Manuel cai do céu

Manuelzinho trepado na escada de pintor, na área de serviço. O dono do apartamento chegando de repente, Manuelzinho gagueja: o senhor me desculpa, eu assim sem camisa, mas colocar azulejo dá um calorão! E essa cozinha, o senhor me desculpa, mas como é abafada!

A medalhinha de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, pendendo do pescoço, o peito cabeludo, a medalhinha suja de massa.

- Que isso, seu Manuel, problema nenhum ficar sem camisa.

Manuelzinho nem ouve, desce da escada, cumprimentar o dono agora, tem moça na sala? O senhor me desculpa, eu não sabia que o senhor vinha mais cedo.

A massa no chão da cozinha. Porcariada, até quando vai durar isso? Manoelzinho tem vindo toda noite, depois do expediente. Tira o terno preto suado, uniforme de contínuo - sente-se o cheiro nos sovacos - e vai naquela lerdeza até nove e meia, dez da noite. É bico, biscate... Não dá pra viver só do salário de funcionário público. Mas o jeito é arrumar gente assim, contratar um cabra do ofício não havia grana que chegasse. Do meu lado também a coisa tá preta. Só é preciso paciência, valha-me Deus, que o baixinho é lerdo, será que não acaba esta semana?

Não senhor, continua Manuelzinho, não dá pra acabar o serviço esta semana, mas, com fé em Deus, domingo que vem lhe entrego, o senhor fique tranquilo. For preciso, passo sábado e domingo na lida, mas dá pro senhor mudar na segunda, pode escrever. Mas desculpa a camisa, é a da batalha lá no ministério, só tenho essa, não dava pra respingar de massa, o senhor entende, não foi falta de consideração ficar sem camisa, eu sei que o senhor tem irmã, ela podia chegar de repente... Ela não vem hoje, vem?

Manuelzinho tem chegado em sua casa todo dia meia-noite, meia noite e meia, depois do biscate na Asa Norte. Toma dois ônibus, um da Asa Norte até a Rodoviária, outro até em casa, a Ceilândia é longe e tem fama ruim, olha um homem me seguindo, do ponto do ônibus até na esquina, Clara, tu não acredita?

Clara sonha acordada. No céu do seu sonho, um cabo do Corpo de Bombeiros. Alvíssimos dentes naturais, ginga carioca, esverdeados os olhos de mulato sangue quente, cabelo duro cortado à militar, alto e forte, sempre a farda passadinha, vizinho dela, casado, cheio das amabilidades... Comadre, bom-dia, comadre, boa-tarde, comadre praqui, comadre prali, tem vindo muito em casa quando Mané não está, a não sei quê, comadre, comadre... Ao que eu saiba, Mané não lhe deu jamais filho pra batizar e nem vai poder mais, já me ligaram as tripas no Inamps. A não ser que arrume fora... Não, pobre diabo do Mané, não tem coragem dessas coisas. Pobre, baixinho e feio, onde vai arranjar outra mulher, que ainda queira ter filho pra passar fome?

Manuelzinho no restaurante do ministério. Na fila da feijoada, leva um tapa na cabeça, por trás. Olhou, quem foi? Todo mundo sério, só aquele fio de baba, resto de risada no canto da boca do Marçal. Foi ele, o magrelo. Outro tapa na nuca, enquanto olhava para trás. Agora foi alguém da frente. E ainda lhe passam a mão na bunda. Manuelzinho fica possesso, envermelha o rosto. Os outros fazem é rir mais ainda. O que é que ele vai fazer? Todo mundo no mundo tem mais de um metro e meio, só Manuelzinho é pequenino assim, inda mais no meio da fila... Finalmente o bandejão, sua vez. Bota mais um bife, ô Paraíba, capricha no arroz, ô Bigorna.

Antes de comer, bandeja assentada na mesa, olhar em volta, ver se alguém vai deixar alguma coisa no prato. Pão e bife seus objetivos principais. O saquinho de plástico se enchendo (posso pegar?) com o resto dos outros. Tudo engordurado, tudo misturado, mas pra que luxo, se tudo embola no bucho? Em casa, amanhã no almoço, vai ser festa, aumentado um tiquinho o prato dos miúdos.

De volta a sua bandeja, já meio fria, um besouro cascudo e um verme molenga passeiam no agrião. De vez em quando acontece, faz parte. Põe de lado a verdura, come o resto de boca boa, pobre não tem esses luxos de vômito ou coisa parecida. Isso, aqui entre nós, pois do lado de lá, na outra ala, no restaurante dos grã-finos, tem muito estômago delicado, isso tem. Fosse com um embaixador, o povo todo da cozinha ia mandado embora, se ia...

Clara acorda. Peito caído de quatro filhos e de seis anos de casamento. Atrás das rugas temporãs, como que esquecido, um riso de criança. A chinela de dedos, toc-toc, vem abrir a porta, quem é? Mané, quase meia noite com bafo de cachaça. Seu fidaputa, tava na zona? Mané entra de vez, tô com medo, um cara me seguindo, do ponto do ônibus até na esquina, Clara, tu não acredita?

A geladeira cambeta, botaram um calço de madeira. A lâmpada interna queimada, tem muito espaço sobrando e muito dinheiro faltando pra botar comida e consertar os estragos. Olha, filha, ele fala da cozinha, amanhã tem bife pras crianças. Corta em dois cada um, te sobra o maior, tu tá dando de mamar.

- Por que é que demorou? Aqui a mão suja, mulher, ele mostra os calos e as queimaduras de cimento. Clara, tu não acredita? É de massa, aquele biscate na Asa Norte, colocando azulejos na cozinha do apartamento do sô Zé, colega de serviço, tu mesma diz que dinheiro toda hora é bom.

- E essa cachaça? Deixa ver o bolso? Amanhã tinha que levar a bebê no médico do ministério, cadê o dinheiro da passagem? Perdeu ou gastou na pinga? Enquanto ele escuta da cozinha as lamúrias da mulher, come a comida fria, arroz com angu, que nem coragem tem de abrir o gás pra requentar a comida.

Clara quase dormindo. Cheirosa de banho, um vestido largo, os peitos soltos, pesados de leite, mas a pequena dana a chorar. Mané enfia a cabeça debaixo do travesseiro, desiste do romancezinho que nem chegou a começar. Clara resmunga, se levanta, vai trocar a menina toda suja de cocô. Diarreia, sim, senhor, tô com medo, Mané, tão falando tanto em gasenterite... Mané, tu nunca liga pro que eu falo. Já tá dormindo? Já tá é roncando, o corno. Nem banho tomou o porco. E nina a nenê, no que, de quebra, nina Mané também, que amanhã é outro dia.

No outro dia, depois de servir o café, o chefe o chama:

- Seu Manuel, hoje é outro dia. Tudo vai melhorar. Eu acho que a sua viagem sai, o senhor vai ganhar em dólares, seu Manuel. Já pensou o que é isso? Vai poder acertar sua vida, já pensou quanta coisa pode comprar?

- Sei, mas a mulher quer é aumentar o barraco

- Pois isso é ótimo, sinal de que tem cabeça. Quando voltar, vai ver o mundo diferente. Há cinco anos que espera? Mas quem espera sempre alcança, o senhor não é religioso? Agora a viagem sai, tenha fé, que é isso de pensar que sua mulher o despreza? Todas as vezes que ela vem ao médico, ela passa por aqui e sempre fala bem do senhor. Pois bem, seu pedido vai ser examinado com o máximo de carinho e tenho certeza de que esta administração reconhecerá tudo o que tem feito por nós. Afinal de contas, todo trabalho é digno, se é honesto. Cada qual tem sua função na sociedade. Veja as formigas, as abelhas, exemplo de cooperação em prol da comunidade. Agora, por favor, troque-me o garrafão d’água mineral, seu chefe está com uma sede horrível, me traga um cafezinho e me faça dez cópias deste ofício aqui. Urgente. Como eu ia dizendo sobre as abelhas... E, enquanto Manuelzinho sai para cumprir os mandados, o chefe acende seu cachimbo de fumo perfumado e, olhando o vazio, se perde da miséria humana.

Marçal entra com uma bandeja de café e uma jarra de água.

-Marçal, deixa isso aí e vai ajudar Manuelzinho, que o garrafão de água mineral é maior que ele. E desata numa gargalhada exagerada, que Marçal acompanha, garganta sempre afinada com o humor e o tom do chefe.

Minutos depois, Manuelzinho volta com o garrafão no carrinho. Marçal o ajuda, o garrafão é finalmente acomodado no bebedouro. Mas se não fosse Marçal ajudar... Manuelzinho não pesa nem quarenta e cinco quilos, o garrafão é quase isso. Já aconteceu de deixar cair, o garrafão quebrou e a água se esparramou pela sala toda, molhando os tapetes.

- Seu Manuel, pois bem, eu lhe dou a viagem, mas antes me desconte este cheque.

- Pois não, doutor, hoje é dia de pagamento, claro que o senhor não pode enfrentar fila no banco, isso é pra mim mesmo, está um horror, hoje em dia, também quem é que não está com a corda no pescoço, seu doutor?

Clara acorda. Mané cheio dos pacotes, chegando em casa às onze e meia da noite. Esfrega os olhos, com o bulício acorda a pequena também, pois dormem na mesma cama, e ela é ativa que só o cão. Que coisa, todo dia você me estorvando o sono. Mas se cala, não acredita no que vê, Mané sorridente mostrando os presentes.

- Um vestidinho pra você, de alcinhas como nos tempos do noivado em Teresina, se lembra? E um sapatinho de lã pra guria menor, aquele trenzinho que apita para o Dunga ... E laranjas e maçãs e peras e tomates e um abacate inteiro e uma fatia enorme de melancia, Mané vai acordar os outros na sala, Mané de tão feliz acha que está no céu. E dois quilos de filé mignon. Saiu ajuda de custo, filha, e ainda recebi o daquele biscate da Asa Norte, viajo daqui a uma semana... Clara nem sabe o que dizer, ri de leve e quase pergunta se dá, agora, pra comprar outra chinela de dedos.

Clara sonha acordada. Um dia seria o dia de estrear o vestido novo que Mané lhe deu. De alcinhas, sim, bom para o calor de Teresina, parece aquele que tinha nos tempos de noivado, se lembra? Ela e Mané miudinhos, vez em quando tinham de mostrar documento para assistir filme impróprio para menores. Mané cismando de bancar o macho, fazer bonito pra ela, se lembra? ... Engrossando com o porteiro do cinema, logo ele, coitadinho, esse tampinha... Quando voltar do estrangeiro vai vir com o bolso cheio de dólares, acho que vou pedir um sapato também, esta chinela de dedos não atura mais um mês... Claro, o barraco precisa aumentar, a gente dormindo mais os menorzinhos no quarto e os dois maiores no chão, na sala, isso não dá pra aguentar mais tempo... Ou será que dá? A gente já até se acostumou... Mas será que ele vai voltar tão rico assim? Deve voltar, porque disse que, depois, não vai precisar nunca mais de levar restos das bandejas do restaurante do ministério pra casa, a fim de inteirar a comida dos meninos.

Dias depois, Manuelzinho no céu pela primeira vez. O avião deixa bem embaixo as asas e eixos de Brasília. O lago Paranoá e os palácios, casas zero quarto no Gama e mansões na Península dos Ministros. Manuelzinho toma suco de laranja e come um sanduíche insosso, que não enche barriga. A aeromoça já deu bronca porque ele não afivelou o cinto, ele nem sabia que tinha, como é que faz? Pra que serve?

A moça do ar ensina, assim meio desconfiada, será que esse anãozinho é burro assim mesmo ou é tarado? O perfume do cabelo, quando ela se abaixa para ajudá-lo com o cinto, dá um frio na suã de Manuelzinho, a primeira mulher de revista que ele vê de tão perto assim.

Manuelzinho desce do céu de novo, depois da escala em Guarulhos, aterrissa em Porto Alegre. Do aeroporto pra rodoviária. Pergunta a uns transeuntes:

- Aqui é que pega o ônibus pro Uruguai? Ali é o ônibus do Uruguai? Aquele não, quem sabe aquele, aquele ali com um monte de gente falando enrolado, só pode ser aquele. O louro alto, de bigode ruivo, que está num grupo de jovens, riu e disse é, é aquele sim.

- Tu vai pro Uruguai? Pois, então, é aquele sim, tchê.

Manuelzinho no ônibus. No céu, as estrelas frias do inverno do Rio Grande espiando pelas janelas. Uma mulher loura, alta, enorme, linda, exuberante, dormindo ao lado do mulato baixinho, nos pés um par de sapatos altos que ele não é doido de dar a Clara, que isso, acaba ela ficando mais alta que eu... Quem sabe, um sapato mais baixo... A loura se remexendo no sono, vontade de se esfregar nela, mas e se alguém flagrar? Se ela acordar... Daí, se Clara soubesse, ia dar uma confusão do capeta. Manuelzinho vai ao banheiro e se acalma, para conseguir dormir ao lado da tentação.

De manhã, o ônibus para na rodoviária. Continua a saga. Manuelzinho sai e vai logo perguntando onde era o consulado. Consulado? Tem um em Rivera, depois de Livramento, mas é bem longe daqui, na fronteira com o Uruguai. Ninguém sabe, ninguém viu. Mas aqui não é o Uruguai? O rapaz de Porto Alegre fez Mané parar no interior do Rio Grande. Ninguém sabe do que se trata, pensam que é maluco. Resolve voltar a Porto Alegre, como é que faz? O jeito é pedir informação de novo, mas dizem que aqui não gostam de gente morena, é verdade?

Manuelzinho descendo do céu, de volta à Ceilândia, fracassado. Fez tudo o que pôde pra chegar ao destino, mas não deu. E agora? Meu Deus, o Marçal vai encarnar em mim, porque eu não achei o consulado. Mas Deus sabe que não foi culpa minha, não me explicaram direito, o povo lá fala tão diferente, foi informação errada, não foi culpa minha. O avião aterrissou, Manuelzinho desceu, tomou um táxi, resto dos dólares, até a Ceilândia, na mala nova um espremedor de frutas e uma cafeteira elétrica para a casa, brinquedos novos pros meninos e uma água de cheiro para Clara, essa com tanta mania de perfume e de se banhar.

No ministério, o chefe atendeu-o carrancudo. Mau sinal.

- Seu Manuel, o senhor voltou sem ter achado o consulado? O senhor não assumiu seu posto? Tem telegrama aqui dizendo que não, e, agora seu prazo acabou. Incrível, a primeira vez que acontece na história desta casa. O senhor devia ter insistido, pedisse mais informação, onde já se viu procurar consulado brasileiro no interior do Rio Grande do Sul? E agora, o que vou dizer do meu recomendado, meu afilhado, meu funcionário? Agora o senhor tem de devolver todo o dinheiro das passagens de avião, ida e volta, e a ajuda de custo. Gastou? Como gastou? Comprou coisas pra família, um vestido pra mulher, brinquedos pros meninos... ?

- Vou ver se arrumo emprestado.

Dias depois, sem empréstimo e atordoado por todos, volta a falar com o chefe:

- Pois seu Manuel, então, não há solução. O senhor tem que achar um jeito, senão será processado... Dia quinze é o último dia, é o prazo que lhe damos. Depois, instauramos um processo administrativo e o senhor vai perder o emprego. Isso não é brincadeira, seu Manuel, é dinheiro público, nós temos que zelar pela coisa pública... Passe bem, seu Manuel. Só até o dia quinze, ouviu?

Manuelzinho sonhando. Manuelzinho espremido. Feras e homens. Clara quer bater nele com o salto alto da loura do ônibus, ciúmes, que sei eu, a aeromoça não deixa, ah, safado, pois arrumou outra, o embaixador diz que ele carregará água mineral e encherá bebedouros pelo resto da vida, ele numa prisão, o embaixador de fora das grades se rindo, ele corre, tropeça, deixa cair a bandeja de café e agora? O carpete sujo, Marçal escancara a boca banguela e morre de rir, o babão, o embaixador se abraça com Marçal, estão os dois perdendo o fôlego, Clara bate na aeromoça com o salto alto da loura do ônibus, a filha caçula morrendo de diarreia, agora só Deus, seu Manuel, o advogado mandando cartas, todo mundo falando enrolado, Manuelzinho se encolhe, Teresina é o lugar mais quente do mundo, e Clara, antes de andar nua pelo mundo, usava vestido de alcinhas, Melo, sim, acho que era esse o nome da cidade, dizem que cai até neve lá, mas não consegui encontrá-la, Clara, com pouco. já arruma outro, meus dólares acabaram, pois o garrafão de água mineral pesa mais que ele cem vezes, ô, Marçal, vem me dar a mão, será que a praga do embaixador vai pegar, fosse em Teresina, o pai, a mãe, os irmãos, toda a parentada ia ajudar, aqui as feras todas são contra ele, Clara, a loura do ônibus e a aeromoça lutando com unhas e dentes, todas rasgadas, descabeladas, olha o coxão da loura aparecendo, ele interrogado, cadê o dinheiro, as notas verdes, os cheques de viagem, tenho mais nada, doutor, seu Delegado, o senhor me desculpa, e o delegado é enorme que nem o embaixador, tem os ombros largos, os cabelos lisos, os olhos azuis, a voz grossa, é ali sua cela, seu Manuel, o senhor me desculpa, mas eu não fiz nada, o embaixador está que se ri, sentado na sala de espera, vais pagar todos os meus dólares, mulatinho sem vergonha, seu Manuel, as abelhas, a coisa pública, Clara nua na cela, a loura bate agora é nele com os saltos, ela se uniu a Clara e à aeromoça, todas lhe batem, batem, batem, depois vêm sujigando, sujigando, pegando-o pela orelha... Mané, acorda! Já são seis horas, tu tá atrasado, vê se toma um banho, seu porco, que ontem tu dormiu que era uma catinga só.

Manuelzinho desce do ônibus do ministério, mas em vez de ir à cozinha para preparar o café, sobe as escadas e vai pro alto do mundo, lá aonde tem de chegar antes do dia quinze, o último prazo. As vozes o direcionam. Nada de elevador, vai subindo e pensando. Lá, pelo menos, eles não te apanharão, seu Manuel, as vozes amigas que o vêm ajudando nos últimos dias recomeçaram. O mundo tem oito andares mais um terraço, e o chão fica longe, forrado de carros e espelhos d’água brilhando ao sol e de calçadas de concreto e asfalto. Quando chega ao terraço, as vozes começam a mostrar a Praça dos Três Poderes, a enorme bandeira do Brasil lhe dando adeus. Se Manuelzinho olha em volta, vê o resto do mundo, e palácios e mais palácios, lagos, flores e mais espelhos d'água, palmeiras, quaresmeiras e repuxos. Do alto, o mundo até parece bonito, mas desce lá pra ver...

Manuelzinho está no alto do mundo. Quer subir mais, chegar perto do céu de novo, como os aviões. As vozes amigas cantam em coro, acalmando-o. Ele está fugindo do solo, de medo das feras, de medo das bandejas de café, dos copos que se quebram, dos carpetes encardidos, dos elefânticos garrafões de água mineral, da ira de Clara, dos sapatos de salto alto, das filas de banco, das máquinas xerox, das pessoas que falam enrolado e dão informação errada, de homens de ombros largos que podem tudo, da primeira viagem de avião, as aeromoças cheirando a batom e ruge, os cabelos tão brilhantes, as sainhas apertadas, por que não repetir tudo, coragem, as asas soltas, pode planar até de bicicleta, claro, se pode andar pelo céu, bobagem, não cai não, planar, levar nesse passeio as malas cheias de dinheiro verde, abri-las todas e chover dólares em cima da poeira da Ceilândia, aquele Deus nos acuda, isso, planar, perigo não, todos se atracando pelo dinheiro como a criançada atrás de pirulito...

Tarde azul no Campo da Esperança. Os colegas cochichando, lembrando histórias do falecido. Marçal foi o primeiro que viu o corpo e o cobriu com jornal, até a chegada da polícia. Clara estreando o vestido de alcinhas, o calor lembrando Teresina. Ela silenciosa como se abobada, no pé as velhas chinelas de dedos, no ouvido o último convite do cabo dos bombeiros.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 07/12/2017
Reeditado em 08/12/2017
Código do texto: T6192282
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