Vingança e perdão - Parte 1

PARTE 1

Era uma tarde quente e seca, comum no Nordeste brasileiro, quando se reuniram na casa grande da fazenda Boa Vista, de propriedade da família Amaral, os senhores Antônio Amaral e Joaquim Correia para tratar do casamento de seus filhos: Amélia Amaral e Severino Correia. Naquele tempo era assim que os abastados tratavam a instituição do casamento. O primeiro era um rico fazendeiro do açúcar, escravocrata e rude. O segundo, um grande comerciante de especiarias, não era menos rude e ambicioso que o outro. O objetivo de ambos era aumentar suas fortunas e a influência na província da Bahia.

Os jovens, com menos de vinte anos, ela dezesseis e ele dezoito, foram apresentados após o acor-do feito entre os pais. Severino encantou-se por Amélia, que era mesmo uma moça muito bonita e cativante. Já Amélia, se não sentiu repulsa por Severino, também não nutriu nenhum sentimento especial pelo rapaz de aspecto altivo e indolente. Um casamento arranjado e sem amor não estava nos planos dela, que, aliás, nutria secretamente uma paixão proibida e correspondida por um dos jovens escravos de seu pai, o negro Batista.

Conhecedora que era do temperamento paterno, a jovem nem ousou expor seus pensamentos ao genitor e, subservientemente, aceitou aquela união por mesquinho e ganancioso interesse. Enquanto isso, Severino via-se feliz pela bela prenda que lhe fora escolhida pelo pai. Como se apaixonara por Amélia, nenhuma importância estava dando ao fato de ser arranjado o casamento. Além disso, o fato de ser criado e educado numa sociedade patriarcal e machista cegava-o para o que Amélia realmente sentia.

Assim sendo, em menos de um ano após o acordo entre as famílias Amaral e Correia, aconteceu o casamento entre Severino e Amélia. Na cerimônia e nas festividades, percebia-se nitidamente a alegria do noivo e a expressão impassível da noiva. Todavia, nada disso tinha relevância mediante o real motivo daquela união. Ninguém procurou saber o porquê da impassibilidade de Amélia num momento em que se comemorava a união de duas fortunas.

No período que precedeu ao casamento, Amélia encontrou-se às escondidas com o negro Batista e entregaram-se a uma ardente paixão. Ele chegou a propor a ela que fugissem para bem longe dali a fim de poderem viver juntos e felizes apesar das dificuldades que sobreviriam. Medrosa quanto ao que poderia acontecer a ambos, Amélia disse não. Por sorte e benevolência de forças superiores esses encontros entre os apaixonados não resultaram numa gravidez.

Recém-casados, Severino e Amélia foram morar na cidade, pois era lá a sede dos negócios da família de Severino. O pai dele presenteou-os com uma bela e imponente casa mobiliada com o que havia de mais luxuoso na época. Por outro lado, o pai de Amélia cedeu alguns escravos e escravas para que ela e seu marido tivessem a devida comodidade. Entre esses escravos estava o negro Batista.

À Amélia caberia a administração da casa e dos serviçais e Severino seria responsável por prover as condições financeiras necessárias para a manutenção do lar. Os recursos vinham de forma abundante de seu trabalho junto ao pai, no comércio, e à administração conjunta que com o tempo passou a exercer na fazenda do sogro.

Condicionada que fora pela educação que recebera, Amélia soube entregar-se ao marido sem que ele desconfiasse que ela já não era mais pura. E assim o casamento prosseguia conforme as conveniências e aparências exigiam. Aparências para Amélia, pois para Severino o sentimento era real. Talvez fosse esse sentimento que o impedia de perceber que sua esposa não o amava de verdade. Nesse meio tempo, Amélia continuou a encontrar-se furtivamente com o negro Batista.

A falsa harmonia entre o casal Severino e Amélia durou cerca de três anos. Não que Severino houvesse descoberto ou desconfiado de algo, mas é que começaram os questionamentos pelo fato de não terem ainda nenhum herdeiro. Obviamente, devido ao patriarcalismo vigente, ele começou a pensar que havia algo de errado com sua esposa. Isso fez com que ele, mesmo a contragosto dela, fizesse com que Amélia se consultasse com os médicos mais renomados da região. Para espanto dele, após exames e mais exames, nada de errado fora encontrado em Amélia. Nem desconfiava ele que a causa de tudo isso era o negro Batista. O escravo, conhecedor das magias trazidas de sua terra natal, fornecia a Amélia algumas bebidas, que ela tomava às escondidas, para que não engravidasse. Sabiam os amantes que no caso de uma possível gravidez, estariam sujeitos ao acaso de a criança poder ser tanto de Severino quanto do negro Batista.

No entanto, como nada dura para sempre, ainda mais as mentiras que ferem as leis divinas, o caso acabou sendo descoberto. Como o filho não vinha, Severino começou a entristecer-se e a ressabiar-se em re-lação à Amélia. Não que ele fosse um exemplo de fidelidade e correção moral, mas é que, ainda mais naquela época, aos homens eram permitidos certos deslizes conjugais e Severino começou a escancarar esse seu lado. O que o deixava mais perturbado era que Amélia pouco ou nada se importava com suas farras e extravagâncias.

Em um desses seus retornos fora de hora para casa, Severino, ao entrar, escutou vozes sussurrantes vindas do escritório. Aproximou-se e percebeu que a porta estava ligeiramente entreaberta. Pôde, então, reconhecer as vozes de Amélia e do negro Batista. Ambos conversavam sobre os planos de fuga e sobre como estava cada vez mais difícil para eles, manter às escondidas a paixão que mutuamente nutriam. Isso deixou Severino extremamente irado e indignado. Como pudera ter sido traído todo esse tempo sem que desconfiasse de nada? Traído pela esposa, a quem julgava quase uma santa, e pelo escravo, a quem creditava uma fidelidade quase canina.

No entanto, o que mais feriu seu ego de marido apaixonado e traído foi o fato de ter visto, pela brecha da porta, Amélia e o escravo trocarem beijos e carícias. Aquilo ele não poderia permitir, ainda mais dentro de sua própria casa. Sacou da cintura a pistola que sempre carregara consigo, abriu impetuosamente a porta e sem dar tempo para conversas e explicações, desferiu dois tiros certeiros: um no coração de Amélia e o outro a cabeça do negro Batista. As mortes ocorreram praticamente de forma instantânea. No seu compreensível desespero, caiu de joelhos ao chão e chorou copiosamente perguntando-se o porquê de passar por a-quilo e maldizendo a Deus por permitir que tais atrocidades acontecessem.

Ao amanhecer e com o correr do dia, a história já havia se tornado pública. Severino foi preso, porém, absolvido em julgamento porque seu crime foi em legítima defesa da honra. Mesmo nada devendo à justiça dos homens, Severino não conseguiu mais viver em paz. A fama de marido traído já era grande na cidade em que morava e, para não prejudicar ainda mais os negócios do pai, ele foi embora. Levou consigo algum dinheiro que o genitor lhe dera, algumas roupas e um cavalo. Não disse aonde ia e nem deixou rastros. Perdeu-se na imensidão da aridez sertaneja. Os que o viram partir puderam notar a frieza e sua expressão, todavia, não podiam prever o que aconteceria anos mais tarde.

Por muito e muito tempo, ninguém soube nada de Severino. Até mesmo quando seus pais morreram, não houve quem pudesse encontrá-lo para dar a notícia. Soube-se, quase uma década depois do ocorrido que ele, por uma questão de sobrevivência, tornara-se um matador de aluguel; um assassino daqueles de ab-soluta frieza. Assim foi servindo a quem podia pagar seus serviços. Tornara-se temido tanto por quem o contratava quanto por quem apenas conhecia sua fama.

A vida de pistoleiro de Severino durou cerca de três décadas, tempo durante o qual fora persegui-do pela lei humana, por outros pistoleiros e pela própria consciência, que nunca permitiu a ele esquecer o motivo de ter se tornado esse monstro sanguinário. Dos primeiros ele sempre achava um jeito de se livrar, mas da última não havia meios de fugir. Embora cônscio dos erros e crimes cometidos, jurara para si mesmo que iria até as profundezas do inferno, se preciso fosse, para reencontrar aqueles que o fizeram passar por todo esse martírio. Seu ódio e seu insaciável desejo de vingança fizeram-no perder a fé em Deus. Severino não perdoara ainda à Amélia ou ao negro Batista; sequer havia perdoado a si mesmo. E tudo isso só lhe trazia mais dor e angústia.

Severino não tinha rumo nem paradeiro fixos. Dormia ora ao relento, sob a copa de alguma árvore ou escondido em alguma das muitas grutas que se encontrava na região, ou ainda raramente se alojava em alguma pensão pouco conhecida. Numa dessas noites em que vagava à procura de um canto para dormir, acabara sendo emboscado por outros pistoleiros e não teve tempo para reação. Alvejado diversas vezes, morreu como indigente e só não fora enterrado como tal porque algum ser de alma caridosa encontrou seu cadáver e fez-lhe uma cova rasa junto a um vistoso coqueiro.

Cícero Carlos Lopes - 25 e 26/072017

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 28/07/2017
Código do texto: T6067350
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