o único entretenimento que lhe agradava na pequena cidade em que vivia.

No ginásio, o professor de literatura lhe sugeriu dois títulos de Camilo Castelo Branco: Amor de Salvação e Amor de Perdição. Escolheu este último. Esta lembrança lhe assusta por sugerir que, de alguma forma, esta escolha pode ter sido determinante em sua vida: Amor de Perdição. Perdição, esta palavra pressupõe o quê exatamente?

Se contrastada com salvação poderia pressupor um pecado quase. Escolheu o amor de perdição: o pecado que jamais a abandonaria.

Tem a sensação de que algo, irremediavelmente, se perdera. Ela havia deixado escapar, escorrer. Como a água escorre entre os dedos, quando tentamos bebê-la com as mãos unidas em forma de concha. E agora lhe restam as mãos vazias e úmidas. A umidade como marca do tempo que antecede o seco, e o inexorável retorno da água, do úmido, do seco, da água, do úmido, do seco.

Da janela do apartamento lhe obceca observar o tempo através das nuances no céu: amanhece, entardece, anoitece. Desce seu olhar à cidade e também as pessoas estão amanhecendo, entardecendo, anoitecendo. Mas não ela, pois neste momento se desgarrou do infinito, um segundo que se lhe apresentou estático, sólido. E então pensou em acaricia-lo e em agradece-lo por sua presença. Neste sólido segundo viu as palavras pensadas e não ditas materializando-se com todas as letras e sílabas que arranjaram-se perpétuas em seu vocabulário. Viu cada gesto se formando com todos os movimentos necessários, os músculos prontos para o ato. Por fim, acaricia esta substância mínima do tempo e a agradece por sua presença. Neste instante o segundo se dissolve. Busca por ele desesperadamente e em vão. É solúvel à ação.

Rocio Novaes
Enviado por Rocio Novaes em 07/03/2005
Reeditado em 29/09/2007
Código do texto: T5982