À glória
                                                           

                                  Conto dedicado ao meu primo João Felipe.
 
 
Estendido na maca, Jão é retirado do campo. Embora ostente o cenho franzido de dor, sorri por dentro.

Um dia antes, no sábado, tudo parecia perdido para ele, que estava obcecado havia uma semana com o primeiro jogo da final. Seu time tinha feito uma ótima campanha durante a competição, mas no domingo passado, no primeiro dos dois confrontos, tinha empatado. Jão havia perdido um pênalti nesse jogo, motivo pelo qual - apesar da sua excelente atuação (o time lhe devia muito sem dúvida) - foi apontado como o principal responsável pelo fracasso.

E isso, é claro, o aborrecia muito. Pois todo o esforço, todos os gols, todos os dribles, todos os treinos eram imediatamente esquecidos com um só erro; mesmo que o erro fosse grave - um artilheiro nunca deve perder um gol, ainda mais se de pênalti -, ele merecia o perdão; pois sem ele o time não teria ido até ali, não chegaria nem às quartas de final.

Todavia, o fato era que a torcida, o técnico, a imprensa, ninguém o perdoou - nem ele mesmo. E todo seu esforço de nada valia para compensar sua falha: o peso da condenação o oprimia. Fosse um jogador mais experiente talvez reagisse de outra forma à pressão. Mas era muito jovem, estava em ascensão; havia conseguido, a duras penas, chegar à primeira divisão em um grande clube naquele ano, e esse era o seu primeiro campeonato.

O time era bom; além dele, havia mais um craque; os demais jogadores eram razoáveis, um ou outro um pouco acima da média. A mediocridade livrava a maior parte do time das expectativas da torcida. Assim é a vida: quanto maior a capacidade, maior a cobrança. Seja medíocre e livre ou virtuoso e sofra as conseqüências - drásticas, sem dúvida.

Seu único consolo naquela triste semana entre as partidas da final era a jogada que ele havia engendrado, a qual tinha deixado na cara do gol o seu parceiro de ataque, que, no entanto, não marcou. No fundo, aquele erro, também criticado (menos que o dele mas criticado) lhe dava um certo alívio, embora ele não o admitisse.

Há uma semana Jão não dormia direito. Não parava de pensar no gol perdido. A jogada repetia-se em sua mente incessantemente: via o colega caindo no canto direito da grande área e estendendo o corpo no gramado; o juiz, em seguida, apontou a marca do pênalti. Nesse momento, ele vibrou e correu em direção ao grupo que rodeava o jogador caído; pediu para fazer a cobrança, aquele gol tinha que ser dele.

O time jogava fora de casa e faltava pouco para o fim da partida, o que tornava o seu gol ainda mais importante. Ele colocou a bola na marca e se afastou sem pressa; no estádio lotado, não ouviu nada além da sua própria respiração; o silêncio era tão absoluto que quando o juiz apitou Jão, ao correr para a bola, ouviu o barulho da sua chuteira roçando a grama, seguido pelo som abafado do chute. A bola foi direto para fora, por cima do travessão.

A torcida rompeu o silêncio. Ele levou as mãos ao rosto e abaixou a cabeça. Não queria acreditar que havia perdido um gol daquela forma e naquela partida. Mas apesar do desejo de desaparecer, ele tinha que se apresentar, se colocar, pedir para participar do jogo. Os maus jogadores fogem da bola, colocam-se em situações nas quais se torna difícil lhes passar a bola; jogadores fracos muitas vezes se escondem atrás dos adversários, eximindo-se da participação e conseqüentemente da responsabilidade.

Não era o caso de Jão, que correu, se apresentou, tentou; mas não houve jeito: a partida terminou empatada, em virtude do pênalti que ele perdeu. Era o que todos diziam; era o que ele sentia.

Os dias passaram rapidamente, como geralmente ocorre quando se deseja que o tempo passe lentamente. Chegou o domingo e faltavam agora apenas duas horas para a final. Jão estava quieto (pelo menos por fora), aguardando a hora de entrar em campo. Durante a semana tinha treinado bem; apesar de tudo, ele e Felipe, seu parceiro no ataque e vice-artilheiro do time, eram a esperança: carregavam os dois a quase insuportável obrigação da vitória. Livrar-se do peso do dever de ganhar a taça lhe parecia melhor que a própria taça.

Todos esperavam que a dupla jogasse com o talento que demonstrou durante todo o campeonato; ou seja, a glória ou o fracasso se aproximava e o time, que tinha onze titulares, parecia estar concentrado somente na dupla. Jão sabia que a responsabilidade era proporcional ao talento: as expectativas, portanto, pesavam sobre ele.

Às vinte horas, depois de uma semana de sofrimento, os times entraram em campo. A torcida vibrava. A vitória lhes concederia o título. Agora, apenas noventa minutos restavam para se definir o time campeão daquele campeonato.

O clima estava tenso, como geralmente é uma final; principalmente quando o primeiro jogo termina empatado. Os jogadores corriam pelo campo; a torcida gritava; houve muitas faltas. Jão, a cada minuto, sentia suas pernas mais pesadas; isso nunca havia lhe ocorrido. Ele conseguia correr, mas o esforço que tinha que fazer era muito maior ao que estava acostumado.

O primeiro tempo acabou sem gols. E no início do segundo tempo, para desespero do craque do time, a torcida começou a cobrá-lo pelo erro do primeiro jogo, gritando seu nome e pedindo o gol perdido na semana anterior. O refrão da torcida prenunciava sua condenação: "Jãooooo, vacilãooooo!".

A frustração crescia e a exaltação da torcida concentrava-se cada vez mais em Jão. A cada minuto o medo do fracasso - que sem dúvida é muito maior do que o alívio inerente ao sucesso - aumentava. Seus pés pesavam como chumbo e as chuteiras pareciam prendê-lo a cada passo, como se tivessem travas compridas e finas, que fincavam na terra, travando seus passos, pregando-o ao chão.

Aos vinte e nove minutos do segundo tempo, Jão, a poucos metros da entrada da grande área, corria pelo centro e, quando ia dominar a bola, lançada para ele por um maravilhoso passe de Felipe, sofreu uma falta violenta e desabou.

A torcida se exaltou; a maioria já estava de pé, atraída pela jogada - como se a bola ao se aproximar do gol puxasse os torcedores com fios invisíveis. Houve vaia e gritos. Jão, estrela do time, não conseguia se levantar; encolhido, com a mão acima do joelho, chorava de dor.

Felipe, ao ver o colega cair, correu imediatamente até o juiz, a fim de cobrar alguma punição ao adversário que tinha cometido a falta. Porém, antes de chegar, viu o cartão vermelho em riste: o agressor estava sendo expulso. Reduziu a marcha e se aproximou de Jão, ainda no chão. Tentou trocar algumas palavras com ele, mas não conseguiu; diante da inércia do jogador ferido, retiram-no de campo, sob aplausos da torcida.

Quando Jão, sendo atendido na beirada do campo, constatou que não voltaria ao jogo (o técnico já começara a aquecer outro atacante), começou a levitar. Ele tentou segurar-se no chão, mas o máximo que conseguiu foi arrancar tufos de grama. Ele continuou a ascender, lentamente. O médico que o atendia tentou segurá-lo mas, quando se viu a meio metro do chão, largou o jogador.

“Desce, desce, desce!,” a torcida passou a gritar, ao vê-lo subir ao céu. O juiz não sabia se continuava a apitar o jogo ou o suspendia até Jão descer ou desaparecer de vez nos ares. Todavia, apegado às regras, resolveu continuar a partida; afinal, aquele caso - ascensão de jogador aos céus - não era previsto no regulamento como hipótese de suspensão de uma partida.

Depois que Jão ultrapassou a cobertura das arquibancadas, o time adversário, aos 39 minutos, fez o gol da vitória. Uma emissora de TV, de helicóptero, cobriu o vôo do craque e ainda obteve uma entrevista exclusiva, às 23 horas, na qual Jão prometeu se recuperar da contusão e marcar muitos gols no próximo campeonato.