O Rato da Trincheira

O Rato da Trincheira

Escalar paredes, roubar comida nas madrugadas, ter que esperar o apagar das luzes. Era coisa do passado.

O banquete agora era servido a ele e sempre com muita fartura. Eram tempos de glória. Naqueles anos houve uma inversão do fluxo migratório. Invadir casas, lixeiras, se esconder em armários, já não era tão interessante.

Agora o Rato pensava que os humanos eram bons.

E ele, como um bom rato, esperto, foi buscar uma vida mais digna. E, dessa vez, ao invés da cidade, foi para o campo, ou melhor, para o campo de batalha. As notícias que ele ouvia sobre lá eram as melhores.

Ele se perguntava: por que esses humanos não começaram essa guerra antes? Era maravilhoso!

Quando as bombas caiam, eles se enfiavam em um buraco e...Voilà.O banquete estava servido!

A população rata cresceu impressionantemente. As famílias cresciam. Ninguém mais falava sobre gatos, ratoeiras, vassouras. Havia sempre muita comida, muita mesmo. Era maravilhoso!

Tudo transcorria incrivelmente bem, até que um problema começou a preocupar o Rato. Ele estava ficando gordo. Tornou-se cansativo subir as trincheiras para comer carne fresca. Ele já estava enjoado de comer restos de enlatados e carne apodrecida. Já não tinha a mesma mobilidade, rapidez. Perdia a cada dia sua esperteza. O que é fundamental para um rato.

Resolveu então cortar da alimentação os enlatados. Pensou que os humanos eram loucos de servir aquela porcaria.

Mas àquela altura, já estava gordo demais pra subir a trincheira e procurar algo mais saudável.

Mas como na vida nada dura para sempre, para seu azar o céu desabou em água. Foram incalculáveis dias de chuva. Até as bombas cessaram. Já não se ouvia mais nenhum estampido. Só o barulho da chuva. Até a comida podre acabou.

O Rato não entendia o que estava acontecendo. Os humanos estavam ficando loucos?

E a água na trincheira subia, subia. O Rato se lembrou de uma vez que sobreviveu a um naufrágio.

Os ratos ele soube, já haviam inventado uma religião para tentar resolver a terrível crise que se instalara. Mas ele era ateu.

Ele observou que um soldado corria de um lado para o outro, meio confuso. Viu que seus olhos estavam famintos.

A barriga do Rato começou a doer. Era a fome. Lembrou-se da infância miserável. Uma lagrima rolou dos seus olhos, mas logo se misturou às gotas da chuva.

O soldado revirava tudo e ele começou a sentir medo. O Rato procurou se esconder. A situação havia mudado. Acabaram os banquetes, a carne fresca, a podre, os enlatados, acabou tudo.

Os olhos famintos do soldado o achou. Era a coisa mais apavorante que já tinha visto.

Ele correu, mas estava tão gordo que por um momento se arrependeu de ter comido tanto. Tentou escalar a parede da trincheira, mas caiu. Ele sentiu as mãos magras do soldado o abraçar.

Era o fim. O Rato lamentou, olhou pro céu, e agora nem sabia mais se realmente era ateu.

Impensável essa situação.

Os homens estavam tão bondosos esses anos todos, sempre lhes fornecendo o alimento, os ajudando. Justo esse homem ia o comer. Pois ele logo percebeu a fome do soldado.

O soldado faminto se ajoelhou, fez uma oração a Deus agradecendo aquele alimento suculento, gordo. Comeu o Rato cru sorrindo. Apenas lamentou que não havia fogo para assá-lo . Chovia muito naqueles dias.

Paulo Carvalho
Enviado por Paulo Carvalho em 18/07/2018
Reeditado em 18/07/2018
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