MARIDO DE ALUGUEL 

“Homem só quer curtir a vida. Só aproveitar das oportunidades para usar a gente.” Justificava com palavras assim o seu desânimo e fechamento para novos relacionamentos. A vida a apresentar surpresas e foi numa dessas que aconteceu o inesperado encontro. O príncipe encantado chegou em um velório. A falecida era a mãe do seu chefe na Repartição Pública. Mesmo odiando cemitérios e tudo que dissesse respeito à morte, a sua ausência iria dar o que falar e, desse jeito, fez o sacrifício de cumprir a obrigação social.

Escapou da sala abafada, da mistura do cheiro enjoativo das flores com a cera derretida das velas. Foi se assentar em um banco no jardim em frente. Ele chegou, pediu licença e se ajeitou do seu lado. Bancos em volta tomados, o que fez com que ela não o achasse chato e impertinente. Regulavam idade e numa avaliação rápida não viu nada que a agradasse. Um autêntico BCG, diagnosticou, que era como nomeava os baixos, carecas e gordinhos.

Fixou o olhar num gato estirado na grama mais adiante, com o objetivo de inibir qualquer tentativa de aproximação. A tática não funcionou. Indagou se era parente da falecida. Para afastar novas perguntas, o “não” se restringiu a um movimento firme de cabeça. Pela segunda vez a estratégia falhou. “Sou funcionário da filha da defunta”, ele lhe disse. Não pôde deixar de rir da coincidência. “Eu também sou chefiada pelo irmão da morta”. “É mesmo?” Ele respondeu sem esconder a surpresa. “Parece que os filhos dela têm todos a vocação para liderar”, complementou. Conversavam animados e já nem mais se lembrava do gato.

Quando se deram conta, o féretro saía da capela. Deixaram que a procissão passasse e seguiram em passos lentos, para ter alguma liberdade de manterem a conversa, agora através de uns cochichos. Terminada a solenidade, despediram-se trocando telefones.

Mesmo sem conseguir explicar esse tipo de pressentimento, a verdade é que achava que ele não ligaria e não seria ela que daria mole de telefonar. Nem bem tinham entrado no escritório, quando chegou a mensagem: “há mortes que vêm para bem.” Riu sozinha, alegre por ter se enganado. A resposta que deu foi uma carinha de sorriso. Mais meia hora e ele lhe perguntava se poderiam almoçar no dia seguinte. Disse que não, dando duro, mas que aceitava um café ao final do expediente. Foi trabalhar mais bonita. Final do dia, se encontraram e o café, virou chope e esse se transformou em uma garrafa de vinho no apartamento dela. A quase definitiva desistência de um casório, estava rolando por água abaixo. A esperança se afirmava intensa.

O namoro aconteceu rápido, pois que aos quarenta e tantos, não se pode, e muito menos se deve, perder tempo. Adolfo, dois meses depois, tinha juntado as suas coisas e morava com Lídia. Encantamento era pouco. Os dois pombinhos pisavam nuvens. Impressionava-se, refletia consigo mesma, por ter achado o homem perfeito. “O único sobre a face da terra”, se disse em voz alta.

Entre as suas bagagens, sobressaia-se a mala de couro pesadíssima com as ferramentas. Em pouco tempo os pingos irritantes da pia da cozinha, a lâmpada queimada da varanda, a fechadura emperrada do banheiro, a cerâmica solta da copa, dentre um tanto de várias outras coisas que a incomodavam, estavam resolvidos. Comprou umas latas de tinta, pinceis e demais apetrechos. Acordava cedo e todo dia pintava um pedacinho do apartamento. Em pouco tempo não havia mais nada a fazer por lá. Tudo consertado, pintado, bonito, brilhando.

O grupo de amigas solteiras reclamava das ausências de Lídia: “casou, nos causa inveja e ainda mais essa, agora nos esnoba”, uma disse na brincadeira. Poucos meses de casados e Adolfo, pela primeira vez iria deixá-la um final de semana. Viagem para visitar a mãe adoentada no interior do estado. Fez menção de ir junto, afinal queria bastante conhecer a sogra e a nova família. Ele arrumou umas desculpas, pediu que aguardasse um pouco eis que desejava que ela fosse para fazerem festa e não em momento pesado de doenças. Era um bom argumento e foram aceitos.

Teve a ideia de aproveitar o sábado agendando um chá para reunir a turma e assim se redimir. As amigas que sempre se frequentavam e que depois de todo o acontecido não mais visitaram Lídia, estavam deslumbradas com as mudanças. “Uau, apartamento de casada é outra coisa. Vejam, tudo funciona, nada a ser consertado por aqui.” Foi o que disse Tatiana. “E isto sem contar que as paredes e o teto estão pintados.” Complementou Soraya. “Ah, Adolfo é tudo de bom. Não tem um aspecto do casamento do qual ele descuide. A amiguinha aqui de vocês, podem ter certeza, está muito bem cuidada”. “Oba, que eu preciso de umas duas horas dele lá em casa. Posso te pedir um empréstimo do maridão?” Agora era Antônia que falava em tom de súplica. Davam gargalhadas e Lídia não perdeu a pose. “Dependerá do objetivo de vocês, não é? Se for para arrumar algo, consertar coisas quebradas, realizar algum acerto, podem considerar que ele está à disposição. Usem, mas não abusem, entenderam bem?” Todas alvoroçadas, levantavam a mão gritando ao mesmo tempo: “Eu primeiro. Eu primeiro!”

Trocar duas lâmpadas queimadas no apartamento de Magali, vacinar o cachorro e acertar a descarga desregulada do banheiro no quarto de empregada de Tatiana, desmontar a cama e o armário da filha de Janaína, para que o quarto pudesse se transformar em uma sala de televisão... O que não iria faltar para o pobre e inocente Adolfo, que nem sabia de nada daquilo que Lídia e suas companheiras programavam, era trabalho.

Ao retornar e saber de tudo, não reclamou de nada. Demonstrou mesmo que gostaria de servir às amigas do seu amor. Lídia, claro que não ia deixar Adolfo ir sozinho. Dava um jeito de sempre estar com o marido durante as visitas de trabalho. “Estou aqui não porque sinta algum tipo de ciúmes, ou porque quero vigiar meu esposo”, fazia questão de dizer. Um dia Letícia pediu o apoio de Adolfo para fazer algo, que nem explicou direito, mas que ela entendeu que tinha a ver com as tubulações da máquina de lavar roupas. Tinha combinado com o filho da defunta de fechar um relatório e estava atrasada. Foi assim que, pela primeira vez, emprestou o seu marido sem que se fizesse presente.

A partir de então, Adolfo sentiu que tinha liberdade para estar com as amigas sozinho. Fama se faz depressa e, ninguém sabe quem foi que deu o telefone, mas o que se constatou foi que tinha até gente que nem era do grupo, ligando diretamente para o marido de Lídia, a lhe pedir socorro. Soraya, numa visita dele para arrumar uma tomada que não estava funcionando, choramingou que seu apartamento nunca tinha sido pintado. “Não seja por isto”, ele se prontificou. Escolheu as cores e nem uma semana havia se passado, para as latas de tinta e as ferramentas chegarem ao apartamento. Funcionário antigo, tinha liberdades na repartição, começou a sair mais cedo, pelo menos três vezes por semana. para pintar o apartamento de Soraya. No receio de que Lídia desaprovasse aquela ajuda maior, optou por não lhe dizer nada por enquanto. A dona, na sua festa de aniversário, iria surpreender a todas com a novidade.

Ao contrário de Lídia que só assistia aos consertos, Soraya era dessas que metia a mão na massa. Trabalhava com Adolfo o tempo todo. Suas mãos, delicadas e cuidadosas, eram perfeitas para, com os pinceis mais finos, realizar o acabamento junto ao rodapé, teto e molduras de portas e janelas. Conversavam muito, riam demais da conta e nesses papos foram encontrando pontos interessantes em comum. O trabalho ficou um brinco e ela lhe pediu só mais uma coisinha: se ele poderia montar a cama nova que tinha comprado. Era imensa e Adolfo, durante a instalação, meio que na ironia, meio que na gozação, lhe perguntou se estava para casar, já que não tinha visto movimento nenhum de homem por lá. Soraya, assumindo o clima da brincadeira, numa sonora gargalhada, lhe respondeu que tinha movimento de homem na casa, mas que a cama era só para ela mesma e que “marido bom só havia um e esse já tinha dona”.

Fez-se silêncio por uns instantes. Ele parafusando e ela o auxiliando segurando as madeiras. Quando a conversa voltou, era para tratar da festa de aniversário no próximo final de semana. Adolfo, disponibilizou-se e a oferta foi de imediato aceita, para comprar e cuidar das bebidas. “Serviço encerrado, só faltam lençóis e travesseiros sobre a cama”, ele falou. “E a colcha também, é claro”, ela completou. Deixando de rir e com olhares intensos um para o outro, eles se assentaram.

Um dia antes do aniversário de Soraya, Adolfo chegou em casa mais cedo, ajuntou as roupas, encheu as malas com as suas tralhas, apanhou a pesadíssima bolsa de ferramentas e, antes de partir para o novo lar, deixou o bilhete pedindo desculpas e se justificando, pois que no coração não se manda: estava apaixonado. Aguardavam o voo para a lua de mel e Soraya tentou, sem conseguir, pois que já estava excluída, enviar mensagem se despedindo das amigas, tentando se explicar e pedindo desculpas pelo cancelamento da festa e, na maior cara de pau, até por mais alguma coisa que pudesse ter feito.

O desespero se transformou em ódio, esse, em mais um tempo, virou mágoa, até que um dia Lídia soube que a mala de ferramentas ganhara novo destino. Sentiu-se vingada e constatou que sempre tinha tido razão: “que homem só quer curtir a vida. Só aproveitar das oportunidades para usar a gente.” Fechou-se, diz que em definitivo, para novos relacionamentos.