DIAS TORRENTES

Os dias não eram assim tão cinzentos e doloridos. Na lembrança ainda carrego os pequenos momentos que esbocei sorrisos, aquela presença era o estímulo. Anos já são passados, mas a incompreensão persiste, por que você saiu? Fui a culpada? Quantas histórias na hora de dormir, os balanços, as bonecas, nossos passeios nos parques, a igreja. Não sei por que tudo mudou. Pensei que éramos felizes, formávamos o trio de superpoderosos, nós flutuávamos, navegávamos pelos sete mares, tínhamos magia. Cria que éramos bem-aventurados, mas um dia, bem de repente tudo mudou. Por que tudo mudou? O céu vestiu-se de lágrimas, os sons dos trovões ampliavam o temor, mas seus braços protetores não estavam mais aqui, não me afagaram. Buscava em minha mente a sua voz narrando o dia do meu nascimento, o surgimento dos meus primeiros dentes, meus primeiros passos, a primeira carta que te escrevi, a nostalgia tornou-se meu consolo. O tempo passou e nem mesmo as lembranças acalentaram-me. Nosso conto de fantasias se transformou em drama, depois num terrível filme de terror, mas era real, para minha infelicidade era real. Os pesadelos saltaram do sono e ganharam vida, concretizaram-se, os monstros eram reais, tudo se tornou escuridão. A cada dia o retorno para casa volveu-se mais dolorido, os sorrisos cederam espaço aos gritos, os afagos às agressões, os carinhos às incompreensões. As estrelas, que outrora contávamos nas noites de lua nova, perderam o brilho; as águas marítimas nas quais banhávamos secaram; as árvores que escalávamos murcharam, seus frutos amargaram. Isto parecia o fim, mas era apenas o início, então o pior ocorreu. Ela petrificou-se, mudou a identidade. Deixei de reconhecê-la. Quando você partiu, levou a alma dela, embora respire, está morta. Mas não foi só ela quem morreu. A cada dia morri, um pouco de saudades, de arrependimento, de culpa, o último dominou-me, ainda mais depois daquele dia torrente que ela desistiu de tudo, dos gritos, das aflições, discussões, do mar, das estrelas, do ar, do ar que respirava. Adentrando a rua, logo avistei os socorristas ligeiramente conduzindo-a para o carro que alarmava o som da agonia. As luzes do desespero e o odor do medo tomavam todo o ambiente. Que fiz agora? Não comprei ou ofertei-lhe o veneno, não atei a corda a seu pescoço, mas a entristeci. Há anos que ele se fora e eu fui a culpada. Talvez não gostasse das bonecas, ou da lua, das estrelas ou mesmo do mar, das brincadeiras que o obrigava a brincar, ele se fora e por certo eu era a culpada. Agora ela cansara da própria vida, mais uma vez a culpa era minha. Ele se foi, ela não suportou a ausência e optou por ir sem volta. A casa vazia, não mais que antes, mas sem a vida que resistia. Paredes cálidas, ar pesado, sombras, apenas sombras. Não sabia ao menos sobre o que pensar. Onde estavam todos? Mesmo ausentes, antes estavam aqui. Primeiro ele se foi e agora ela, e pra sempre. Não me deixou carta, não houve despedida ou justificativa. Milagrosamente as lágrimas tornaram a descer sobre minha face, há anos esse fato não ocorria. Estava ali, agora, chorando. Chorei por horas, adormeci, não sei por quanto tempo. Ao despertar, o pensamento pairava sobre os objetos e nos momentos cujos gritos ainda não haviam furtado o lugar dos festejos, época na qual as frustrações eram desconhecidas. Época que julgava sermos felizes. Flutuei e naquele instante, como numa miragem, vi-a adentrar a casa abraçada a ele, juntos outra vez, como quando inda era criança. Presságio, visão ou recomeço.

Amanda Danielle Rocha
Enviado por Amanda Danielle Rocha em 22/05/2018
Reeditado em 23/05/2018
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