Vingança e perdão - Parte 2

PARTE 2

Severino despertou em um lugar sombrio, muito frio, lamacento e fétido. Ao olhar em volta viu outros seres em situação lastimável de agonia e sofrimento. Teve consciência que havia morrido e agora estava noutro plano. Tentou caminhar, mas seus pés não conseguiam se movimentar naquela área pantanosa. Olhou para baixo e percebeu duas mãos esqueléticas querendo puxá-lo para mais abaixo ainda. Lutou com as forças que ainda lhe restavam, porém não houve como resistir e caiu de joelhos. O impacto ocasionado pela queda fez jorrar aquele líquido malcheiroso em seu rosto, ao que imediatamente fechou os olhos por alguns instantes. Quando conseguiu abri-los novamente, deparou-se com uma face esquálida a olhar-lhe fixamente e dizer-lhe:

– Bem vindo de volta ao lar, Severino.

– Lar? Isso nunca foi meu lar. Esse lugar é patético, podre...

Ouviu-se uma gargalhada estrondosa e Severino pôde sentir uma dor que percorria todos os nervos e regiões do que ainda chamava de corpo. A criatura respondeu-lhe com voz irônica e cavernosa:

– Por acaso tu pensas que és o quê? Por acaso achas que merecias um palácio, serviçais para as tuas vontades e o descanso da paz eterna? Não passas de um tolo que carrega o ódio e a vingança dentro do coração e isto cegou a tua mente. Agora é o momento de pagar por tudo o que fizeste aos outros e a ti.

Nesse instante, Severino não conseguia sequer mexer os braços ou qualquer parte do corpo. A criatura parecia controlar-lhe mentalmente de tal forma que não havia meios de se desvencilhar. Apenas disse sofregamente:

– Eu sei que não estou mais entre os homens, mas todos os meus atos foram por causa do que me fizeram Amélia e aquele negro Batista. Dois traidores. Então pensei que isso fosse levado em conta.

– Como és patético, Severino! A lei da ação e reação funciona para todos os seres em qualquer plano que estejam. Não há como dela escapar. Se não pagou no mundo dos homens pelos teus crimes, pagarás aqui, no mundo dos espíritos.

Após isso, a criatura soltou outra gargalhada estrondosamente maléfica e Severino perdeu completamente os sentidos. Desmaiou e caiu de vez na podridão do pântano em que estava e assim ficou por bastante tempo.

Quando voltou a si, muito tempo depois, não estava mais no pântano. Estava acorrentado numa espécie de masmorra e sozinho. Olhou em volta e não via nada nem ninguém. De repente, percebeu que se aproximavam dele um grupo de espíritos com aspecto assustador. À medida que chegavam mais perto ele foi vendo as faces, mas não conseguia reconhecê-los. Assustou-se sobremaneira, mas nada podia fazer.

Assim que o grupo chegou bem perto dele, o que parecia o líder perguntou sarcástico:

– Não te lembras de nós, assassino miserável?

– Não! Não posso lembrar-me de quem não conheço. Não posso lembrar-me de quem nunca vi!

– Olhas com atenção para as nossas faces! Fomos todos mortos cruel e covardemente por ti e o único motivo que te levou a isso foi a ganância pelo dinheiro e depois o prazer mórbido e sádico de ver o sofrimento alheio. Agora é nossa vez de fazer-te sentir parte da dor e sofrimento que nos provocaste.

Severino notou que eram cerca de 40 ou 50 espíritos que ali estavam em busca de vingança. Ele nunca contabilizara as mortes que provocara, apenas o dinheiro que recebia. Foi nessa hora que os castigos começaram. Recebeu chutes, socos, batiam-lhe com objetos estranhos, jogavam-lhe pedra, desferiam-lhe golpes de faca. Seu corpo parecia que iria se desmembrar. Severino percebeu que após a morte, também há sofrimento. Durante as várias horas em que fora castigado, Severino não parava de pensar em Amélia e no negro Batista, pois foram eles que provocaram sua queda a tal ponto. Sua mente frágil e seu coração endurecido cegavam-no para a verdade, fazendo-o apenas desejar a vingança cada vez mais e mais. As sessões de tortura a que era submetido duraram muitos dias, que ele não soube precisar quantos exatamente. Quando se deram por satisfeitos, o líder do grupo falou gargalhando:

– Pronto! Já é o bastante! Vamos deixar este verme aí mesmo.

Todos foram embora e abandonaram Severino num estado deplorável e ainda acorrentado. Sem forças, o antes altivo e petulante homem era agora pouco mais que um traste. Aos poucos foi recobrando a consciência, viu-se sozinho, fraco e mesmo assim seus pensamentos de ódio e vingança não o abandonaram. Em seu mais profundo íntimo jurou outra vez encontrar e destruir Amélia e seu amante. Adormeceu!

Ao acordar, notou quer estava cercado e sendo observado por três espíritos de aparência mais próxima à humana, mesmo assim de aspecto horrendo. Eram mais altos, trajavam-se com uma espécie de sobretudo preto com duas faixas de cor roxa, uma de cada lado. Portavam espadas longas e também de cor negra. Eram mais amedrontadores que os primeiros a lhe torturar. Severino estava um verdadeiro farrapo e pôde apenas dizer com voz débil:

– Se vieram torturar-me também, saibam que não suportarei outras sessões de espancamentos e sofrimentos psicológicos. Os amigos de vocês já exauriram de mim tudo o que me restava. Por favor, me deixem em paz!

– Não temos amigos por estas bandas. Estamos aqui porque você nos chamou. – respondeu uma das três entidades que estavam diante dele.

– Não! Eu não os chamei. Desde que cheguei aqui não tenho visto e sentido outra coisa a não ser um grande sofrimento. Não tenho tido forças para chamar por ninguém. Aliás, quem são vocês?

Olharam-se e riram as três entidades! Tiveram certeza de que o ser que ali estava desconhecia o poder do pensamento. Os seres humanos, não importa se encarnados ou desencarnados, se matéria ou espírito, atraem para si aquilo que pensam consciente ou inconscientemente. Um daqueles seres, o que parecia liderar o grupo, falou a Severino:

– Somos servos do senhor destas bandas em que veio parar. E fomos chamados pela força dos seus pensamentos negativos carregados do desejo de ódio e vingança. Isso chamou a atenção do nosso chefe e estamos aqui para lhe buscar.

– E caso eu não queira ir, o que vocês vão fazer? E se eu quiser acompanhá-los, o que poderei ganhar?

– Se não quiser vir conosco, não o forçaremos. Afinal de contas a escolha é sua. Saiba, porém, que aqueles que o torturaram ainda não estão satisfeitos, pois o que você fez a eles foi mesmo muito ruim. O desejo de vingança aqui deste lado não se acaba tão facilmente. Por outro lado, se for da sua vontade nos a-companhar, você terá a chance de um dia concretizar esse desejo explícito em seus pensamentos e dar à Amélia e ao tal negro Batista o mesmo que você recebeu. Não são esses, afinal, os seus grandes desafetos?

Diante dessas opções, Severino viu-se sem saída e seguiu junto com aquelas três criaturas. Então, os três seres o libertaram das correntes, cercaram-no, seguraram-no e como num passe de mágica estavam já no “quartel general” do tal chefe. Severino, ao ver a criatura que comandava o local, não conseguiu esconder seu espanto. O ser era uma mistura horrenda: a cabeça lembrava a de um ser humano, assim como o tronco com os dois braços finalizados por mãos cujos dedos eram em forma de garras. No entanto, o corpo lembrava muito uma serpente negra listrada de roxo.

– Espantado com minha forma, caro Severino? – disse rindo a horrenda criatura. – Não fique as-sustado porque eu posso ter a forma que eu desejar ter, aquela que melhor me convém. Você aprenderá isso, caso queira, é claro.

– Desculpe-me, eu não quis ofendê-lo, senhor!

– Não se desculpe! Esse é o primeiro passo para o fracasso. Vamos ao que interessa. Meus asseclas já lhe explicaram como o encontramos e o que você pode ganhar caso aceite fazer parte de nossa legião.

– Sim, mas só não me explicaram o que devo fazer. Como me garantiram que poderei realizar meu desejo de vingança contra quem me fez cair, aceito fazer qualquer coisa que for preciso.

– Ótimo! Era tudo o que eu queria ouvir. Uma alma sedenta de ódio e vingança torna-se uma ó-tima aliada para espalhar cada vez mais os domínios das trevas. – disse rindo maleficamente o estranho ser. – Pode ir! Seus novos companheiros lhe ensinarão tudo o que precisa saber para ser um de meus servos. Só a-viso para que em hipótese alguma me traias, pois do contrário você experimentará uma dor como nunca imaginou e será reduzido a um verme. Agora vá.

Após essa conversa, Severino transformou-se por completo. Seu coração cheio de ódio e sequioso de vingança, mais a sua mente doentia impediam-no de ver os próprios erros. Assim, acabou sendo uma presa fácil para esses espíritos trevosos. Ele foi um aluno aplicadíssimo e logo aprendeu a influenciar negativamente os encarnados, a manipular elementos e energias para a prática de magia negra, aprendeu a volitar, a ocultar-se ou mostrar-se conforme fosse conveniente. Evoluiu tanto na legião, que ganhou o próprio grupo para chefiar e sua fama foi crescendo no submundo das trevas. Chegou a um ponto em que ele era requisitado tanto por alguns espíritos mais poderosos das trevas quanto por encarnados que buscavam prejudicar quem quer que fosse para atingir sórdidos, mórbidos e ambiciosos objetivos. E Severino não costumava rejeitar serviço, desde que a paga fosse boa.

Havia já mais de dois séculos que Severino desencarnara e começou a servir aos entes das trevas. Tempo que no mundo dos homens parece uma eternidade, mas que no plano espiritual é absolutamente ínfimo. Em todo esse tempo, Severino jamais se esqueceu de Amélia e do negro Batista. Movido pelo desejo de vingança e pelo ódio puro e cego, ele não via o poço quase sem fundo em que entrara. Severino estava fazendo mal uso de seu livre arbítrio e nem ao menos desconfiava do que estava por vir.

Cícero Carlos Lopes - 26 e 27/07/2017

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 28/07/2017
Código do texto: T6067363
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