Sinestesia

Ivan acordou depois do meio dia, como de costume. Tinha um gosto sórdido na boca, e os cabelos encharcados de suor. Dormira embriagado, e percebeu que seu ventilador jazia no chão, quebrado. Não lembrava do acontecido, mas entendeu o motivo do calor sufocante que o acordou de seu sono bêbado. Sentou-se na cama e procurou sem sucesso o celular entre os lençóis e as outras tantas coisas que espalhadas. Pensou que poderia tê-lo perdido em algum lugar ou deixado no carro, mas sua ressaca não o deixou ir muito longe nessas considerações. Levantou-se e largou a roupa que estava vestido - A mesma da noite anterior - Num cesto de roupa suja, completamente cheio, e foi até o banheiro.

Abriu o chuveiro e deixou a água lhe lavar a ressaca. Escovou os dentes ainda no box e depois largou a escova no pequeno armário com espelho pendurado na parede. Não se deu ao trabalho de se enxugar ou de pentear os cabelos e começou a procurar o celular na sala. Achou-o, dentro da geladeira, junto com as chaves do carro.

Com o celular na mão, sentou-se no chão e começou a repassar na mente os passos da noite anterior. Sabia que tinha ganhado algum dinheiro numa mesa de poker, e que tinha decidido gastar os ganhos com seus amigos, em um bar. As memórias da noitada foram se arranjando em sua cabeça e ele praticamente pôde sentir o gosto das lembranças em sua boca.

Ivan era sinestésico. Seus sentidos se misturavam com frequência. Algumas de suas experiências visuais se traduziam em estímulos ao seu paladar.

Ivan gostava de dizer que podia sentir o gosto de uma mulher, antes mesmo de tê-la beijado a boca ou o corpo. Dizia ter até um sentido divinatório... Sentia o gosto das cartas antes que elas chegassem a sua mão nos jogos de Poker... As pessoas ouviam e riam, achando que era pura bravata, ou papo de doido.

Resolveu deixar as lembranças da noite anterior de lado e procurou algo para comer. Fritou dois ovos, colocou dentro de um pão, comeu rapidamente e depois esvaziou uma garrafa de água inteira, tal a sua sede.

Sentia-se um pouco mais humano depois do desjejum, mas a ressaca ainda continuava firme.

Quase arrependeu dos excessos que vinha cometendo. A boemia não ajudava em sua carreira de jogador profissional, e como havia largado o emprego, dependia dos seus ganhos pra sustentar seu estilo de vida.

Ivan ia jogar uma mesa profissional nesse dia, às 22h. Tinha menos de 10 horas para se recompor.

Voltou ao quarto e tentou pôr o ventilador para funcionar. Depois de muito tempo conseguiu que o aparelho começasse a girar. Primeiro bastante capenga, e depois quase como estava antes da queda.

Deu-se por satisfeito e se deitou entre os lençóis espalhados.

Botou o despertador para as 20h e fechou os olhos.

Sentiu um gosto estranho na boca, mas dessa vez era só ansiedade.

2

Ela veio até Ivan e começou a cavalgá-lo. Primeiro sem muito ritmo, mas logo começou um galope frenético. Tudo isso sem tirar os olhos dos seus.

Ivan segurou em sua cintura e a puxou com força contra si mesmo. Ela estava quase lá... Dava pra perceber. Então, fechou os olhos e mordeu os lábios. Nesse momento, ela levou as mãos ao seu pescoço e o apertou. Ele começou a sufocar e espernear na cama. A mulher começou a crescer e ele já não reconhecia seu rosto. Mas quem era ela mesmo? Ele não lembrava. Só tinha uma sensação de familiaridade esquisita. Quase como se a conhecesse de toda uma vida. Ele já não conseguia respirar e se resignou diante da morte certa. Nunca tinha sido de espernear diante de fatalidades. Não iria ser agora que ia começar.

Quando ele abriu os olhos, estava novamente sozinho em seu quarto, desesperado por um pouco de ar. O despertador tocava alucinado ao seu lado, como se anunciasse o fim do mundo.

Alcançou o aparelho e apertou um botão que o silenciou. Levou as mãos a cabeça, e concluiu que não tinha tempo para pensar sobre o significado do sonho que tinha acabado de ter.

Tomou banho e se vestiu da melhor maneira que pode, pegou as chaves do carro e se pôs a caminho do local em que o jogo havia sido marcado, um hotel na zona sul. Parou num fast food e pediu o hambúrguer mais barato que havia e uma água com gás. Comeu ao volante, e quando chegou ao seu destino, estava todo salpicado de farelos de pão.

Estacionou o carro numa vaga solitária, entre tantos outros carros muito mais caros do que o seu, e limpou-se da sujeira displicentemente.

Foi andando até a recepção do hotel e a atendente o cumprimentou.

- Boa noite, senhor.

- Boa noite. Estou aqui pelo Torneio.

- Torneio? Não entendo senhor.

- Torneio de poker, moça.

Ela parecia confusa. Talvez ele tivesse entrado no hotel errado... Pensou.

Mas um outro atendente que estava ao lado da primeira logo respondeu com uma voz afeminada.

- Qual o nome do senhor?

- Ivan Moraes

Ele olhou rapidamente numa lista impressa ao seu lado e em seguida falou.

- Documento de identidade, por favor?

Ivan entregou o documento e o atendente verificou rapidamente que estava tudo certo.

- O torneio vai se realizar no decimo terceiro andar. Apartamento 1003. Tenha uma boa noite.

Ivan pegou a identidade de volta e se dirigiu para o elevador. Não havia mais ninguém no saguão do hotel e Ivan se perguntou quantas pessoas atenderiam àquele evento.

Nunca havia participado de uma mesa de poker nesse lado da cidade. Muito menos com pessoas desse nível econômico. Só pra participar do jogo ele teve que entrar com R$ 10.000, o que era bem acima do que ele estava acostumado a investir num jogo. Apesar de ser pouco em relação ao que se joga nas grandes mesas profissionais. Tomou o elevador e chegou até o apartamento indicado pelo recepcionista. Havia dois seguranças engravatados na entrada. Eles o cumprimentaram com a cabeça e abriram a porta. Esse andar parecia completamente abandonado. Provavelmente foi reservado para o evento. Ivan entrou e foi recebido por uma mulher. Devia ter seus 1.60. Era morena clara, e tinha cabelos pretos e bem encaracolados.

Vestia-se sensualmente e sorria com grande simpatia. Ivan pode sentir seu gosto em correndo por sua língua... salgado como suor, ou a água do mar e ao mesmo tempo lascivo... Apimentado... Custou-o muito disfarçar o interesse.

- Boa noite, Senhor Ivan. Meu nome é Larissa. A mesa começará em 20 minutos. Gostaria de fazer o depósito do dinheiro e receber suas fichas? Ou talvez queira tomar uma bebida antes...

Ivan imaginou que o recepcionista deva tê-lo anunciado assim que ele entrara no elevador,

- Boa noite, Larissa. Podemos ir ver as fichas.

Ela foi indo na frente e ele seguiu atrás, observando todos os presentes para o jogo. Ivan contou oito homens e seis mulheres, sem contar Larissa e os funcionários do hotel. Aquele ambiente o deixava desconfortável. As cores, os cheiros, as pessoas. Tudo o deixava com um gosto ácido na boca.

Juntou as fichas e se dirigiu à mesa. Sentou-se e um garçom que ficava passeando pelo cômodo e servindo os presentes o ofereceu um copo com uísque e gelo. Ivan aceitou e tomou apenas um pequeno gole, deixando o copo de lado. Na mesa, estavam mais cinco jogadores. Três homens e duas mulheres.

Todos os cinco conversavam animadamente entre si e deram pouca atenção a Ivan inicialmente. Um deles, o havia convidado. Helder. Um rapaz de vinte e poucos anos, herdeiro de uma empresa de cimento da cidade. Montado na grana, garoto tinha como estar em todo o tipo de mesa de jogo, sem muito risco de ficar zerado. O que não acontecia com Ivan, onde cada derrota poderia lhe deixar em sérios apuros financeiros. Desse modo, seus estilos eram completamente opostos. Helder arriscava sempre que podia. Ivan sempre manteve a calma e assumiu pouquíssimos riscos, em todas as mesas que jogaram juntos. Agora, com tanto dinheiro investido - para os seus padrões, é claro - Ivan não sabia como deveria se comportar. Pra todos os que estavam na mesa, 10.000 reais parecia ser mixaria. Isso o incomodava... Assim como quase tudo naquele ambiente.

Larissa se aproximou da mesa e anunciou que o jogo começaria e que ela seria a dealer, naquela noite. Ivan tomou mais um gole de uísque e se endireitou em sua cadeira enquanto as cartas eram apresentadas a todos os jogadores.

3

Dois seis jogadores que começaram a noite, apenas três restavam na mesa.

Ivan, Helder e um homem mal encarado e corpulento, chamado Tássio. Pelo que Ivan tinha conseguido entender, Tássio era dono de cinco postos de gasolina na região metropolitana de Recife, entre outras coisas.

Apesar de endinheirados, nenhum dos dois pareciam dispostos a perder e Ivan ia tentando se manter sempre conservador. Só arriscava quando parecia ter uma boa chance de vitória. Tirando pelas pilhas de fichas que se acumulavam em frente aos três, Ivan imaginava que estivesse em segundo... Além dos seus 10mil iniciais, ele devia ter já uns 20, ou 25 mil. Mais uma rodada se iniciou e Ivan deu uma olhada em suas duas cartas. Tinha consigo um Ás e um Rei de Copas. Não era uma vitória certa, mas já era um bom começo. Helder não pareceu muito animado, resolveu não apostar e entregou suas cartas. Tássio não revelou nenhuma emoção. Juntou uma pilha de fichas e empurrou à frente. 10 mil reais. Ivan resolveu arriscar e cobriu a aposta. Veio o Flop, em seguida, e três cartas foram reveladas. 7 de paus, 6 de copas e 10 de ouros. Tássio pensou por alguns segundos e em seguida, juntou todas as fichas que tinha e as empurrou para junto das outras no meio da mesa. ALL IN. Arriscou tudo. Ivan sentiu um frio na espinha e algo se contorceu em seu estômago.

Poderia desistir e sair com um bom dinheiro ainda naquela noite. Mas sentiu como se houvesse uma pequena corrente elétrica passando por sua língua, e um gosto adocicado, que ele sempre associou às suas pequenas vitórias em jogos anteriores. A ansiedade o corroía e gotas de suor começaram a escorrer de suas têmporas. Havia um sorriso tenso no rosto de Helder, como se ele saboreasse a dúvida de Ivan. Algo que raramente sentia em seus jogos. Por fim, Ivan empurrou todas as suas fichas para o meio da mesa e Larissa virou as cartas dos dois jogadores. Tássio tinha dois Reis. Um de Ouros e um de Espadas, o que lhe dava mais chances de vitória do que Ivan. Larissa virou uma das cartas restantes e apareceu um valete de paus.

O coração de Ivan disparou. Ele continuava atrás... Mas o gosto em sua boca ainda o dizia que a vitória era certa. Tássio abriu um sorriso saboreou suas probabilidades. Ivan que inicialmente tinha achado que ele era desprovido de emoções, percebeu que enfim estava errado. Ele parecia mesmo um sádico. Mais feliz não pela vitória iminente, mas pelo desespero do derrotado ao seu lado. Larissa pegou a última carta e virou-a lentamente. Apareceu um Ás de paus.

Tássio socou a mesa e as fichas todas se espalharam.

4

O gosto de vitória tomou a boca de Ivan, e ele mal sabia se comemorava ou só juntava suas fichas e ia embora. Helder apertou sua mão e Tássio se levantou abruptamente da mesa. Larissa juntou todas as cartas e fichas na mesa e anunciou que Ivan havia vencido, tendo acumulado um total de 59 mil em fichas. Uma bolada! Pensou Ivan, enquanto ainda tentava processar o acontecido. Helder se aproximou e sussurrou no seu ouvido.

- É melhor você ir embora agora. Tássio não é um bom perdedor. Eu vou tentar distrair ele enquanto você vai, só pra evitar problemas.

Ivan se recompôs e se levantou da mesa. Larissa o acompanhou até um computador onde foi feita a transferência do dinheiro para a sua conta. Ela se despediu e com um beijo no rosto e deu-lhe um cartão com o seu número de celular. Ela era só sorrisos. E Ivan tinha uma queda por esse tipo de coisa. Tomou o elevador e desceu até a recepção. O atendente afeminado que o havia recebido o cumprimentou e Ivan perguntou,

- Tem algum bar aqui no hotel?

- Tem sim. Fica do lado direito do saguão, perto da área da piscina. Só o senhor seguir por aqui.

Ele fez a indicação com o braço e Ivan seguiu até o bar. O bar estava vazio. Só dois gringos e o barista sentado à beira do balcão. Ivan sentou-se e pediu uma dose de Rum com suco de limão. Gostava do sabor. Tanto quanto gostava do sabor da vitória... Pensando nisso, Ivan pegou o celular e mandou uma mensagem para o número indicado por Larissa.

“Estou no bar aqui embaixo. Se quiser tomar algo comigo...”

“Estou descendo” - Ela respondeu em instantes.

Em dez minutos ela chegou ao bar e sentou-se ao seu lado.

- Quero um martini seco, sem azeitona.

O barista a serviu e ela o olhou com o mesmo sorriso lascivo de antes.

- Você tem um sorriso bonito. – Ivan falou.

- Obrigado, Ivan. Você é uma gracinha também.

- Gracinha? Ninguém nunca me disse isso.

- Gosto das suas expressões. Você não parece pretensioso como os outros aqui.

- Ah sim.

Larissa terminou o martini, e aproximou o rosto do rosto de Ivan para beijá-lo. Ele não esperava aquilo e se perguntava se ela estava atraída por ele, ou pelo dinheiro que ele havia feito na noite. Decidiu que não queria saber, e logo os dois estavam se beijando.

- Você veio de carro? Ela perguntou

- Sim. Deixei no estacionamento.

Ela se levantou e o puxou pelas mãos até o estacionamento. Larissa se encostou no carro e puxou o corpo de Ivan contra si. Parecia que ela queria consumi-lo. Seu gosto era exatamente como ele tinha sentido antes. Ela abriu a porta de trás do carro e entrou, levantando o vestido e expondo as pernas e a calcinha de renda. Ivan tinha o coração disparado, tomado pelo desejo que aquela mulher o instilava. Quando já ia se juntar a ela dentro do carro, ouviu barulho de passos se aproximando. Olhou para trás e viu Tássio com cara de poucos amigos.

Ele ficou encarando Ivan e logo se aproximou.

- O que você está fazendo aqui ainda, palhaço? Já não se divertiu o suficiente?

- Aparentemente não. - Respondeu Ivan, cinicamente. - Mas estou no processo.

Larissa saiu do carro e dessa vez parecia bastante séria e assustada.

- Vai embora daqui, Rameira. - Disse.

Ela se recompôs e saiu dali em passos rápidos, sem sequer olhar para Ivan...

- Hoje elas estão cada vez mais frívolas, não? - Ivan disse ainda mais descarado.

Tássio ergueu a mão e acertou um soco no meio do rosto de Ivan, que deu dois passos para trás, mas não caiu. Os dois eram praticamente do mesmo tamanho, mas Ivan era bem mais magro. Tássio se aproximou para dar outro soco, mas Ivan se recuperou a tempo e o acertou no meio dos genitais com um chute. Depois, quando Tássio estava no chão, virou-se e foi em direção ao carro. Só que a chave estava no chão, derrubada por Larissa.

Abaixou-se para pegá-la e nesse momento ouviu um estampido e sentiu um gosto diferente na boca. Um gosto metálico... Chumbo... Sangue.

Depois todos os gostos se desfizeram e restou apenas uma escuridão insípida e sem graça.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 15/03/2018
Reeditado em 30/09/2020
Código do texto: T6281081
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