CIRINO E CLETO

Cirino, filho mais velho de seu Juvêncio e dona Gera, aos dez anos de idade, já ajudava o pai em afazeres da roça, inclusive na ordenha da madrugada. Aos sábados, pai e filho azeitavam uma velha, mas, conservada carroça, puxada pelo forte e ágil burro, Capôi. Partiam, ainda com sol por nascer, para vender verduras, raízes, melado, queijos e manteiga caseira na feira de sábado, nas imediações do mercado municipal de Teófilo Otoni, MG. De vez em quando, levavam também chouriço fresco, linguiça e carne suína salgada. A roça ficava para lá do São Jacinto, o que delongava o deslocamento em quase uma hora.

Enquanto faziam curso ginasial no Ginásio Mineiro, Cirino e Cleto – seu irmão dois anos mais novo - moravam na pensão de Dona Cora, na rua direita, com café da manhã, almoço e janta. O contado dinheiro para a merenda na escola era passado aos domingos quando a família se recompunha para o almoço na roça. Juvêncio aproveitava a reunião familiar para reafirmar, em tom de oração: “quem sabe administrar um tostão, administra um milhão”. Cirino continuou seus estudos na Escola Técnica de Contabilidade Joaquim Portugal. Fez estágio com o guarda-livros Serafim Collares, na Rua João Pessoa, 32.

Cleto não tinha o mínimo gosto pelos estudos, nem pelo trabalho duro. Seu caso era namorar e frequentar os cinemas, mormente o Império, onde conseguia entrar sem pagar, subornando o porteiro Félix, com pequenos agrados. À noite, curtia prosa e trottoir das moçoilas na Praça Tiradentes. Vaidoso, sempre exibia uma camisa da moda, presenteada por Alonso (todos sabem quem era...). Iludiu o pai, Juvêncio, com a conversa de que ingressaria no Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio de Janeiro. Até arrancou uns trocados do velho para aguentar os primeiros dias na cidade maravilhosa. Na verdade, tratava-se mais de uma fuga da cidade, assim que soubera ter engravidado a filha de um rico e valente fazendeiro de Ataleia. No Rio, não tardou a se envolver com a malandragem. De apontador de jogo do bicho a camelô da Rio Branco, Cleto deixara marcas em seu currículo. Perdidinho da vida, como se dizia na época. Mas, mesmo assim e ausente, o sempre xodó da mamãe.

A Mãe Gera fazia-o merecedor de mimos periódicos. Queria marcar-se na lembrança do filho amado. Latas de biscoitos de goma, brevidades e rosquinhas secas. Goiabada cascão e cocadas pretas - as preferidas de Cleto. Tudo feito por ela mesma, em fogão e forno de lenha, na roça, com muito capricho. Sentia não poder mandar também os chouriços frescos que Cleto – quando criança - devorava com prazer animal. Vez por outra, fugindo à marcação de Juvêncio, enviava também uns trocados para cobrir-lhe possíveis necessidades.

Todas essas encomendas eram gentilmente conduzidas pelas mãos de Tonísio Bonfim Sulz, o mais conhecido e familiar dos motoristas da linha Teófilo Otoni-Rio, feita pela empresa São Geraldo.

Cirino, influenciado por conversas de amigos, acabou empreendendo viagem aventura para tentar a vida nos Estados Unidos. Clandestino, lá trabalhou como auxiliar de cozinha e garçom antes de galgar a condição de sócio no Restaurante “Here and Now”, de seu amigo e conterrâneo Léo. Morou, enquanto aguentou, no quartinho dos fundos do restaurante. Compartilhava,

sem reclamar, um beliche com o cozinheiro coreano também clandestino, Caju (Ky Shoo, na verdade).

Não casou nem namorou sério. Curtiu efemeridades amorosas franqueadas por aposentadas frequentadoras do restaurante. Afinal, estava ali apenas para “passar a chuva”, fazer pé de meia e voltar forrado de dólares. Tal qual o pai Juvêncio, valorizava qualquer centavo poupado. Driblou por oito anos os oficiais da imigração americana até decidir voltar.

Começou a comprar bugigangas modernas e raras para compor a bagagem. Era freguês assíduo dos “garage sails”. Dessas feiras familiares de produtos usados como brechó, organizadas por gente em mudança da cidade. Esperto, preferia os bairros dos endinheirados. Garimpava o que havia de melhor pelo menor preço. Também não perdia as mega liquidações das grandes lojas.

Com seu aguçado faro mão-de-vaca, adquiriu muita coisa boa a preço de banana. O propósito não era bem ostentar riqueza nem modernidade no retorno ao Brasil, mas, sim, lucrar na revenda em Teófilo Otoni. Encaixotou uma volumosa tralha e despachou de navio. Frete mais barato! Contou com a articulação submundana do irmão Cleto para arranjar um despachante barateiro, capaz de subornar fiscais alfandegários no porto do Rio e remeter a muamba para Minas.

Em sua mala pessoal, vieram objetos de maior afetação pessoal. Dentre esses, um terno de rara e legítima casimira inglesa, talhado, costurado e etiquetado por renomado alfaiate italiano, com atelier na Wall Street, em Nova Iorque. Nicho de endinheirados. Adquirira de um diplomata, regressando à Escócia. O terno, cinza-chumbo, com riscas de giz, era completo. Incluía colete com algibeiras laterais para relógio. Peça feita com exclusividade e sob medida para o diplomata. Originalmente, dever ter custado algo na casa dos milhares de dólares.

Porém, a negociação foi chorada ao extremo. Quando Cirino argumentou que a roupa se destinaria um brechó beneficente, derreteu o diplomata que fez incluir no pacote, uma camisa branca de fino linho egípcio, com punhos duplos, abotoaduras folheadas a ouro e uma gravata italiana de marca famosa. Tudo saiu por uma bagatela, preço simbólico de benemerência. Menos de cem dólares.

Como se não bastassem tais vantagens, o terno e a camisa caíram como luva no corpo de Cirino, sem carência de qualquer reparo. Até as iniciais “CS” bordadas na lapela e nas abotoaduras poderiam ser lidas como Cirino Salles. Era guardado como tesouro numa capa preta, com zíper.

Se algum dia viesse a se casar, exibiria o traje. Antes disso, terno, camisa, gravata e abotoaduras ficariam bem guardados no canto do roupeiro, em cabide e capa especiais, esperando oportunidade ou comércio.

Que brechó beneficente, que nada. Representava, sem dúvida, o melhor negócio feito por Cirino em suas compras de fim de semana, nos Estados Unidos.

Como, para Cirino falava mais alto o dinheiro, se algum ricaço chegasse com pelo menos mil dólares querendo as vestes, as entregaria com uma mão, contando o dinheiro com a outra.

Já passava mais de seis anos de seu regresso ao Brasil, quando alguém lhe falou em comprar o terno e seus complementos. Também lhe amadurecia a ideia de casamento. Achou uma parceira de hábitos simples, sem vaidades e igualmente econômica. Ficou noivo e resolveu dar uma olhada na roupa guardada para o evento ou - oxalá - para o negócio.

Bateu desespero e tristeza! Surrupiaram-lhe o traje. Deixaram apenas a capa vazia, estufada de vento, para ludibriar a vistoria diária.

Como, quem, quando? Nada de fechaduras arrombadas. Nem do quarto, muito menos do guarda-roupa. Cleto tinha currículo de sobra para ser suspeito, não fosse o fato de estar morando no Rio e nunca mais ter voltado à terra natal. O mistério perdurou por mais de década zunindo a silenciosa inconformidade de Cirino. Nem sua boa vida – agora, galgada como doleiro, agiota e comprador de “vale de lenha” da Estrada de Ferro Bahia e Minas - atenuava o desgosto com a perda de terno, camisa, gravata, abotoadura e, principalmente, dos cem dólares aplicados na aquisição. Consolava-se com o fato de estar mais gordo e talvez nem mais caber dentro da saudosa roupa. Puro esopismo, pois, Natalino Scapelatto, habilidoso alfaiate local, seria capaz de fazer os ajustes necessários, sem deixar marcas. Desolado, terminou casando-se com terno novo, feito sob capricho especial pelo próprio Natalino, seu amigo e cliente financeiro.

A vida continuava em seu curso regular, quando, do Rio, chegou a notícia que cirrose hepática e outros males de uma vida desregrada teriam acabado definitivamente com Cleto. Cirino, a pedido da mãe, abatida pela recente viuvez, em incomum ato de solidariedade, pagou o preparo e o traslado do corpo do irmão para Teófilo Otoni.

O velório ocorria na capela anexa à entrada do cemitério, que ostentava em seu pórtico os dizeres: “LABORUM META”. O corpo estava num caixão interno de zinco, hermeticamente lacrado. Ajustado a um esquife externo de madeira escura. Com dificuldade, via-se a face do finado através de um pequeno visor de vidro, meio embaçado pelo formol. Cirino foi dos primeiros a conferir aquele rosto descarnado, em pele e osso, que quase não lembrava o irmão de décadas atrás. Notou também que o terno e a camisa, servindo-lhe de mortalha, sobravam no pescoço.

Epa! Algo naquela imagem lhe era familiar. Afastava-se quatro passos do caixão, limpava os óculos, e voltava a fitar o defunto. Seu atento olhar buscava desesperadamente sacar mais detalhes da roupa. Não propriamente do irmão. Tentava desesperadamente limpar o visor do caixão com o lenço.

Sua mãe e muitos presentes chegaram às lágrimas com o nunca dantes visto “gesto de amor fraternal” de Cirino pelo irmão.

Sem se dar vencido pela dúvida, desceu a Ladeira do Cemitério e, no Arrasta Couro, pediu emprestada uma lanterna a pilha de Heitor, seu cliente financeiro. Com iluminação adicional, pôde ver melhor o interior do ataúde lacrado. Terno cinza-chumbo riscado, com colete, tendo algo na lapela que poderia ser uma sujeira, como também um bordado, uma logomarca. Deus nos livre: o emblema “CS”, ali bordado? Pode, não pode ser verdade! Como? Ninguém viu nem soube da vinda de Cleto a Teófilo Otoni, depois de sua mudança para o Rio. Enfim, seria, mesmo, aquela mortalha o terno de casimira inglesa furtado? E a camisa, a gravata, as abotoaduras? Estariam também compondo a veste do defunto?

Que tormenta! O que fazer? Enterrar a dúvida ou perseguir a verdade? Cirino, mudo, de mão no queixo, caminhava baratinadamente, em torno do esquife, olhando ora para o chão, ora para o caixão. Por sua cabeça passava desde baixos xingamentos até a possibilidade de defunto trocado, com roupa certa. Ou de roupa errada em defunto certo?

Só abrindo o caixão para conferir. Mas, como justificar tamanha intervenção – com jeito de agressão e desrespeito ao morto e aos presentes - em atmosfera tão comovente, regada a lágrimas?

Suava de aperto e pressão. Se algo tivesse de ser feito, que fosse rápido, pois o sol já estava mudando de lado. Enterro marcado para as cinco da tarde. Frei Serafim chegaria às quatro e meia para o ritual de exéquias.

Eureca! Cirino arranjara um bom argumento. Defunto trocado! Assegurava aos presentes não ser de seu irmão Cleto o corpo encharcado de formol, lacrado naquela lata de zinco. Mas, veladamente, acreditava ser seu o terno de casimira que estava ali dentro. Provavelmente com a camisa de linho egípcio, gravata e abotoaduras “de ouro” personalizadas.

Chamou, para reforçar a suspeita, a mãe Gera, a irmã Clara e um primo que fora ao Rio três anos atrás e estivera cara a cara com Cleto. Sem conhecer direito, forjou pelo menos cinco detalhes diferenciadores que, embora precariamente, poderiam ser percebidos pelo visor de vidro.

E, já agoniado, sentenciou:

- Melhor abrir a lata para conferir!

Os presentes estupefaram-se. Mas, não tendo como contestar as dúvidas do patrocinador financeiro do funeral, acataram sua decisão com tímidos acenos de cabeça.

Lá se foram chamar seu Arlindo, com oficina na entrada do Veneta. Munido de talhadeira amolada, marretinha e forte tesoura de cortar flandre, chegou o funileiro. Ao primeiro rompimento do caixão ocorreu uma liberação – ao estilo panela de pressão - infernal e insuportável de formol no ambiente. Ninguém aguentou. Todos correram para fora com forte coriza a derramar lágrimas. Naquele momento muitas pessoas já se aproximavam para o final do velório e enterro. Sem entender bem o que se passava, começaram a chorar também, por solidariedade e para consolo dos parentes e amigos.

Frei Serafim, chegando de bicicleta, surpreendeu-se com tanta gente na área externa. A sala do velório teria ficado pequena para um ror de saudosos admiradores e amigos de um malandro, morto sabe-se lá como, nas ruas do Rio de Janeiro?

O tempo foi passando, a situação se explicando e seu Arlindo, mesmo com os olhos embaçados pelo formol, a cortar o ataúde. A desnudar o defunto de sua armadura metálica. A cada avanço na abertura, seu Arlindo chorava copiosamente. Benzia-se justificando seu choro e pedindo perdão pela possível heresia. A duras penas, conseguiu finalizar o serviço. Ausentou-se de face corada, olhos vermelhos e todo melado de suor, coriza e lágrimas. Com caixão aberto, a sala do velório ficou dez vezes mais empesteada de formol. Nem Cirino, com toda sua gana de conferir o terno, conseguia se aproximar. Lenços no nariz eram a marca comum.

O sol já se avermelhava e acomodava atrás das montanhas. Os coveiros, embora compreendendo a situação, não se dispunham a fazer enterro à noite. Não era coisa de Deus, afirmavam. Frei Serafim sentiu o drama e se mandou. Afirmou que não oficiava encomenda de corpo à sombra do sol. E, ademais, tinha que jantar meia hora antes de celebrar a missa das sete.

O formol que exalava forte pelas janelas se dissipava aos poucos, mas longe de se tornar suportável.

E a noite chegou para valer, com um pouco de chuva fina e brisa fria. Mal iluminada por uma mísera lâmpada incandescente de 40 watts e, ainda, impregnada de formol, a sala do velório não oferecia a menor condição para vigília noturna. Isso tudo sem contar o popular preconceito sobre defuntos e o medo das almas penadas.

Ainda de posse da lanterna emprestada por Heitor, Cirino, de lenço no nariz, enfrentou os vapores desagradáveis. Foi ver de perto o defunto e sua indumentária. Sem dúvida! Era aquele seu terno de casimira trazido da América. Colete, camisa de fio egípcio e gravata italiana também adornavam o defunto. Só não constavam as abotoaduras. Devem ter sido vendidas, como ouro, pelo larápio, julgou.

Antes de aplicar um “passa moleque” no morto, iluminou bem de perto o rosto do mesmo. Sem mencionar o terno, voltou a se socorrer na memória dos parentes, principalmente do primo que estivera com Cleto mais recentemente.

A luz não ajudava, muito menos os olhos embaçados. A dúvida continuava.

Seu Arquimedes, administrador do cemitério deu o ultimato.

- Enterro só amanhã. Deixem o corpo aí. Tampem bem o caixão para evitar os ratos. Vou trancar a sala. Amanhã, fazem-se o velório e o enterro antes do meio dia.

Heitor, que acabara de fechar a loja, apareceu para pegar sua lanterna de volta e conferir a fofoca que já permeava os quatro cantos da cidade. Cirino desceu a ladeira em companhia de Heitor, dona Gera e Clara. Conversava uma coisa e outra. Mas, prenhe de dúvidas, prometera a si mesmo descansar, desembaraçar as ideias e acabar com essa agonia, executando logo o enterro, fosse do irmão Cleto ou de outro qualquer, metido em suas vestes.

Dia seguinte, Mãe Gera, penalizada pela extenuante dúvida de Cirino, acompanhada por seu Arquimedes, também agente funerário experimentado, virou, remexeu e examinou o defunto meticulosamente, de frente e de costas, dos pés à cabeça. Sacramentou, com sua autoridade de mãe:

- Este não é meu filho. Nem vamos fazer mais velório. É só enterrar este pobre coitado, como dever cristão.

Cirino ainda tentou negociar com seu Arquimedes uma cova mais barata, ou mesmo gratuita, no setor de indigentes. Debalde. A cova aberta já estava paga e não havia como reverter o negócio.

O enterro foi feito imediatamente, sem mais choro nem vela, muito menos, fita amarela.

Houve certo alívio familiar. Mas, perguntas ficaram no ar. Por onde anda Cleto? Por que um cidadão anônimo foi considerado morto e estava para ser enterrado com a identidade de Cleto? E, a indagação maior que ele não externava: por que vestia suas roupas furtadas, trazidas da América?

Dias depois, Mãe Gera, repisando o episódio, acrescentou alguma luz - ou mais confusão - a essas questões. Quando mexera e remexera o corpo do morto, ouvira de seu Arquimedes observações curiosas: o terno não teria sido vestido depois do morto rígido. Não apresentava cortes, nem recortes, tampouco ajustes, como é prática, para se vestir um morto de juntas endurecidas, sem flexão. Tudo indica que batera a caçoleta já dentro daquela roupa. O formol foi usado em abundância por quem não teve o cuidado de remover as vísceras do defunto no preparo para traslado. Tratava-se de serviço porco, de amador irresponsável, segundo seu Arquimedes.

Upa, lelê! Ferveu a cuca de Cirino. Resmungou em voz baixa:

- Então, o defunto estava vestindo meu terno antes de morrer? E, além disso, não era meu irmão? Nem o trataram direito na embalagem para viagem? E eu que paguei uma bufunfa pela mortalha e pelo preparo do corpo! Vou ao Rio apurar isso direitinho! Não fazem um mineiro de besta facilmente! Tenho o nome, endereço e telefone da Funerária Além Paraíso, que prestou o serviço.

Pela primeira vez, ao que se sabe, Cirino estaria disposto a investir dinheiro em defesa de algo que não desse lucro financeiro.

Para evitar gastos de viagem, passou dias - até quase um mês - tentando resolver a questão por telefone com o dono ou responsável da funerária. Nessa época a comunicação telefônica com Teófilo Otoni ainda era precária. De dez ligações, conseguia-se uma, cheia de ruídos. O máximo que ficou sabendo, para sua surpresa, foi que a funerária “acabara”. Fora fechada com a morte de seu proprietário. O resmungo continuava.

- Como? Cleto falecera e foi sua própria funerária que me enviou outro corpo em seu lugar? Pior do que imaginado! Huumm! Ou seria o verdadeiro Cleto naquele caixão, não bem identificado por Mamãe e seu Arquimedes?

Não teve jeito. Pegou um ônibus da São Geraldo, dirigido pelo já conhecido decano dos motoristas da linha, Tonísio. Lá se foi para o Rio, aproveitando a companhia de Alfeu, velho amigo e colega dos tempos do Joaquim Portugal e do escritório de Serafim Collares. Alfeu estudara direito no Rio e conhecia bem a cidade. Periodicamente tinha que voltar ao Rio para acompanhar processos de interesse de seus clientes. Por razões econômicas – é óbvio - hospedaram-se na Pensão Filadélfia, da conterrânea Lúcia Najour, na Rua Frei Caneca, um pouco adiante dos Arcos. Com banheiros coletivos fora dos quartos, era opção baratinha, bem ao gosto mineiro. A sorte é que por lá passavam várias linhas de bonde.

Partiram em busca da funerária, com endereço na Rua Silva Rabelo, número apagado, no Meyer, segundo a nota de despacho do corpo que chegara a Teófilo Otoni. Depois de muito indagar, acharam um sobrado torto e carcomido pelo tempo. Nenhuma placa na frente. Mas, segundo informação do jornaleiro da esquina, uma escada de madeira esburacada, à direta do prédio, levaria a dupla ao piso superior, suposto local da funerária.

As batidas na porta fechada, inicialmente educadas, converteram-se em verdadeiros murros. Percebia-se gente lá dentro que não queria atender. Depois de muita insistência, apareceu uma senhora já na etapa distal da terceira idade, esquálida, de olhos fundos, cabelos crespos, grisalhos, ensebados e em total desalinho. Dentes amarelos, entre falhas, igualmente ensebados, projetavam-se de sua boca franzida. Trazia no canto dos lábios um cigarro babado e fedorento. Para quem esperava ver uma gerente, deparava-se com algo mais ao jeito de cliente.

- É aqui a Funerária Além Paraíso?

- Era.

Respondeu da porta mesmo, com voz roufenha, sotaque acastelhanado, sem convite para entrar. Lá de dentro exalava cheiro de formol.

- Hoje é minha moradia retomada por falta de pagamento dos aluguéis. Se os senhores são credores ou oficiais de justiça, fiquem sabendo que nada mais restou daqueles bandidos por aqui. O último caixão foi levado semana passada por um credor ludibriado.

E continuou.

- Desde que um sócio deles morreu, isso aqui virou uma disputa de rapinagem. Levaram tudo que podiam botar nos bolsos. Tive que vir trancar a porta e me mudar para cá rapidinho. Se não, levariam torneiras, vaso sanitário e outras coisas. Ocuparam este meu sobrado por mais de cinco meses e nunca me pagaram um tostão de aluguel. Cambada de safados!

- A senhora chegou a conhecer o sócio que morreu?

- Não. Só sabia seu nome, Cleto Salles, porque foi ele que assinou o contrato de locação.

- Sabe alguma coisa sobre a morte dele?

- Vocês são da polícia?

- Não, sou irmão de Cleto. Estamos afastados sem nos ver, há mais de vinte anos. Recebi em Teófilo Otoni, um corpo embalsamado como se fosse dele. Ao abrir, constatamos ser de outra pessoa.

- Vocês abriram o caixão de zinco e fizeram essa conferência? Caramba! Isso não pode ser feito. Caixão lacrado não deve ser aberto, por garantia de lei. Pois bem, não sei direito o que vocês buscam. Só sei que erraram.

Alfeu retrucou e entrou na conversa.

- Sou advogado e afirmo não ser ilegal abrir um esquife lacrado, a menos que a causa mortis seja doença grave contaminante. Ele morreu de que, finalmente?

- Dizem que foi mal súbito. Do coração. Mas eu acho foi cachaça mesmo. Bebia muito.

E arrematou, entre baforadas no nojento cigarro, pigarro e tosse intermitente.

- Era homem muito esquisito. Dificilmente aparecia por aqui. Até a moça que trabalhava de secretária só o ficou conhecendo no dia de seu falecimento. Quem negociava os caixões e o funeral era a secretária com a aprovação dos sócios. Os serviços eram feitos, de fato, por empresa terceirizada. Os sócios também não gostavam de mostrar o rosto. Ninguém viu, mas, se conta que no dia da morte, seu Cleto teria chegado aqui, pela madrugada, vindo diretamente de uma festa, trajando roupa muito elegante. Quando a secretária chegou, deparou com o defunto estatelado no chão. Logo em seguida apareceram os sócios que chamaram o rabecão do Instituto Médico Legal – IML. Nem chegaram a remover o corpo. Os amigos do rabecão conferiram os documentos que o falecido levava nos bolsos, emitiram um atestado e os demais sócios da funerária cuidaram do resto. Certidão de óbito, guia de sepultamento etc. Foi aí que apareceu o senhor reclamando o corpo e pedindo para remetê-lo para o interior de Minas. É o que sei. Como é seu nome?

- Cirino. Obrigado pelo relato. A senhora sabe o nome dos sócios e onde achá-los?

- Não. Nem eu, nem ninguém, talvez. Quero-me ver livre dessa gente!

Cirino confessou a Alfeu não ter gostado da conversa. A velha parecia estar falseando uma conivência. Sabia do caixão de zinco, do meu pedido do corpo e, certamente, de muito mais. Aquela conversa só chegaria perto da verdade, se o corpo fosse mesmo de Cleto. Fez foi levantar outra questão. Por que os homens do rabecão não removeram o corpo e facilitaram o funeral sem os exames técnicos de praxe?

Desceram as escadas e foram em busca de mais informações junto ao jornaleiro.

Simpático, no ponto há mais de vinte anos, recebeu a dupla com sorriso e perguntas.

- Vocês são da polícia? Acharam a funerária?

- Tranquilize-se. Não somos policiais. Sou irmão de Cleto Salles. Parece que ele morreu nessa funerária. A cidadã que nos atendeu disse que lá não mais funciona a empresa.

- Cá pra nós. Nunca funcionou. Aquilo ali era uma escabrosa agência de negócios escusos. Viva o jogo do bicho que é feito às claras e paga certinho os prêmios aos apontadores. Ninguém pode saber o que sei e vou falar. Revelo a vocês porque parecem gente de bem e distante do crime. Peço segredo absoluto.

- A senhora que nos atendeu, dona do sobrado, passou-nos algumas informações que pouco ajudaram. Para não tomar seu tempo nem o comprometer, tire-nos uma dúvida. Por que o pessoal do IML, no rabecão, decidiu não recolher o corpo de meu irmão?

Em voz baixa, trazendo à proximidade máxima os ouvidos dos interlocutores, disparou:

- É tudo gente do ramo, amigos e sócios desses urubus. Eram os mesmos que indicavam e encaminhavam defuntos para cá. Por mais de uma vez pareceram investigadores rondando e fazendo perguntas. Subiram lá e nada acharam de anormal. Eles sempre mantiveram três ou quatro caixões em exposição para dar ar de seriedade ao negócio. Para encurtar a conversa, tudo indica que essa turma está envolvida com a “Máfia dos Cadáveres”. Já saiu nos jornais várias vezes. Vendem corpos e órgãos para pequenas faculdades de medicina do interior e até do exterior.

Pausou para apontar mais um jogo, de cliente que costumava apostar alto. E continuou.

- Seu irmão, junto com outros, montou o covil para conduzir esse tipo de negócio. Pelo que se sabe, está na mira da polícia. Ameaçou contar tudo. E, por lógica, seus comparsas resolveram acabar com sua vida. Transformá-lo em arquivo morto. Certo? Não! Estive pessoalmente com ele, em audiência com nosso “boss”. Cleto mostrou-se bem falante, vestido impecavelmente com terno de casimira inglesa, camisa de punho com abotoadoras de ouro. Sua proposta era buscar sócio endinheirado para expandir esse negócio de venda de corpos. Soube que procurou outros bicheiros, mas sem sucesso. Sempre me calei sobre o assunto. Ele acreditava no meu silêncio, mas, me evitava quando aparecia por aqui. Dessa forma, afirmo, com toda segurança. Aquele corpo retirado do sobrado e encaminhado para ser embalsamado não era do seu irmão, embora dele fosse a roupa no defunto. Estou certo disso porque jamais esqueci a roupa que Cleto usava naquela audiência. Era traje para chamar à atenção. Tinha até o emblema na lapela com suas iniciais.

- Sendo sua morte um evento raro, alguém fotografou o defunto?

- Nada. Quando um repórter tentou, cobriram seu rosto com um lenço. Alegaram que se tratava de membro de família rica plantadora de café em Minas Gerais. Desinteressada em divulgação.

- E seus sócios?

- Os que apareciam por aqui eram peixes miúdos. Os grandalhões – dizem - são chefões do IML. Participam do lucro de muitas funerárias. Mas, com essa daqui, parecem ter ligação especial.

- E o Cleto, que diziam dele?

- A verdade é que ele raramente mostrava a cara por aqui. Tanto que, dos que quiseram ver o morto, muitos estavam mesmo é satisfazendo a curiosidade de conhecer alguém tão importante e pouco presente.

Cirino fechou o dia cheio de decepção pela vida errática e de contraventor do irmão. Uma só certeza: o defunto para quem custeara traslado e funeral era um desconhecido vestido nas suas roupas compradas com muito gosto nos Estados Unidos (seria?). E perguntas que resistiam em negar

resposta: por onde anda Cleto Salles? Teria sido abatido para uso em faculdades de medicina? Por que tentaram enterrar um anônimo como se fosse Cleto? Quem lhe furtara o terno? Quando, como e por quê?

No outro dia, empreendeu uma visita ao IML, justificando-se como irmão de pessoa desaparecida, talvez morta, recolhida e guardada como indigente. Quando citou o nome Cleto Salles, muitos responderam de pronto que não constava dentre os corpos no IML. Demonstraram, em ato falho, conhecer, pelo menos de nome, de quem se tratava.

Retornando à pensão de Lúcia Najour, Alfeu lhe apresentou Cornélio, detetive particular mais que vivido no submundo carioca. Alfeu conhecera e ficara amigo do detetive, quando era estagiário no escritório de advocacia, para o qual Cornélio costumava fazer serviços especiais (sujos e quase limpos).

Cornélio conhecia e sabia - até demais – sobre essa gang dos cadáveres, que virava e mexia parecia nas páginas policiais dos jornais “O Dia” e “A Notícia”. Sabia também do envolvimento de gente graúda do IML e do perigo que corriam os que tentassem desembuchar seus segredos. Contudo, estava disposto a falar o que soubesse em caráter reservado a Cirino e Alfeu.

Para não ouvir repetições, Alfeu fez um breve relato do que já sabiam. Cornélio abriu o bico:

- Para começo de conversa, quem atendeu vocês na dita funerária foi “La Bruja”. Uma estrangeira de origem desconhecida. Usa várias identidades e passaportes. É suspeita de envenenar indigentes, inclusive meninos de rua, com o fim de apropriar seus corpos, pela gang. Ela sabe dissimular para fingir que nada tem a ver com a corja criminosa. Mas, ao contrário, ocupa quase o topo da organização. Dizem que domina mais de cinco idiomas. Comanda muita coisa, inclusive, é quem detém a agenda de negócios no exterior com compradores de corpos. E tem mais, aquele sobrado nunca foi dela. Forjou uma procuração da legítima proprietária, uma viúva paraplégica e caduca, sem herdeiros. La Bruja rapa o aluguel do Sr. Waldemar, dono de um ervanário e loja de produtos exotéricos no térreo. Dizem que seu Waldemar participa de uma seita satânica. Também é bruxo. É quem fornece produtos e atualiza receitas para La Bruja. São cúmplices, pelo menos nas bruxarias do horror.

E adiantou:

- O trabalho sujo deles basicamente consiste em remover o corpo e enterrar o caixão vazio ou, no máximo, com sacos de areia para simular peso. Encharcam o defunto removido em formol e o entregam ao comprador. Pode ser uma faculdade de medicina do interior, como pode também ser remetido para o exterior. Fazem negócio até com seitas satânicas da pesada. Quando há demanda, mas não corpos disponíveis, eles os produzem. Sacrificam pobres moradores de rua, inclusive crianças e fetos. Já exumaram muitos caixões vazios enterrados por essa turma. Isso foi amplamente divulgado nos jornais!

Sentindo o ambiente da pensão pouco seguro para esse ripo de conversa, combinaram reunião para o dia seguinte, em local bem menos vulnerável. Cornélio mantinha fortes ligações com os bicheiros. Era bem quisto e considerado confiável. Davam-lhe guarida e franqueavam espaço numa ampla banca de jogo do bicho, sem janelas. Disfarçada, localizada nos fundos de uma lanchonete na Rua da Alfândega, com acesso seletivo e fiscalizado através de porta secreta no sanitário masculino. Os encontros reservados ou confidenciais de Cornélio eram levados para lá. Acomodaram-se em mesa preferencial e cativa para gente conhecida e “cadastrada”. Esses cuidados justificavam-se pela natureza da conversa e pelo monitoramento que já faziam alguns detetives particulares à movimentação de Cirino no Rio.

- De ontem para cá, peguei mais informações com colegas que mantêm relações – até de trabalho - com os “urubus da central”, nome desses caras no mundo do crime. Falou Cornélio.

Metódico e atávico ao rito analítico da investigação criminal, relatou:

- Juntando o que sei com o que vocês me contaram dá para formular algumas hipóteses. A partir delas, tentaremos encontrar respostas às suas dúvidas. Vamos aos fatos. Cleto não era boa bisca. Já mexeu com tudo que não presta. Certa vez, tentou montar um prostíbulo infanto-juvenil em São Paulo, disfarçado de escola de arte circense. Escapou da prisão e fugiu deixando prejuízo a seus sócios paulistanos. Sua relação com o crime vem de longe. É figurinha mais que carimbada pela fiscalização pública, e nos registros policiais. Completamente sujo na praça. O nome dele não vale um centavo furado. Já usou mais de uma dezena de identidades falsas. Geralmente de defuntos que ele diz ter enterrado. Mesmo a turma da contravenção – bicheiros e assemelhados - não quer nem ouvir seu nome. Irreversivelmente endividado. Lascado, sem saída, planejou – como a bandidagem faz nessa situação - forjar sua própria morte, para começar outra com um nome emprestado, ou melhor, usurpado. Deve ter arranjado alguém com boas semelhanças físicas às suas. Contou com os serviços profissionais de “La Bruja”. Vestiram o cidadão com suas roupas, tomando o cuidado de deixar nos bolsos todos seus documentos pessoais. Fizeram-no ir ao “escritório” da funerária. Lá o envenenaram com as famosas garrafadas, conhecidas por “passagem só de ida”. Foi certamente como produziram o defunto que vocês receberam em Teófilo Otoni

- Nessa lógica, Cleto ainda pode estar vivo – concluiu Cirino, com algum viés de conforto familiar.

- Estou quase certo disso. E provavelmente aprontando em outra praça, em outro país, até.

Cirino agradeceu e fez o que não lhe era costume. Pagou a cerveja e, orientado por Alfeu, deu uma boa gorjeta ao detetive Cornélio.

Passaram na Praça Mauá e compraram passagem na São Geraldo de volta para a tarde do dia seguinte. Nada mais a tratar no Rio.

Por coincidência, reencontraram Tonísio, no ônibus. Desta feita, na condição de passageiro. Por falta de vaga no alojamento de motoristas do Rio, fazia retorno a Teófilo Otoni. Cumpriria descanso obrigatório, em casa, como regra interna da empresa.

Puxaram tanto papo um com outro que resolveram compartilhar o mesmo assento duplo do veículo. Tonísio – e provavelmente mais da metade de Teófilo Otoni - sabia o propósito da viagem de Cirino ao Rio. E lá se vai a pergunta esperada:

- Que soube sobre seu irmão? Encontrou-o?

- Não o encontrei e nem sei se gostaria mais de encontrá-lo. Pelo que fiquei sabendo, pode estar vivo, morando n’outra cidade ou atrás das grades.

- Que pena, né? Como pode pessoa tão amada pela mãe fazer da vida uma coroa de espinhos? Dona Gera vai ficar alegre por saber que ele não morreu e triste por não conhecer seu paradeiro – comentava. Se soubesse onde ele está, creio que ela ainda mandaria latas de biscoitos e outras coisas de seu gosto.

- É isso mesmo. Cleto, por pior que fosse, nunca deixou de ser o xodó de Mamãe.

- Até roupa ela mandou para ele.

- Como assim, Tonísio?

- Das encomendas que eu levei, certa vez, dona Gera mandou um pacote, com a recomendação de cuidado para não amassar. Pedia para entregar-lhe pessoalmente. Não deixar no balcão da empresa como era costume. Ele não foi pegar. Mandou um jovem já conhecido que se dizia seu afilhado. Fiquei sabendo mais tarde, pela própria dona Gera, que se tratava de um traje para ele vestir na solenidade de sua posse na direção de uma empresa internacional. Imaginei – é claro - ser mais uma das mentiras bem pregadas por Cleto e engolidas, com prazer, por dona Gera.

- Huumm! Curioso. Mãe Gera nunca me falou sobre isso.

A viagem e o papo continuaram, até bater sono. Falaram sobre a Rio-Bahia, ainda rodovia de terra. Seu péssimo estado de conservação, principalmente na estação das chuvas. Pescaria e amenidades.

Em Teófilo Otoni, Cirino, fez um relato sobre a vida mundana e errática de Cleto a dona Gera e sua irmã Clara, tomando o cuidado de omitir os deslizes e envolvimentos mais graves e grosseiros. O chororô foi tão sentido qual aquele do enterro, enquanto não se sabia do defunto trocado. Todavia, para amenizar a tristeza, Cirino deixou a certeza de que Cleto provavelmente ainda vivia, não se sabendo onde nem em que condição. Construiu a esperança! Um dia haveria de voltar, se Deus quiser!

A pergunta sobre quem lhe furtara o terno, a camisa e complementos veio-lhe à ponta da língua. E viria sempre, todas as vezes que encontrava sua mãe e falava de Cleto. Mas, sentia-se extremamente inibido. Achava que tal indagação soaria provavelmente mais como ofensa e acusação desnecessárias. Cirino presumia, com elevado grau de certeza, o que ocorrera:

Cleto incumbira à Mãe Gera de pedir-lhe a doação ou empréstimo de um de seus ternos, supostamente trazidos dos Estados Unidos. Precisava vestir roupa de classe para causar boa impressão durante o encontro com os bicheiros, quando venderia sua proposta de comércio com cadáveres. Inventou, para sua mãe, a mentira de que estaria assumindo, em ato solene de posse, a direção de uma grande empresa internacional. Mãe Gera, que jamais duvidara de Cleto, sentia-se na obrigação de atender ao filho querido, em vias de tomar jeito na vida. Sentia-se acanhada para fazer tal pedido. Estava certa de que Cirino não concordaria. Sabia da má fama e do descrédito social de Cleto. Capaz de mentir mesmo junto a familiares e amigos. Argumento algum serviria para conquistar a concessão de Cirino. Vendo que o tal traje estava sempre guardado, sem uso – criando mofo, como falava das coisas inúteis - resolvera dar-lhe utilidade na pele de Cleto. Mãe é mãe! Pode até fazer incursões pouco recomendáveis quando concebe como obrigação cumprir seu amor maternal. É a imperfeição da perfeição do amor materno.

Cirino confessou a Frei Serafim seus pensamentos e sentimentos. Inseguro de estar certo ou errado, pediu perdão pelo que pensava e prejulgava da mãe Gera. Frei Serafim disse-lhe que Deus certamente o perdoaria quando orasse o “Pai Nosso” e concentrasse na grandeza das palavras “perdoai nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido”.

Naquele mesmo instante, Frei Serafim se lembrou de ter feito a mesma recomendação dona Gera, anos atrás, quando ela lhe confessara ter furtado o terno de Cirino para atender seu amado filho. Pródigo para ela! Desacreditado e irrecuperável “ovelha negra” pela sociedade.

E a vida daquela família prosseguiu em paz à sombra dos secretos pecados que jamais precisaram ser revelados para ser perdoados.

Pelos cinco anos que seguintes, não se teve qualquer notícia de Cleto. Viveu-se a dúvida sobre Cleto vivo ou morto. Nunca reapareceu, nem deu notícias.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 19/05/2018
Reeditado em 19/05/2018
Código do texto: T6340737
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