O castigo

- Tenho medo de que sofra aí dentro, trancado, sem ar, sem luz, achando que desejo maltratá-lo... Ai, meu Deus, o que posso fazer? Quitéria está à porta e não pode vê-lo de jeito nenhum! Precisei guardá-lo, mas o fiz com todo carinho; ele há de entender, Deus queira que sim! – falava aparentemente sozinha Margarida; apenas aparentemente, pois na verdade conversava não só com Deus, mas também comigo - São Francisco de Assis, seu ilustre prisioneiro.

Após me prender no armário do quarto, voltou correndo para abrir a porta à amiga, desculpando-se pela demora.

Não estranhe, leitor, a peculiaridade deste breve relato. Não é todo dia que um santo se mete a escrever; todavia, diante dos notáveis acontecimentos, fui obrigado a fazê-lo. Modéstia à parte, sou o perfeito narrador, em virtude de minhas onisciência e ubiqüidade - embora me concentre mais onde me fazem homenagens, como nessa casa onde se desenrola a trama.

Explico desde já - antes que os leitores mais minuciosos me acusem - que uso tanto a primeira quanto a terceira pessoas para falar da imagem. Não é que eu seja essa estatueta que a protagonista encerrou no armário, mas sem dúvida ela contém algo meu, razão pela qual falar dela é no fundo falar de mim.

Continuemos, pois.

Margarida, em seguida, ofereceu café à amiga, que aceitou e ficou esperando, sentada no sofá, enquanto a outra ia à cozinha. No meio do caminho, contudo, a anfitriã tomou discretamente o rumo do seu quarto. Dirigiu-se ao armário, abriu cuidadosamente a porta e murmurou um pedido de perdão; e antes de fechá-la sacudiu-a umas três ou quatro vezes, para arejar meu cárcere.

Ao virar-se, deu de cara com Quitéria, que estava quieta na entrada do quarto. Margarida sorriu sem graça e justificou-se, dizendo que tinha dado uma passadinha rápida no quarto porque, se deixasse para depois, iria acabar se esquecendo de separar um vestido que havia prometido a uma de suas sobrinhas. Afetando espontaneidade ofereceu novamente o café.

- Ah, deve ser uma promessa importante mesmo - insistiu Quitéria. - Tive a impressão de ouvi-la dizer qualquer coisa sozinha, com a cabeça dentro do armário.
- Nada sério; falava sozinha sobre o tal vestido, coisa de gente solitária...

E foram juntas à cozinha. Começavam a bebericar o café, quando o telefone tocou. Margarida, apressada, atendeu; era sua prima Luísa, que queria lhe visitar logo mais. Ela ficou pálida, suas mãos tremeram. Queria dispensar a prima, mas não conseguiu, pois Quitéria estava ali a escutar tudo, impedindo-a portanto de inventar uma desculpa qualquer para frustrar a visita.

Margarida não queria que Quitéria encontrasse Luísa. Elas representavam as duas faces de sua vida que jamais deveriam ser postas frente a frente. A prima, que morava no interior, era beata e, como cresceram juntas, haviam sido companheiras de missa; Quitéria, por sua vez, era amiga recente, fruto de sua conversão - ainda não anunciada à família - à fé evangélica. E para agravar o que já estava bem complicado, minha estatueta fora presente da prima, que certamente estranharia o fato de não vê-la na cômoda da sala, onde sempre esteve.

Na verdade, Margarida me mantinha lá, na sala; só me retirava quando as novas amigas a visitavam. A recém-convertida não nos condenava a nós, santos; em sua intimidade, julgava a perseguição dos evangélicos uma espécie de nova inquisição, na qual éramos condenados sem direito de defesa.

Achava um exagero; porém, diante das novas companheiras de fé, nunca poderia expressar essa opinião. Desta forma, conciliando católicos e protestantes, conservava no lugar de sempre a minha imagem, sem, contudo, rogar-me pedidos (agora, só falava diretamente a Jesus e a Deus), escondendo-me, apesar da culpa, quando necessário.

Mas agora a paz estava em risco e a única possível vítima dessa guerra seria ela. Até ali tinha conduzido sem conflitos - andando habilmente na linha de fronteira - os dois lados antagônicos. O início da batalha, no entanto, parecia inevitável e não havia reza ou oração capaz de afastá-la; só um milagre.

E um milagre era algo difícil naquelas circunstâncias, tendo em vista que a guerra se travava justamente em virtude da fé. Manifestar-se-ia em sua sala a guerra entre o ontem e o hoje, entre sua parcela católica - porque no fundo ela nutria um grande afeto à missa, aos padres, ao vinho (ah, que saudade ela sentia do vinho!) - e sua parcela protestante.

Por um momento, tentou fazer Quitéria ir embora, mas não conseguiu – a amiga teimava em ficar mais um pouquinho (parecia curiosa para conhecer a tal prima que logo chegaria). Margarida já não sabia o que fazer; tampouco escutava o que lhe falava a outra. Olhava desolada para a cômoda vazia e imaginava o que diria à prima para justificar a ausência do santo. E ainda que inventasse o melhor dos motivos, Quitéria arregalaria os olhos diante da mentira e certamente falaria, como sempre, que “uma mulher de fé, de verdadeira fé, não possui santos, não adora estátuas!”. Seria um escândalo!

Fantasiava sua desgraça, quando a amiga, que até então falara sem parar, silenciou por um instante e pediu para usar o banheiro. Margarida consentiu e, ao se levantar para acompanhá-la, uma idéia lhe surgiu: “é um castigo! Sim, é um castigo que esse santo me inflige!”, dizia para si. “São Francisco, embora famoso por sua serenidade, prega-me uma peça. Padeço a vingança do santo preso no meu armário!”

Ensimesmada com a sua descoberta (veja só, atribuir-me atos de vingança!), aproveitou a ausência da amiga para ir ao armário; tirou-me de lá e pôs-se a pedir perdão e a rogar-me que a livrasse daquela embrulhada; no afã de se ver livre, prometeu missas, confissões e nunca, nunca mais me esconder onde quer que fosse!

O telefone tocou. Ela me guardou com todo cuidado e foi atender a ligação. Era a filha de Quitéria. Margarida passou à amiga o fone, assim que ela saiu do banheiro. Após desligar, Quitéria explicou à anfitriã, com certo orgulho, que precisava partir imediatamente, para tomar conta dos netos, pois a babá havia faltado e a filha possuía um compromisso inadiável.

“Melhor correr, querida! As crianças não podem ficar sozinhas!”, disse Margarida, com um sorriso que não se desfazia por nada, ao despachar a visita.

Livre da amiga, minha carcereira correu ao quarto, libertou-me e se ajoelhou.

Poderia eu aproveitar a ocasião e dizer que promovi o suposto milagre ou ficar quieto e deixar o leitor presumir que a livrei da confusão, mas faço questão de esclarecer que nada fiz: foi pura coincidência.

Margarida, em seguida, colocou-me na sala; sentou-se no sofá e, olhando-me, passou a pensar sobre sua fé. “Ora, está provado que o santo resolveu meu problema; ele é digno de confiança, pois atua com Deus com certeza. Será que não haveria uma maneira de conciliar as duas crenças?”, refletia. Desejava, na verdade, os santos e as novas amigas, o padre e o pastor, a missa e o culto; queria, pois, as duas vertentes do cristianismo.

“Como pode Cristo ter sido dividido assim, meu Deus?! O Pai é um só. Jesus é um só - apesar de serem quatro narrativas a lhe descreverem a vida (e dizem haver mais, as tais apócrifas!); como Deus permite todas essas interpretações? Católicos, protestantes, Kardecistas... Ah, Jesus, bom seria se aparecesse aqui para nos dizer qual é o caminho!”

“Mas é bem provável que se surgisse agora brotariam mais seitas: umas diriam que é Jesus que volta; outras, que só agora veio o Messias; outras, ainda, que não se trata do Homem, mas de seu precursor; e os céticos o tomariam como um farsante ou louco. E eu continuaria sem saber para que lado ir.”

Margarida já estava imaginando as batalhas que seriam geradas pela reaparição de Jesus, quando a campainha soou; era a prima.

Assim que entrou, Luísa fixou o olhar na minha imagem e se calou. Margarida percebeu a atenção que me foi dada, mas ficou quieta, esperando que a prima falasse. Porém o silêncio se arrastou e o olhar de Luísa lhe pareceu melancólico. “Será que ela percebeu algo errado na imagem?”, pensou Margarida.

“Um erro. Um terrível erro”, disse, por fim, Luísa, compungida. Margarida, nervosa, olhava assustada, sentindo-se culpada por tudo que havia ocorrido e pela sua indecisão. “Será que ela descobriu?”, martirizava-se.

“Um grave erro que precisa ser corrigido; por isso estou aqui. E o erro está nessa imagem, nesse santo!”, continuou a prima.

Margarida havia baixado os olhos, que estavam cheios d’água. Luísa concluiu:
- Sei que lhe dei esse santo, mas isso foi no passado, quando eu ainda não conhecia a verdade. Mas agora tudo mudou: converti-me, tornei-me evangélica. Gostaria que você viesse comigo a um culto: me faz tão bem! Se você gostar e se converter, vai tirar esse santo daí, pois não é certo adorar estatuetas.

Caro leitor, não cai bem a um santo a autocomiseração; não posso deixar de dizer, contudo, que para quem já esteve sob holofotes é triste demais a escuridão dos armários.